A tragédia
no RS e a luta das mulheres pelo bem-viver
As
mulheres que lutam olham o mundo com os olhos de quem quer transformar tudo o
que nos oprime, o que nos violenta. O que vemos no colapso socioambiental que
está em curso no Rio
Grande do Sul (RS), provocado pela negligência do poder
público em prever e se preparar para as chuvas intensas, é o sintoma do
capitalismo extrativista que arranca da vida dos seres humanos, dos animais e
da natureza toda a possibilidade de viver dignamente.
Ao
estender nossa solidariedade a todas as vítimas do desastre, queremos dizer que
estamos juntas na mobilização das mais diversas formas. Nesse momento de maior
urgência, em especial, pela sobrevivência imediata com agasalhos, alimentação,
produtos de higiene e limpeza, recursos financeiros, abrigos seguros a todas as
pessoas, famílias inteiras que perderam tudo, e, muitas delas, inclusive seus
entes queridos. Escolhemos falar do colapso ambiental denunciando o capitalismo
extrativista patriarcal, racista, LGBTfóbico, heteronormativo, incompatível com
a vida e o Bem Viver.
É
necessário que a reconstrução do RS seja radical, com participação ativa de
quem, antes, durante e depois enfrenta a crise: as mulheres, em especial as
mulheres negras e as populações de periferia, que estão sustentando a vida no
cotidiano da enchente. São essas as pessoas que estão nas cozinhas
comunitárias, na arrecadação de comida, no cuidado com as crianças, que por um
longo tempo não terão escola. São as mulheres que, majoritariamente, mobilizam
solidariedade e cuidados com as pessoas afetadas, desesperadas, doentes e as
que ainda vão perecer com as doenças físicas e mentais provocadas pelo
alagamento e pelo trauma.
A
reconstrução necessariamente precisa incluir políticas públicas sustentadas com
recursos dos municípios, do estado e da União. Como sabemos, as grandes
empresas e o Agronegócio, defensores do Estado Mínimo, das privatizações das
empresas públicas, não tardaram a falar dos prejuízos e já começaram a colocar
as contas na mesa do Governo Federal. Todo mundo sabe, foram as mulheres que
seguraram o cuidado e a defesa da vida durante a pandemia, sobrepondo-se ao
governo negacionista, irresponsável, genocida. Agora também são as mulheres que
seguram as crises, e precisam ser ouvidas, contempladas na reconstrução do
Estado. Esses grandes empresários, alguns deles predadores ambientais, já falam
da crise como uma oportunidade, e precisamos coletivamente ficar atentas. A
história nos mostra que nas crises de qualquer tipo, a tendência é de os ricos
ficarem mais ricos e os pobres mais pobres. Foi assim na pandemia, tem sido
assim com os processos de reconstrução após tragédias e guerras.
Ao
falar do desastre socioambiental que está acontecendo há mais de 30 dias no RS,
é importante lembrar como ele se conecta com o restante do Brasil, o que tem em
comum e como é impactado pelo desmatamento da Amazônia, a mineração assassina
em terras indígenas, a presença predatória do agronegócio no Cerrado, a
ofensiva constante contra o Bioma Pampa e Mata Atlântica. O colapso provocado
pelas chuvas é parte de uma tragédia provocada pela ganância, a mesma que
envenena os Yanomamis e que contamina os lençóis de água doce do cerrado.
É
consenso entre os movimentos sociais e acadêmicos que estudam as mudanças
climáticas que a conduta dos governos é a principal responsável pela tragédia
que já causou mais de 170 mortes de cidadãs e cidadãos gaúchos, sem contar as
mortes de diversas espécies animais e vegetais, além de milhares de pessoas
desalojadas e desabrigadas que precisarão reconstruir suas casas, ou que não
têm sequer um lugar para voltar. Em 2019, o governo gaúcho apoiou, incentivou e
implementou a demanda dos grandes empresários, muitos do agronegócio, na
promoção das quase 500 mudanças no Código Ambiental do RS. De um lado, os
movimentos sociais, ambientalistas, ecologistas, feministas, sindicalistas
denunciavam e protestavam contra o desmonte da legislação pioneira de proteção ambiental
do RS; do outro lado, o governador Eduardo Leite (PSDB), parabenizava sua
bancada na Assembleia Legislativa, composta por 37 deputados (PSL, PTB, PSDB,
MDB, PP, DEM), por ter aprovado uma legislação “moderna sem
debate”, inclusive na própria Comissão de Saúde e Meio Ambiente.
O
principal argumento de Eduardo Leite foi de que a legislação precisava se
modernizar para acelerar o desenvolvimento do estado e atender as demandas dos
setores “produtivos”. Ou seja, o estado, através do seu governante máximo, agiu
para que o trâmite dos interesses privados seguisse com a maior agilidade e
legalidade possível. A ganância capitalista tem pressa, não quer correr riscos,
e para isso elege os seus. Certamente, estamos falando de um governante que
devolve com juros os apoios que recebe dos setores econômicos que o elegeram e
formaram a maioria para assegurar a sustentação do seu mandato.
A
crise climática estava no horizonte de uma parte da população brasileira. Os
alertas dos ambientalistas, ecologistas, feministas, população negra e outros
grupos na constante denúncia do racismo ambiental, contudo, foi
sistematicamente negado por outra parte da população. Agora, infelizmente, são
o cotidiano de populações inteiras. Nessa nova realidade, quem mais sofre são as mulheres, pessoas negras, comunidades
periféricas empobrecidas, historicamente empurradas para bairros distantes sem
infraestrutura, sem moradia adequada, sem trabalho, sem direitos.
