Aula no terreiro: projeto leva estudantes
para visitar comunidade de candomblé
Alunos do Centro de
Ensino Médio (CEM) 2 de Planaltina viveram uma experiência de contato com a
arte e a cultura afro-brasileira na última terça-feira. Por meio do projeto
Ogbon Mimo — Sabedoria Sagrada, 68 estudantes da escola participaram de uma
visita guiada à casa de candomblé Ilê Odé Axé Opo Inle, em Planaltina.
Em uma espécie de tour
dividido em estações, os visitantes aprenderam sobre os orixás, os instrumentos
musicais e a culinária da comunidade, e apreciaram fotos, quadros, desenhos e
peças artesanais de países africanos. A ideia é promover o respeito à diversidade
e desconstruir preconceitos e combater a intolerância religiosa. A iniciativa
conta com apoio da Fundação Palmares e do Ministério da Cultura, em sintonia
com a Lei nº 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e da
cultura afro-brasileira nas escolas.
O Babakekere (pai
pequeno, o segundo na hierarquia da casa) e produtor do projeto, Renato Gomes,
explica que a iniciativa surgiu como forma de apresentar aos estudantes o
universo do terreiro de candomblé, quebrando barreiras por meio da vivência. A
comunidade já realizava visitas às escolas, levando conhecimento sobre a
cultura e as religiões africanas, mas sentiu necessidade de expandir para a
experiência prática. "É diferente a gente ir às escolas de os alunos
estarem dentro do território. Além da parte da religiosidade, tem a história, a
cultura e a influência da música africana na construção do Brasil",
destaca.
Entre os aspectos
centrais para a comunidade do terreiro, estão a culinária e a música.
"Tudo o que fazemos é em volta da cozinha, envolve alimentação, porque é o
mais importante na nossa religião. A musicalidade caminha junto com a
culinária, e tudo termina em festa, com a história dos orixás sendo contada por
meio da música e da dança", compartilha. Ele acrescenta que os costumes da
comunidade buscam estabelecer uma relação harmoniosa com os orixás e promover a
integração entre as pessoas, sem distinção: "A casa de candomblé acolhe as
pessoas, não escolhe, vivemos como uma família", enfatiza Renato.
• Respeito
Elias Viana, Ojú Ilê
(anfitrião da casa) e produtor do projeto, complementa que a iniciativa busca
combater a desinformação e o preconceito enraizados na sociedade, com a
intenção de promover o respeito e a diversidade religiosa.
"A proposta é
desmistificar a demonização sobre as religiões de matriz africana. Quando os
estudantes chegam aqui, recebem um banho de informações, de cultura, no que diz
respeito à contribuição da África na construção da sociedade brasileira. A gente
entende que as pessoas têm o direito de escolher suas religiões, levando em
consideração que o país é laico, então o nosso projeto trabalha nessa
perspectiva", enfatiza.
Um fato que chamou a
atenção dos organizadores foi que o interesse dos alunos em conhecer a
comunidade aumentou à medida que as visitas da escola foram acontecendo.
"Nas duas turmas que vieram antes, a média foi em torno de 40 alunos.
Agora, o número aumentou para 68. Então, a gente percebe que está tendo uma
divulgação na escola e na família daqueles que já fizeram a visita",
aponta Elias Viana.
Durante o tour, os
estudantes tiveram contato com a história dos povos africanos, a escravidão no
Brasil e os significados de artefatos e de costumes dessas populações. Além das
palestras, eles foram conduzidos às casas sagradas, cada uma representando um
orixá, que foi interpretado por membros da comunidade. Também conheceram a arte
e a culinária, por meio de exposições e da degustação de pratos típicos, como
acarajé e manjar. Por fim, os estudantes participaram da apresentação do grupo
de percussão Afoxé Omo Ayó.
• Experiência
O produtor Elias Viana
procurou professores de história, sociologia e artes, que se dispuseram a
acolher a proposta.
Danilo Monteiro, que
leciona sociologia no CEM 2 de Planaltina, trabalha questões étnico- raciais
com os alunos e viu, no Ogbon Mimo, uma oportunidade de continuar o
aprendizado. "O terreiro representa uma pequena África dentro do Brasil.
Achei muito interessante que os pais também deram liberdade para eles fazerem a
visita, porque a gente sabe que há uma demonização das religiões de matriz
africana. Então, nada melhor do que conhecer pela vivência para quebrar os
estereótipos e preconceitos", ressalta.
Tailane dos Santos, de
18 anos, considerou a experiência muito proveitosa. "Já visitei outras
comunidades africanas, mas eram da umbanda. Em um terreiro de candomblé, é a
primeira vez. Foi algo novo. O que mais gostei foi aprender sobre os orixás",
diz.
