sábado, 1 de junho de 2024

Afeganistão, Ucrânia e Israel: insucessos consecutivos dos EUA provam o declínio da Pax Americana?

Em entrevista à Sputnik Brasil, historiadores afirmam que a elite política dos EUA ainda não percebeu que o país não é mais a potência de antes e alertam que Washington pode agravar o uso da força para tentar conter a erosão de sua hegemonia.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA se consolidaram como a maior potência global bélica e econômica. Porém, esse posto está sob contestação diante da ascensão da multipolaridade e das três derrotas consecutivas recentes colecionadas por Washington em confrontos bélicos e entraves diplomáticos.

A primeira derrota foi no Afeganistão. Após 20 anos de ocupação, os EUA bateram em retirada do país em 2021, sem apresentar resultados concretos na consolidação da democracia e entregando o controle ao Talibã e à Al-Qaeda (organizações terroristas proibidas na Rússia e em vários outros países), os dois grupos que motivaram a invasão dos EUA ao Afeganistão após os ataques do 11 de setembro.

Um ano depois, Washington interviu no conflito entre Rússia e Ucrânia liderando o apoio a Kiev por meio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e exortando aliados a impor sanções ao petróleo e gás russo, uma estratégica que se provou um tiro pela culatra uma vez que o embargo desencadeou uma crise energética na Europa e nos EUA.

E nos últimos meses, o governo do presidente estadunidense, Joe Biden, se vê isolado em seu apoio incondicional a Israel, em um momento que a comunidade internacional condena e denuncia como genocídio a ofensiva israelense na Faixa de Gaza.

Diante dos fatos, é levantada a questão: a era da chamada Pax Americana está em declínio? Para responder a essa pergunta, a Sputnik Brasil conversou com os historiadores Sidnei J. Munhoz, especialista em assuntos militares e ex-assessor do Ministério da Defesa, professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Francisco Carlos Teixeira, professor do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e autor de "Guerra Fria: História e Historiografia".

·        Declínio da hegemonia dos EUA começou no Vietnã

Munhoz aborda a atual situação ucraniana enfatizando que após a Guerra Fria não ocorreu a instituição de uma nova ordem global, mas sim "a expansão da ordem vitoriosa naquele conflito de dimensões mundiais às expensas da potência que se esfacelava", a União Soviética (URSS). Ele destaca que nesse período foi prometido a Mikhail Gorbachev, então dirigente soviético, "que se ele não interviesse no processo em andamento, a OTAN não expandiria uma polegada em direção às regiões soviéticas".

"A promessa não foi cumprida e o seu descumprimento está na gênese da crise que levou à intervenção da sucessora da URSS, a Rússia, na Ucrânia."

Ele aponta para uma análise feita por Jack Matlock, ex-embaixador dos EUA na União Soviética durante o período Reagan-Bush/Gorbachev, que destacou que o conflito entre Rússia e Ucrânia "era perfeitamente evitável e o que [o presidente russo] Vladimir Putin solicitava era bastante razoável".

"Bastava que a Ucrânia assumisse um compromisso de neutralidade e não aderisse à OTAN. No entanto, o pedido não foi atendido e a Rússia iniciou uma ação armada contra a Ucrânia. Em grande medida a Ucrânia está a ser destruída pelo envolvimento irresponsável por parte do seu governo em um conflito entre duas potências. Tomar o lado da adversária, quando se faz fronteira com a potência da qual já foi parte constituinte, foi colocar toda a população ucraniana sob risco incomensurável."

 

Sobre o declínio da Pax Americana, Munhoz afirma que isso vem ocorrendo gradativamente desde a Guerra do Vietnã. Ele pontua que o país ainda detém peso econômico, poderio bélico e comando de organismos internacionais, mas enfrenta "uma contínua crise de hegemonia há seguramente meio século".

"Os EUA possuem muitos recursos econômicos, políticos, militares e culturais e os têm empregado para sustentar um possível segundo século de hegemonia global. O grande problema desse cenário é que historicamente toda vez que um hegemonista está sofrendo uma erosão da sua capacidade de sedução e de atração, ele passa cada vez mais a empregar a força para obter aquilo que antes lhe era fornecido por adesão razoavelmente voluntária. Em síntese, o cenário global aponta para um processo de incremento de conflitos que se fugirem ao controle podem ganhar uma dimensão global", explica.

