Como filme
dos anos 1970 fez evangélicos se posicionarem contra o aborto
O
direito ao aborto é um dos temas mais polêmicos dos tempos atuais — provocando
embates por vezes violentos entre ativistas dos dois lados. Tanto nos Estados
Unidos como em outros países, como o Brasil, o aborto é central nas chamadas
guerras culturais, a briga sobre valores, crenças e costumes que coloca
religiosos e feministas em campos opostos.
O
que muitos não sabem é que o aborto — hoje central na pauta das guerras
culturais americanas — por muitos anos foi um assunto completamente ignorado
por evangélicos.
Isso
só mudou nos anos 1970, depois do lançamento de um documentário feito por um
carismático líder evangélico americano, cuja pregação introduziu o tema na
pauta política americana.
Essa
história é contada no primeiro episódio do podcast As Estranhas Origens das
Guerras Culturais, lançado pela BBC News Brasil no dia 5 de setembro de 2022.
Trata-se de uma adaptação em português da série em inglês Things Fell Apart, da
BBC Radio Four, escrita e apresentada pelo autor e jornalista anglo-americano
Jon Ronson.
Ronson,
autor de Os homens que encaravam cabras, O teste do psicopata e Humilhado -
Como a era da internet mudou o julgamento público, quis entender como tópicos
como aborto e direitos trans, assim como várias teorias da conspiração,
acabaram se tornando verdadeiras obsessões nas vidas de muitas pessoas. Ele
encontrou e ouviu personagens que estiveram diretamente envolvidos nas batalhas
que definiram posições no fogo cruzado das guerras culturais.
No
primeiro episódio (chamado Mil Bonecas), Ronson entrevista Frank Schaeffer,
filho do líder evangélico Francis Schaeffer, para revelar como um estranho
documentário antiaborto acabou inspirando diversos evangélicos nos EUA a
organizarem campanhas contra o direito de mulheres de interromperem a gravidez.
O documentário também foi citado como inspiração por um ativista antiaborto que
assassinou um médico que realizava o procedimento nos EUA nos anos 1990.
Hoje
arrependido de sua contribuição no debate sobre o aborto e crítico de seu já
falecido pai e do movimento evangélico nos EUA, Frank Schaeffer contou a Ronson
que convenceu seu pai, um conhecido filósofo e historiador cristão, a fazer
documentários para que ele, Frank, pudesse desenvolver seus conhecimentos sobre
cinema. Seu sonho era ser cineasta em Hollywood.
O
tema do aborto continua causando grande divisão nos Estados Unidos e vários
outros países como o Brasil, que tem uma das legislações mais rígidas sobre o
procedimento (autorizado apenas em caso de risco à vida, estupro e
anencefalia). Em junho de 2022, a Suprema Corte dos Estados Unidos reverteu uma
decisão histórica do caso que ficou conhecido como "Roe x Wade" — que
desde 1973 garantia o acesso ao aborto em todo o país. Com isso, o tribunal
anulou o direito nacional ao aborto, permitindo que Estados americanos, de
maneira individual, o proibissem ou restringissem.
• De Bob Dylan à palavra de Deus
Frank
Schaeffer cresceu nos Alpes Suíços, na comunidade evangélica de L'Abri, fundada
nos anos 1950 por seu pai, o pastor e teólogo americano Francis Schaeffer.
"Eu
era um menino disléxico vagando pelos Alpes, crescendo em uma estranha
comunidade evangélica americana fundamentalista", lembra Frank Schaeffer,
em depoimento no As Estranhas Origens das Guerras Culturais.
"[Meu
pai] era um sujeito completamente excêntrico e maravilhoso. Pode parecer
contraditório, mas nas manhãs de domingo ele fazia pregações sobre o que ele
chamava de a palavra infalível de Deus e no sábado anterior ele podia estar
dando uma palestra sobre as letras de Bob Dylan."
Nos
anos 1970, L'Abri era frequentado por muitos ocidentais que peregrinavam em
direção ao Oriente ou a Israel. A esses viajantes, Schaeffer — um líder
diferente de todos os evangélicos da sua geração — dava palestras sobre como os
cristãos deveriam se relacionar com arte moderna ou com o festival de
Woodstock.
Schaeffer
atraía públicos ecléticos. Até mesmo o músico Eric Clapton frequentou L'Abri.
Entre os visitantes da comunidade estava Billy Zeoli, produtor de filmes
evangélicos que poucos anos depois trabalhou na Casa Branca como líder
espiritual do presidente Gerald Ford.
"As
pessoas falavam para meu pai que ele deveria pegar as palestras que dava sobre
as relações entre arte, cultura e cristianismo e colocar em filme. Ele deveria
fazer um documentário. Billy Zeoli juntou US$ 3,5 milhões para financiar o
projeto, o que naquela época era dinheiro demais para um documentário",
lembra Frank Schaeffer.
