Wilson
Ferreira: Extrema direita faz esfera pública fascista. E a esquerda?
Da
Marcha para Jesus, passando por templos religiosos dando “assistência
espiritual” a PMs e chegando a sanção da lei em SP que institui escolas
cívico-militares, acompanhamos a estratégia da construção de uma esfera pública
fascista. Para entendermos a gravidade política disso, precisamos compreender o
conceito de “esfera pública”, sempre confundida com a noção de “opinião
pública”. Sobrevalorizamos o expertise digital da extrema direita nas redes
sociais e Internet: o seu timing, a velocidade na produção de recortes, memes e
a linguagem da lacração. O que fez os progressistas partirem para a militância
digital, enquanto a esfera pública de esquerda se fregmentou em
“progressismos”e as ruas foram abandonadas. Qual a importância da esfera
pública na comunicação? Não importa a linguagem ou o poder midiático. A esfera
pública vai além da propaganda. Sem uma esfera pública de relações face a face,
nenhum conteúdo midiático é sancionado.
Marcha
para Jesus em SP com presença dos bolsonaristas Tarcísio e Ricardo Nunes;
governador de SP sanciona lei que institui escolas cívico-militares; templos da
Igreja Universal reunindo policiais militares em cultos para dar “assistência
espiritual e valorativa”; Clubes de Tiro favorecidos pela pela aprovação de
projeto de decreto legislativo (PDL) na Câmera dos Deputados para flexibilizar
a compra e porte de armas e munições; motociatas continuam sendo organizadas
semanalmente pelo país, algumas delas com luxuosa participação de Bolsonaro at
caterva; Câmara aprova projeto de clubes de tiro a menos de 1 km de escolas
etc.
Poderíamos
fazer uma lista imensa de exemplos recentes de como bolsonarismo e extrema
direita estão metodicamente construindo sua própria esfera pública autônoma.
Esse
humilde blogueiro acredita que a compreensão desse conceito é fundamental não
só para entender como o imaginário fascista está cada vez mais se capilarizando
na sociedade brasileira, como também de que maneira Internet e redes sociais de
certa forma foram usados como estratégia diversionista para a esquerda.
Para
entendermos todos esses movimentos, primeiro lugar precisamos entender um
conceito ainda mal compreendido: “esfera pública”.
No
uso corrente, normalmente há uma confusão entre “esfera pública” e “opinião
pública”. Esfera pública não é opinião pública, e muito menos “espaço público”
ou mesmo “publicidade”. A esfera pública contém instituições como o poder
público, a imprensa, organizações,a opinião pública e ambientes como salões,
cafés,clubes, praças etc.
Porém,
esfera pública ultrapassa em muito a mera propaganda, a comunicação por meios
massivos e até mesmo as redes sociais e Internet – essas mídias de
convergências pensadas aqui como “mídias espectrais” cujas relações humanas
individualizadas são mediadas por avatares, simulações que criam simulacros de
interações.
Esfera
pública corresponde, por assim dizer, a uma cena social, com uma emocionalidade
ou energia própria criando uma vibração em um campo, seja ele político,
cultural etc.
Jurgen
Habermas em seu livro “Mudança Estrutural da Esfera Pública” (1962) descreveu
como a construção de uma esfera pública liberal nos séculos XVIII-XIX, decisiva
para a consolidação do capitalismo através do livre trânsito de mercadorias,
ideias e notícias. Foi o momento decisivo para a consolidação do livre comércio
e da livre concorrência em um mercado de opiniões.
Uma
cena nunca até então vivida na História: debates públicos em cafés, clubes de
leitura e salões - nunca antes a Europa viveu tal período de maior liberdade
para circular ideias e contato com novas concepções filosóficas, estéticas,
políticas etc.
Para
além da ética protestante (Weber) ou da revolução industrial e toda revolução
tecnológica trazida pela eletricidade, vapor e meios de transportes, foi a
construção dessa “cena” que cimentou ideologicamente todas essas revoluções que
fizeram nascer uma sociedade secular,longe do clero e da monarquia.
• Esfera
pública proletária
Na
história do capitalismo também foi decisivo a formação de uma esfera pública
proletária autônoma, com suas formas particulares de manifestação e expressão
pública, desde o início da Revolução Industrial. A organização sindical e seus
espaços de reuniões e lazar foram decisivos para aconsciência de classe e a
luta pelos direitos trabalhistas frente ao capital.
A crescente organização de uma esfera pública
proletária, principalmente na República de Weimar pré-ascensão do nazismo, foi
desmantelada pelo desemprego, individualização e desespero na hiper-inflação
alemã pós I Guerra Mundial. Uma sociedade desarmada e politicamente esvaziada.
Foi
quando consolidou-se a esfera pública fascista, com suas festas, comícios – e
as milícias privadas, os “Stosstruppen”, para destruir o pouco que restou da
cena proletária e aterrorizar os mais resistentes. Cafés, choperias, clubes
etc. foram ocupados por comícios e debates de uma falsa ressignificação do
proletariado através do nacionalismo e do retorno nostálgico aos valores da
família, terra e sangue.
Como
descobriu Paul Lazarsfeld em seus estudos em sociologia da comunicação do
Bureau of Applied Social Research da Universidade de Columbia nos anos 1950,
são as relações pessoais que sancionamos conteúdos dos meios de comunicação.