"A considerarmos o poderio bélico e em especial a capacidade nuclear instalada das maiores potências do planeta, um novo conflito global poderia significar o fim da civilização humana, como a conhecemos e, mais ainda, ameaçaria toda a vida no planeta", acrescenta.

Segundo Munhoz, esse cenário é agravado pelas mudanças que se tem observado na Europa Ocidental, que durante muito tempo "se acostumou a estar sob o guarda-chuvas protetor dos EUA, embora isso implicasse, a grosso modo, em subserviência".

"Isso foi vantajoso durante muito tempo, pois os EUA financiaram a reconstrução da Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial, por intermédio do Plano Marshall. O plano possuía ao menos dois objetivos distintos. Em primeiro lugar, conter a possibilidade de influência soviética na Europa e, dessa forma, fazia parte da estratégia de contenção à URSS. De modo correlato, o plano visava ao atendimento das demandas do capitalismo estadunidense, pois tinha por objetivo redirecionar o modelo de capitalismo europeu e moldá-lo às necessidades estadunidenses."

Ele acrescenta que a URSS foi convidada a fazer parte do plano, mas recusou porque uma das condicionantes de Washington era "o acesso às informações econômicas e às contas públicas dos países que aderissem".

"Observo que hoje, para ficarmos em apenas um exemplo, a Europa em decorrência do posicionamento da Comunidade Europeia em associação com a OTAN, está a comprar gás muito mais caro do que comprava da Rússia. Isso está a ter um impacto enorme na economia do continente e mesmo a economia alemã, a mais robusta e sólida do continente apresentou uma performance adversa em 2023. Além disso, as economias europeias estão a perder competitividade, o que, pode ser desastroso para o continente", destaca.

Munhoz aponta que, paralelamente, ocorre na Europa um movimento no sentido de garantir "uma maior autonomia bélica em relação aos EUA".

"Conforme aponta [o cientista político] José Luís Fiori, a Alemanha está mudando a base da sua indústria e está a assumir um projeto de se tornar a espinha dorsal de dissuasão e defesa coletiva da Europa. Em outras palavras, está a iniciar um projeto de investimentos robustos na produção de armamentos de forma a se tornar uma grande potência bélica", afirma.

"Quais serão as implicações dessa mudança de curso para a economia alemã e europeia e quais serão as implicações globais desse novo percurso? O tempo nos dará respostas muito em breve. Considero o cenário atual extremamente preocupante, pois está a haver um esgarçamento das possibilidades de negociação. Nesse contexto, a possibilidade de expansão descontrolada dos conflitos emergentes é imensa", complementa.

Ele ressalta ainda que a recente decisão de Biden de autorizar a Ucrânia a usar armas dos EUA em ataques contra alvos militares em territórios da Rússia agrava a situação e deixa o mundo "assombrado pela real possibilidade da escalada do conflito".

"Essa decisão terá consequências e, certamente, acelerará a escalada do conflito", afirma o historiador.

Apoio a Israel prova incapacidade dos EUA de serem um líder político e moral

Para Francisco Carlos Teixeira, "os EUA estão vivendo uma das fases mais complexas e difíceis da sua história de política externa". Ele aponta que a ascensão de novos atores, entre eles China, Índia e Brasil, "fazem com que o poder americano não seja mais uma força inconteste no mundo".

Teixeira acrescenta que a retirada do Afeganistão, repetindo a tragédia do Vietnã, é uma prova clara de que após duas décadas "de guerra, mortes e sofrimento, os Estados Unidos não conseguem impor sua política nem a países, nem a movimentos sociais do terceiro mundo extremamente precários nas suas condições de luta".

"A imensa panóplia militar americana não garante, de forma alguma, resultados políticos. Nesse sentido, os EUA acabam optando por formas obscuras de guerra híbrida, de guerra interna, fomentando a desestabilização de países inteiros, como aconteceu, por exemplo, na Síria e na Líbia, com resultados catastróficos para a população", afirma.