• Sucesso estrondoso
Francis
acreditava no potencial de seu filho Frank como diretor de cinema. Fascinado
por cineastas como Federico Fellini, Frank se empolgou com a ideia. Ele conta
que não tinha muita vontade de fazer um documentário sobre temas religiosos —
mas que viu no filme a chance de começar sua carreira no mundo do cinema.
A
combinação desses três elementos — as ideias religiosas de Francis Schaeffer, a
visão cinematográfica de Frank e o dinheiro de Zeoli — resultou na série de
documentário em dez episódios How Should We Then Live (Como Devemos Viver
Então, em tradução livre), de 1976. O documentário tinha um grande orçamento,
com segmentos em países diferentes, como Itália e França.
A
mensagem do filme era que, sem Deus, a humanidade estaria perdida moralmente.
Um
dos segmentos do documentário falava sobre o aborto, condenando a prática. A
inclusão do tema foi ideia de Frank — até então evangélicos não costumavam
discutir o assunto.
"A
maioria dos cristãos evangélicos viam isso [aborto] como um assunto 'de
católicos'. E naqueles dias nós não queríamos ter nenhuma relação com
católicos, se fosse possível. Aliás, a nossa teologia dizia que os católicos
iriam para o inferno", lembra Frank.
"Foi
por sugestão minha a meu pai que os últimos dois episódios da série foram sobre
Roe versus Wade e a legalização do aborto. Minha sugestão veio do contexto de
eu ser um pai adolescente. Era um assunto muito pessoal para mim, não tinha
nada a ver com um argumento filosófico."
A
série de documentários foi um sucesso estrondoso nos EUA. O lançamento foi
feito com uma tour em 16 cidades americanas, em arenas com públicos de cerca de
20 mil pessoas. Em Nova York, o lançamento foi no famoso Madison Square Garden.
"Nosso
tempo em uma comunidade pequena no interior da Suíça tinha chegado ao fim.
Agora meu pai era um grande líder evangélico nos EUA."
Apesar
da enorme influência de Francis Schaeffer entre evangélicos, ele continuava
sendo ignorado pela grande mídia. Frank Schaeffer afirma que os livros de seu
pai estavam vendendo cinco vezes mais do que os best-sellers da época — mas
como as publicações eram vendidas em igrejas evangélicas, e não em livrarias, o
livro não aparecia na lista dos mais lidos nos jornais.
• Mil bonecas no Mar Morto
Algo
no sucesso do documentário incomodava Frank: o público evangélico não gostou
dos episódios sobre aborto. Os espectadores religiosos não se sensibilizavam
com esse tema.
Frank
Schaeffer convenceu seu pai então a fazer uma nova série de documentários —
desta vez com ênfase no aborto — chamado Whatever Happened to the Human Race?
(O que aconteceu com a raça humana?, em tradução livre).
"Eu
insisti com meu pai. Eu dizia: 'Se você não fizer uma série sobre aborto, é
como se você fosse pró-aborto'. Eu estava usando todos os truques que eu
conhecia. E para ele, a questão era 'tudo bem, isso é só mais um dinheirinho
extra para o meu filho então vou fazer isso por ele'."
Frank
ousou artisticamente na série, com imagens extravagantes e avant-garde de
crianças fantasmagóricas vagando pelo mundo e um médico antiaborto diante de
mil bonecas no Mar Morto em Israel.
Como
no filme anterior, os Schaeffer realizaram outra turnê de promoção. Mas desta
vez ela foi um fracasso completo. Para tentar salvar a empreitada, pai e filho
embarcaram em outro tipo de turnê: uma viagem pelos EUA em busca de apoio de
outros pastores evangélicos.
Um
dos primeiros a serem contatados foi W.A. Criswell, da Convenção Batista do
Sul, a segunda maior denominação cristã dos EUA, atrás apenas da Igreja
Católica.
"Eles
não queriam nem ouvir falar sobre o assunto", lembra Frank.
"O
doutor Criswell dizia: 'por que vou me envolver com isso? Por que eu tenho que
dizer a alguma mulher que está grávida que ela precisa ter o filho. Eu não vou
pregar isso.' Nós tentamos convencer o conselho editorial da revista
Christianity Today. Eles responderam: 'Nós achamos que vocês estão errados. Nós
não somos pró-vida. Nós achamos que isso é um assunto ambivalente, na melhor
das hipóteses. Não vamos nos envolver com isso'."
• Feministas x evangélicos
Mas
uma resenha sobre a série no jornal New York Post mudou os rumos da história do
documentário. Outros jornais replicaram a coluna, o que atraiu a ira de
feministas.