Por mais poderosos financeiramente e tecnologicamente que sejam, seus conteúdos
apenas ganham sentido e repercussão se for precedida de uma cena que vibre na
esfera pública.
• Hardware
e Software
Colocando
em termos atuais, poderíamos dizer que a esfera pública é o hardware e a
opinião pública (moldada pela engenharia midiática) o software. Sem essa cena,
sem essa esfera pública autônoma o software não roda, isto é, não repercute,
não capilariza na sociedade.
Voltando
para aquela pequena lista acima, no primeiro parágrafo, fica claro como
bolsonarismo e extrema direita (ou a alt-right internacional) estão focados na
construção dessa esfera pública própria, fascista, em muitos aspectos
semelhante à construção da esfera pública fascista na Alemanha pré ascensão de
Hitler ao poder.
Por
mais que se cante loas sobre de expertise superlativo da comunicação alt-right
nas redes sociais, sua incrível velocidade e oportunismo em criar recortes,
memes, fake news; por mais que se fale do apoio dos algoritmos das big techs de
Zuckerberg e Musk, tudo isso encontraria o vazio de repercussão sem o
“hardware” de uma esfera pública fascista altamente politizada.
De
nada adiantariam os algoritmos e as estratégias digitais de microtargeting para
furar as bolhas digitais (como nos casos do Brexit em 2015 e a vitória
eleitoral de Trump em 2016) sem a sanção dos conteúdos através das redes
interpessoais reais, cara a cara, em templos, festas, comícios etc.
• “Onguização”
e diversionismo
Assim
como a hiper-inflação, a crise econômica e o desemprego ajudaram a destruir a
esfera pública proletária na República de Weimar antes do Terceiro Reich, aqui
no Brasil a desindustrialização, commoditização da economia e a precarização do
trabalho (acelerado pela flexibilização das leis trabalhistas pós-golpe de
2016) foram progressivamente minando a esfera pública proletária.
Com
dois tiros certeiros que criaram a vulnerabilidade através da qual a esfera
pública fascista pode se consolidar:
(a)
“Onguização” dos movimentos sociais – ONGs se tornaram as correias de
transmissão da ideologia do neoliberalismo progressista e da ideologia dos
chamados “novos democratas” dos EUA: o identitarismo, na qual todas as
históricas discussões de raça e gênero se descolam da esfera pública proletária
(sindicatos, partidos e movimentos sociais de orientação materialista
histórica) para serem hackeados pela discussão dos valores,meritocracia e
ascensão social dentro da competição de mercado.
(b)
A supervalorização do expertise digital na Internet e redes sociais da
comunicação alt-right. Criou-se um
pânico digital nas esquerdas de que o decisivo nos resultados eleitorais
supostamente foi o domínio dalinguagem de lacração nas redes sociais e o
hackeamento de big data para furar as bolhas digitais.
Isso
é apenas uma parte da verdade. Sem uma esfera pública fascista capilarizada na
sociedade, no mundo analógico e real das relações face a face, nenhuma
estratégia digital daria certo.
Certamente,
o pânico digital fez parte da estratégia diversionista alt-right: por exemplo,
vender a ideia de que entramos em uma nova era chamad de “gameficação da
política” e dos poderes sobrenaturais da Deep Web. Diante desse pânico, a
esquerda migra para a militância digital, deixando, na mais otimista hipótese,
em “segundo plano” a necessidade de formação de uma esfera pública de esquerda.
Enquanto
isso, para o bolsonarismo tornou-se prioridade estratégica, como pode-se
perceber nas interconexões entre CACs, templos religiosos, crime organizado e
festas como a Marcha para Jesus.
É o
caso exemplar nesse feriadão de Corpus Christi: Marcha para Jesus versus Parada
LGBT 2024 em São Paulo.
Enquanto
o evento religioso foi altamente politizado (as indefectíveis camisetas
amarelas da CBF com a bandeira nacional como manto na massa de crentes, além
dos discursos de Tarcísio de Freitas e Ricado Nunes diante de um telão no qual
era projetada imagem da bandeira nacional tremulante), o evento LGBT é
despolitizado e desconectado de movimentos políticos e sociais. Para começar na
própria designação da natureza dos eventos: o caráter assertivo e militar como
“Marcha” para o evento religioso; e de entretenimento como “Parada” para o
evento de afirmação identitária e de gênero.
A
esfera pública de esquerda acabou sendo pulverizada em “progressismos”:
sindicatos, movimentos sociais, identitários etc., cada qual construindo suas
própria redes de relações interpessoais, sem conseguirem criar uma cena mais
ampla, uma autêntica esfera pública de esquerda que repercuta no mundo real os
conteúdos criados pela militância digital.
O
filósofo Vladimir Saffatle falou marqueteiramente em uma entrevista que “a
esquerda morreu” – afirmação que soou como música aos ouvidos da grande mídia
bateu o bumbo para o lançamento do livro do filósofo, “Alfabeto das Colisões”.
Porém,
numa coisa Saffatle tem razão: a esquerda virou uma constelação de
progressismos.
Abandonou
as ruas, substituiu a construção de um esfera pública de esquerda pela
militância digital e as relações através de mídias espectrais.
A
política tem horror ao vácuo. Que nesse momento está sendo ocupado por uma
esfera pública fascista em crescimento.
Fonte:
Cinegnose
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