Os
governos, com raras exceções de alguns prefeitos que se preocupam e investem em
prevenção e proteção, preferem ignorar os estudos sobre o clima e as suas
recomendações técnicas para lidar com a crise socioclimática e ambiental. O
Relatório do Painel Brasileiro de Mudanças do Clima, publicado em 2015, já
apontava a probabilidade de chuvas muito intensas no Rio Grande do Sul no ano
de 2023 e 2024. Já haviam ocorrido desastres climáticos de grandes proporções
na região serrana do Rio de Janeiro em 2011, no litoral de São Paulo em
2023, concomitantemente ao RS e no Maranhão, onde as chuvas deixaram mais de 30 cidades em estado de
emergência. É importante registrar que o maior nível de devastação do Bioma
Cerrado ocorreu no Maranhão, tudo para favorecer o plantio de soja. O estado de
Santa Catarina, principalmente no Vale do Itajaí, também sofre constantemente
com as enchentes nos últimos anos.
Ou
seja, os desastres ambientais estão acontecendo em larga escala em todo o país.
Ao mesmo tempo, assistimos à flexibilização das legislações
ambientais, a precarização dos órgãos públicos incumbidos da fiscalização,
monitoramento, prevenção e controle dos desastres. Tudo bem regado ao
negacionismo em relação às consequências dos desmatamentos, da mineração, do
extrativismo capitalista de todo o tipo. Para agravar ainda mais a situação, a
impunidade parece ser a regra após tragédias, como vimos em relação aos
responsáveis pelas catástrofes de Mariana e Brumadinho em Minas Gerais, da
Braskem em Maceió, entre outras. Os desastres espalham-se, aumentando as
vítimas de um sistema excludente que empurra os pobres para uma vida precária,
para serem os primeiros a morrer.
No
Congresso Nacional a boiada continua passando. São diversos projetos de lei da
“bancada do agro” para ampliar seu domínio e liberar à privatização os bens
comuns da natureza para ampliar seus lucros. Um dos mais impactantes trata-se
do PL n° 3334, de 2023, de autoria do Senador Jaime Bagattoli (PL/RO), que
propõe alterar o Código Florestal de 2012 para reduzir a área de preservação da
Amazônia Legal. Esse bloco de capitalistas negacionistas não tem nenhum
escrúpulo ou compromisso com o Brasil, já que seu único objetivo é aumentar o
lucro dos grupos econômicos e manter seu poder político em todas as esferas.
Para eles a preservação dos biomas, das praias, dos manguezais, dos rios, é
despesa, e explorar e devastar à exaustão é receita privada para poucos. Nunca
é tarde para dizer que esse bloco de parlamentares é o mesmo que ataca as
mulheres nos seus direitos, inclusive impedindo o acesso delas à justiça e aos
direitos reprodutivos e sexuais. São eles também que atacam os povos indígenas
e quilombolas nos seus direitos originários e de povos tradicionais a manterem
sua cultura e seus territórios ancestrais, bem como o acesso dessas populações
aos seus meios de viver.
A
participação ativa das mulheres na reconstrução do RS, pode se tornar um
exemplo para o Brasil – inclusive as próprias mulheres camponesas gaúchas, que
já praticam a agricultura sustentável interdependente entre humanos e natureza,
elas podem dizer e ensinar muito para reconstruir. As populações indígenas do
RS, pouco lembradas, também têm muito a dizer, especialmente com sua cosmovisão
que não separa humanos e natureza. As comunidades quilombolas, em resistência
contínua, também precisam ser ouvidas na reconstrução, por seu histórico de
sobrevivência. Em todos esses grupos, as mulheres atingidas pelas enchentes, as
que acolheram, alimentaram e continuarão cuidando, são a parte fundamental de
quem se reconstrói todos os dias e, por isso, precisam estar na primeira
fileira para opinar, fiscalizar e colocar seus projetos na reconstrução.
É
hora do Congresso Nacional que recebeu do Governo Federal a proposta a Lei de
Diretrizes Orçamentárias PLDO, N° 3 de 2024, que dispõe sobre os gastos e
investimentos do orçamento para o próximo ano, olhar para os interesses da
população atingida pelas enchentes priorizando a reconstrução com
responsabilidade socioambiental. Dessa forma, o Parlamento, que na sua maioria
tem tido como principal preocupação a defesa dos interesses dos capitalistas
extrativistas, fundamentalistas, pode passar a se comprometer com a
reconstrução do desastre que o negacionismo ambiental se encarregou de ampliar
em todas as dimensões. Estejamos atentas/es: o pessimismo é
reacionário, embota a nossa imaginação política, tornando mais fácil acreditar
na inevitabilidade do fim da vida no planeta do que na possibilidade de
construção de resistências e alternativas ao capitalismo patriarcal, racista e
ambientalmente insustentável. É hora de fortalecer as resistências e
mostrar a capacidade dos movimentos organizados em sonhar e fazer novos tempos,
começando agora, antes que as rapinas do liberalismo econômico extrativista
deem as cartas e fiquem ainda mais ricos às custas da vida das populações e da
natureza.
Fonte:
CFEMEA
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