Associações
progressistas e de feministas começaram a protestar em frente a cinemas que
exibiam o filme — e isso, por sua vez, atraiu a atenção da grande imprensa.
"Cada
vez que isso [o protesto das feministas] aparecia na imprensa, multidões de
evangélicos iam para as ruas para nos apoiar contra essas feministas raivosas,
que eles viam como inimigas", lembra Frank Schaeffer. "Eles não iam
protestar por causa do aborto em si, mas por causa de todo o resto da agenda
delas, de queimar sutiãs e defender que mulheres tenham carreiras
profissionais."
"As
feministas estavam nos fazendo um grande favor. Quanto mais [mulheres
protestando], melhor. Nós passamos a ser notícia por causa dessas
manifestantes."
Mas
o que começou como manifestações pacíficas aos poucos foi ganhando contornos
violentos — e a violência virou a tônica do embate sobre o aborto nas décadas
seguintes. Mulheres passaram a ser alvo de violência nas proximidades de
clínicas de aborto.
• Assassinato
Em
1998, um ginecologista que fazia abortos foi assassinado por um ativista.
Barnett Slepian foi morto por James Charles Kopp em Amherst, no Estado de Nova
York.
A
sobrinha de Slepian, Amanda Robb, que diz ter virado jornalista investigativa
por causa do assassinato de seu tio, dedicou parte de sua vida entrevistando
ativistas antiaborto que cometeram assassinatos. Em suas entrevistas, ela diz
que encontrou um padrão comum: todos eles citaram o documentário de Schaeffer
como o estopim de seu ativismo contra o aborto.
"Essas
pessoas viram o filme, que era exibido em igrejas, e ele iam a clínicas e
bloqueavam a entrada. Eles acabavam presos, mas liberados com uma multa de US$
50 e de noite já estavam em casa", disse Robb a Jon Ronson.
Entre
os investigados por Robb estava James Charles Kopp, que assassinara seu tio.
Antes de cometer o crime, Kopp havia viajado à Suíça para conhecer a comunidade
de L'Abri. Ele também havia escrito uma carta aos Schaeffer elogiando os
documentários.
A
essa altura da vida, Frank Schaeffer já não participava mais de campanhas
contra o aborto — e rejeitava boa parte das doutrinas defendidas por seu pai,
que morreu em 1984. Frank conta que se desiludiu com seu pai depois que ele se
juntou a Jerry Falwell, pastor evangélico do movimento Moral Majority, que
prega contra a homossexualidade.
Francis,
que inicialmente incluíra o tema do aborto no documentário apenas para agradar
seu filho, se tornara um ferrenho ativista contra a prática. Seu livro A
Christian Manifesto (Um Manifesto Cristão, em tradução livre), de 1981, é até
hoje influente entre os evangélicos que lutam contra o aborto.
• Remorso
Frank
conseguiu estabelecer uma carreira como diretor em Hollywood em diversos
gêneros — de comédia pastelão a ficção científica apocalíptica.
Mas
com o passar dos anos, ele passou a sentir remorso pelas consequências de seu
documentário sobre aborto.
"Eu
passei os últimos 30 anos da minha vida tentando desfazer o dano que causei com
aquele documentário. Não acho que eu tenha conseguido qualquer avanço em mudar
a mentalidade dos evangélicos, mas o que eu acho que consegui foi falar com
pessoas que se desiludiram com o movimento evangélico e o abandonaram",
conta.
Frank
Schaeffer escreveu um livro de memórias e passou a fazer campanha contra a
direita religiosa nas mídias sociais.
"Meu
pai e eu temos sangue nas nossas mãos por causa da morte de Barnett Sleppian e
muitos outros provedores de aborto. Existe uma linha direta entre o que nós
Schaeffers fizemos até Jim Kopp matar um médico por ter lido os livros
antiaborto de meu pai e visto os filmes que eu produzi. Eu não tenho palavras
para expressar o meu remorso e a profundidade do meu arrependimento por minha
estupidez e insensível descaso pela decência e valor pela vida humana."
"Eu
imploro por perdão. Eu sou ardentemente pró-escolha e trabalho para defender os
direitos das mulheres que eu e meu pai tanto atacamos nos anos 70 e 80."
Mas
apesar do arrependimento, a obra de Schaeffer continua tendo a repercussão que
sempre teve entre americanos que são contra o aborto — a de angariar novos
ativistas.
Rusty
Thomas, religioso evangélico que lidera a Operação Salve a América — a maior
iniciativa contra o aborto nos EUA, em que ativistas visitam comunidades para
pregar sobre o assunto — resume a influência que os Schaeffer tiveram em moldar
o debate sobre o aborto nos EUA.
"A
maioria das pessoas consideram Schaeffer o pai do combate ao aborto."
Fonte:
BBC News Brasil
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