Assim como Tailane,
Gabriel Oliveira, 18, também havia visitado um terreiro antes. Mesmo assim,
para ele, foi inovador, "muito interessante e diferente". Após as
explicações da comunidade, ele sentencia: "É muito importante não falar
mal das religiões, sem antes conhecê-las".
As visitam prosseguem
até 11 de junho.
<><> Saiba
mais
### A casa
» O Ilê Odé Axé Opo
Inle (Casa do Caçador cuja Força provém de Inle) é uma comunidade tradicional
de matriz africana da nação iorubá, fundada em 1996. Com cerca de 150 membros,
é uma das maiores do Distrito Federal e Entorno.
### Legislação
» O Estado laico no
Brasil foi estabelecido na Constituição de 1891, determinando a não
interferência estatal em assuntos religiosos. Na Constituição de 1988, a
liberdade religiosa foi garantida no artigo 5°. Em 2003, a Lei nº 10.639
determinou a obrigatoriedade do ensino da história e na cultura afro-brasileira
nas escolas. Apesar da legislação, o Disque 100 — canal de ouvidoria de
violações aos direitos humanos — recebeu, em 2023, mais de 2 mil denúncias
relacionadas à intolerância religiosa, representando um aumento de 80% em
comparação a 2022. Segundo o canal, as religiões de matriz africana são as mais
afetadas por esse tipo de violência.
• Intolerância religiosa não cabe no
Brasil plural
Qual é o dano pessoal
que a opção religiosa de alguém pode causar ao próximo? A indagação se impõe
diante da reação de pelo menos 200 mil brasileiros que deixaram de ser
seguidores da cantora Anitta. Ela revelou ao público que aderiu ao candomblé,
expôs a sua iniciação na afrorreligiosidade e tornou-se alvo da intolerância
religiosa. Foi o suficiente para o afastamento dos fãs e de ácidas críticas por
meio das plataformas digitais. Mas as ofensas não suprimem o valor artístico da
cantora, uma celebridade do funk carioca, com valores reconhecidos nacional
e internacionalmente.
A intolerância
religiosa é lamentável comportamento que se arrasta desde o século 16, quando
chegaram ao país os primeiros grupos de negros sequestrados em vários povos do
Continente Africano, para serem escravizados no Brasil, pelos colonizadores
europeus. Nos tribunais de Justiça do país, as ações motivadas por intolerância
religiosa somam 33% (176 mil) entre as relacionadas ao racismo, segundo
levantamento da startup Jus Racial. A instituição constatou que no Supremo
Tribunal Federal (STF), a intolerância religiosa representa 43% de 1,9 mil
processos contra o racismo.
A reação dos (ex) fãs
de Anitta é mais uma demonstração da repulsa de parcela da sociedade aos
valores dos legados africanos. Trata-se de comportamento recorrente no país. A
demonização do povo negro e de sua religiosidade está ancorada no racismo.
Enquadra-se entre as afrontas à Constituição de 1988, que garante a liberdade
religiosa no país, a igualdade de direitos a todos os cidadãos,
independentemente da origem étnico-racial. Ofende também o arcabouço legal dos
direitos humanos. Porém, nenhum marco legal tem conseguido impedir a violência
contra as instituições e aos adeptos das religiões de matrizes africanas.
Denúncias levadas aos fóruns internacionais de direitos humanos também não
surtem efeito mitigador desse comportamento.
Nas religiões de
matrizes africanas, não há restrições ao gênero, à cor da pele, à condição
socioeconômica, ao status social, ao grau de escolaridade e a tantos outros
paradigmas que dividem a sociedade em castas e motivam disputas por espaços,
muitas vezes, insanas e mortais. Entendem como fundamentais o respeito entre as
pessoas, a preservação da vida, o direito de escolha, inclusive, religiosa, de
pensamento, de expressão. A ausência de preconceitos é uma das razões que tem
elevado o número de adeptos aos terreiros.
A falta de letramento
racial está entre as causas do racismo e das atitudes violentas,
preconceituosas e intimidadoras contra os adeptos do candomblé e da umbanda em
todo o território nacional. A Lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o
ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas
públicas ou particulares, desde o ensino fundamental até o ensino médio, não é
cumprida. A educação é uma das formas mais eficazes de quebrar os estigmas,
forjados em inverdades, consolidados em relação ao povo negro, suas culturas,
práticas de fé, hábitos e costumes.
A hegemonia das
vertentes de religiões cristãs não autoriza uma cruzada racista, intolerante,
agressiva e violenta contra pretos e pardos nem contra a afrorreligiosidade. Há
espaço para todas no país, sob o manto da Constituição Cidadã. O Brasil é um
país plural, mas seu povo ainda carece de praticar o respeito à diversidade e
aos direitos humanos.
Fonte:
Correio Braziliense
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