O historiador afirma que a elite política dos EUA, particularmente a elite burocrática do Partido Democrata, não percebe que o país "não é mais a potência que era em 1950 ou mesmo em 1980" nem "as mudanças que se deram no mundo desde 2001".

Ele cita como exemplo o fato de os EUA manterem "sua aliança umbilical com Israel, mesmo com hoje o mundo inteiro e as organizações internacionais da ONU até o Tribunal de Haia considerarem que o governo de Israel é um governo criminoso que comete seguidos crimes de guerra e crimes contra a humanidade".

"Os EUA perderam a capacidade de ser um guia, não só um guia político, mas também um guia moral e falar em nome de direitos humanos e de democracia. Cada vez que o governo dos EUA fala em democracia e em direitos humanos, ele comete um estelionato político. Na verdade, hoje o governo americano se identifica com as forças mais tradicionalmente conservadoras, reacionárias e mesmo fascistas na violação dos direitos humanos e das condições mínimas de convivência harmônica numa ordem mundial."

 

¨      'Histeria antirrussa' tomou conta da Europa, mas não na Sérvia, diz vice-premiê sérvio

Em declarações à Sputnik, Aleksandar Vulin criticou a política ocidental quanto a Rússia, Sérvia e Kosovo, que vê como exploradora.

Há dois anos, quando o conflito ucraniano começou, os países ocidentais exigiram que a Sérvia impusesse imediatamente sanções contra a Rússia.

Na opinião de Aleksandar Vulin, vice-premiê da Sérvia, que falou à Sputnik, trata-se de "uma tentativa clássica de fazer os sérvios brigarem com seus amigos e não os deixar encontrar novos amigos".

"Eu pergunto: há pessoas adequadas no Parlamento Europeu? Tenho certeza de que sim, mas elas não têm direito a voto", opinou ele.

"Já vimos o bastão, mas qual será a cenoura? E eles dizem: imponham sanções contra a Rússia e reconheçam a independência do Kosovo. Há alguma pessoa normal lá? Alguma delas já ouviu falar quem são os sérvios? É um povo que, mesmo em condições muito mais difíceis, não aceitou seus ultimatos. Esse povo nunca aceitou o papel de escravo", deixou claro.

Vulin não viu um problema na associação da autodeclarada república do Kosovo à Assembleia Parlamentar da OTAN, mas condenou o timing.

"Tenham vergonha na cara, seus miseráveis! O que mais vocês farão? Em que mais feridas nossas vocês vão colocar sal? O chamado Kosovo surgiu como resultado do bombardeio da Iugoslávia [em 1999]? Claro que sim! Foi a Aliança do Atlântico Norte que o criou? Claro que sim!"

·        Situação ucraniana

Sobre as negociações de paz do conflito ucraniano na primeira metade de 2022, "uma solução pacífica foi alcançada [e] tudo foi acordado em Istambul. E então um britânico [então primeiro-ministro britânico Boris Johnson] surgiu e disse: 'não, morram.' Temo que o Ocidente lutará até o último ucraniano. Enquanto houver pessoas para enviar para o front, armar e equipar, o conflito durará", contou.

Aleksandar Vulin atacou igualmente a "histeria antirrussa, [que] tomou conta de toda a Europa".

"Na Europa, pelo menos formalmente, é proibido odiar alguém. […] a única coisa que devemos odiar é a Rússia. Estou eternamente orgulhoso do presidente [sérvio Aleksandar] Vucic, de toda a Sérvia, por não termos nos tornado parte disso. Não odiamos os russos. Pelo contrário, nós os amamos muito. E o que vocês vão fazer conosco?", indagou o alto responsável.

¨      Zelensky diz 'não entender' porque Brasil e China 'pensam primeiro' na Rússia; Itamaraty rebate

Vladimir Zelensky disse em entrevista à Folha de S.Paulo que não consegue compreender a posição do governo brasileiro e chinês em relação ao conflito entre Ucrânia e Rússia.

A entrevista aconteceu em um encontro para jornalistas da América Latina na capital ucraniana, Kiev. A mídia foi convidada pelo Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia.

"Não entendo, não entendo. Diga: por acaso, o presidente Lula, por acaso não quer ter essa aliança? Por acaso o Brasil está mais alinhado com a Rússia do que com a Ucrânia? […]", indagou.

O encontro com os profissionais de imprensa aconteceu às vésperas da cúpula de paz para Ucrânia organizada pela Suíça nos dias 15 e 16 de junho.

28 de maio, 11:55

Segundo Zelensky, entre os cerca de 80 líderes que já tinham confirmado presença, da América Latina, estariam os presidentes argentino, Javier Milei, e chileno, Gabriel Boric.

"[…] por que o Brasil e a China pensam primeiro nos russos e depois em nós? Como podem dar vantagem aos países que atentam contra outros e priorizar essa aliança […]?", questionou Zelensky.

O ucraniano afirmou que sabe que as nações têm suas próprias visões e disse estar disposto a ouvi-las: "Antes, temos que conciliar a opinião de todos os que vêm. Mas não com a Rússia."

No entanto, é justamente a falta de convite a Moscou ou o não desejo de sua presença no evento, mesmo que o conflito envolva dois atores, que parece incomodar Brasília e Pequim.

Em um documento de seis pontos assinado conjuntamente entre as chancelarias dos dois países, divulgado na semana passada, um dos pontos consiste justamente na elaboração de uma cúpula de paz que seja realizada "[...] em um momento adequado que seja reconhecida tanto pela Rússia como pela Ucrânia, com participação igual de todas as partes [...]".

O jornal brasileiro destaca que, nos eventos de que a reportagem participou, a impressão era de que o Brasil era a "menina dos olhos" dos ucranianos.

Em entrevistas coletivas, diz a mídia, as respostas das autoridades às perguntas de veículos brasileiros eram consideravelmente mais extensas do que aquelas aos demais profissionais do grupo, que contava com Argentina, Chile, Colômbia, El Salvador e Peru.

·        Itamaraty responde

Nesta sexta-feira (31), após a publicação da reportagem da Folha, o jornal O Globo entrou em contato com o Ministério das Relações Exteriores do Brasil para saber seu posicionamento sobre as declarações de Zelensky.

Segundo a mídia, o Itamaraty negou que o governo brasileiro tenha tomado partido entre Moscou e Kiev, acrescentando que "não há e jamais houve engajamento" de Brasília no conflito.

A chancelaria brasileira destacou que o Brasil defende que as negociações de paz envolvam as duas partes.

¨      Relação entre Kiev e Washington está no ponto mais baixo desde o início do conflito ucraniano

Vladimir Zelensky pediu a funcionários e deputados ucranianos que realizem críticas ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Isso diante da recusa do democrata em participar a cúpula de paz que será realizado na Suíça no próximo mês, por sua recusa em participar do "cume da paz" na Suíça, relata o Financial Times.

"Zelensky está muito preocupado com a situação militar, mas especialmente com o cume da paz em junho", disse um funcionário ucraniano à públicação. Várias fontes acrescentaram ainda que Zelensky estava "muito irritado" com a ausência do líder norte-americano já anunciada para o encontro que não contará com a participação da Rússia.

Esse é apenas um dos vários pontos de tensão entre Kiev e seu aliado, até o momento maior fiador ucraniano no conflito. O adiamento de seis meses da ajuda militar dos EUA, a adesão da Ucrânia à OTAN emperrada e a proibição de usar armas -norte-americanas em ataques contra a Rússia também são questões que incomodam Zelensky em meio à operação militar especial. Nesta quinta, Biden chegou a autorizar o uso dos equipamentos fornecidos contra a Rússia no território da Carcóvia.

Por sua vez, a Casa Branca reprova Kiev por atacar refinarias russas e radares que fazem parte do sistema de alerta nuclear. Washington teme que isso possa agravar o conflito.

Além disso, os Estados Unidos estão preocupados com a afastamento "inexplicável" de vários altos funcionários que "cooperavam de perto" com a administração Biden.

De acordo com uma fonte citada pelo jornal, Zelensky ficou "mais nervoso" e suspeita que Washington queira iniciar negociações com Moscou para acabar com a guerra antes da eleição presidencial de novembro.

Várias fontes próximas ao ucraniano admitiram que começaram a se preocupar com os métodos utilizados por ele na comunicação com Washington. "Não morda a mão que te alimenta", declarou uma delas.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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