O pedaço da Amazônia onde se fala japonês
"Olha a natureza. Aprende com a natureza."
As frases, ditas pelo
engenheiro florestal japonês Noboru Sakaguchi, apontavam a saída para a
catástrofe que havia se abatido sobre seus conterrâneos em Tomé-Açu, no
interior do Pará.
Uma praga nos anos
1970 dizimou as plantações das famílias japonesas que haviam formado, naquele
pedaço da Amazônia, a então terceira
maior colônia nipônica no Brasil.
Foi quando Sakaguchi,
na época diretor da cooperativa dos agricultores locais, pregou uma mudança
radical: em vez de cultivar uma só espécie, eles deveriam se espelhar na diversidade da Floresta Amazônica.
E deveriam aprender
com vizinhos que estavam em Tomé-Açu há mais tempo do que eles: os ribeirinhos.
"Ele (Sakaguchi)
via o ribeirinho produzindo com harmonia", conta à BBC News Brasil o
agricultor Michinori Konagano, membro da colônia e um dos principais discípulos
do ex-diretor da cooperativa.
Konagano, de 65 anos,
é um dos 46 mil japoneses que migraram do Japão para o Pará entre 1952 e 1965. Ele
veio com os pais, aos 2 anos de idade.
Da varanda espaçosa na
fazenda onde Konagano recebeu a equipe da BBC News Brasil, sente-se o aroma
agridoce do cacau em fermentação.
Guardadas em armazéns,
as amêndoas de maior qualidade são exportadas para fábricas de chocolate no
Japão.
A fazenda também
produz, em 230 hectares de área cultivada, vários outros tipos de frutas, como
açaí, cupuaçu e pitaya, além de madeira e óleos vegetais.
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"Colônia japonesa cria 'florestas de comida' no Pará e vira referência
contra desmatamento", Duration 16,19
Se hoje Konagano
convive com a abundância e sua propriedade é vista como referência na região,
ele conta que, na infância, chegou a passar fome.
"Perguntava para
minha mãe e meu pai: 'por que tem tanta fartura na natureza, mas nosso quintal
é pobre?'", diz.
Na época, a família
era adepta de outro modelo de produção, comum em grande parte da Amazônia:
derrubar a floresta e cultivar um só tipo de alimento, em monocultura.
"Hoje, eu me
sinto culpado por ter derrubado e queimado. A degradação foi muito grande
naquela época", lembra.
As coisas só começaram
a mudar quando, guiada por Sakaguchi, o diretor da cooperativa, a família de
Konagano adotou o novo modelo de produção inspirado nos ribeirinhos.
Segundo Konagano,
Sakaguchi notou que os ribeirinhos tinham ao redor de suas casas árvores
frutíferas de várias espécies que lhes davam colheitas ao longo do ano todo.
"Eles não tinham
tanto recurso financeiro, mas tinham uma vida saudável", diz Konagano.
As famílias japonesas
começaram a testar esse modo de produção, em escala maior e de forma
padronizada.
Nos campos de pimenta
arrasados pela praga fusariose, espalharam árvores de grande porte e várias
frutíferas, experimentando diferentes combinações.
Desde então, os campos
abertos e degradados de suas fazendas voltaram a ter aspecto de floresta.
Animais que tinham
sumido - como preguiças-reais, raposas e pacas - reapareceram.
E a comunidade, que
antes dependia de um só produto, passou a ter várias fontes de receita.
Ao longo do processo,
o grupo se tornou ainda um exemplo para pesquisadores e agricultores de vários
países que buscam alternativas a métodos agrícolas convencionais e que buscam
maneiras de gerar renda sem destruir a Amazônia
·
'Era só mata'
O êxito do novo
sistema fez Tomé-Açu recuperar parte da diversidade que tinha quando os primeiros
japoneses chegaram ali.
“Era só mata”, lembra
Hajime Yamada, última pessoa viva presente na primeira leva de imigrantes a
aportar em Tomé-Açu.
Hoje com 96 anos,
Yamada tinha 2 quando seus pais chegaram ao Brasil a bordo do navio Montevideo
Maru, em 1929.
Yamada mora em uma
imponente casa de madeira erguida nos tempos de bonança da pimenta-do-reino,
nos anos 1950.
Na construção de dois
andares, feita conforme antigas técnicas arquitetônicas japonesas, colunas e
vigas são unidas por encaixes, e não há pregos nem parafusos.
Retratos de seus
antepassados e quadros com ideogramas japoneses - condecorações recebidas por
seu papel na comunidade - enfeitam as paredes da sala.
A primeira casa de
Yamada em Tomé-Açu, no entanto, era bem diferente.
"Era uma barraca
coberta de cavaco, piso de chão. Só tinha sala, não tinha quarto. Pobre
mesmo", descreve.
Yamada conta que a
casa ficava no meio da floresta e recebia visitas de onças-pintadas, atraídas
pelas galinhas criadas pela família.
Questionado se temia o
felino, Yamada ri: "Eu tremia".
Ele mostra a foto de
uma onça abatida perto de sua casa por um caçador japonês.
"Essa chegou a
atacar um senhor brasileiro e quase o matou", lembra.
Yamada conta que seus
pais eram camponeses da Província de Hiroshima e deixaram o Japão rumo ao
Brasil em busca de uma vida melhor.
Desde 1895, os
governos dos dois países tinham um acordo que estimulava a vinda de japoneses
para o Brasil.
Com o pacto, o governo
brasileiro buscava suprir a falta de trabalhadores rurais após a abolição da
escravatura, em 1888.
Já o Japão queria
aliviar tensões sociais causadas pela pobreza no campo.
Os japoneses começaram
a chegar ao Brasil em 1908 e se concentraram em São Paulo.
Foi então que o
governador do Pará, Dionísio Bentes, pensou em atrair uma parte do grupo para
seu Estado, interessado em desenvolver a agricultura local.
Ele ofereceu aos
japoneses um lote de 600 mil hectares de floresta em Tomé-Açu e outros quatro
lotes menores nos municípios de Monte Alegre e Marabá, que ficam a centenas de
quilômetros de distância, em outros pontos do Estado.
As primeiras 43
famílias partiram do porto de Kobe, no centro do Japão, rumo ao Pará em 24 de
julho de 1929.
A viagem até Tomé-Açu
levou quase dois meses e teve baldeações no Rio de Janeiro e em Belém.
O trajeto entre a
capital paraense e o destino final, hoje transposto em pouco mais de 3 horas
por estradas asfaltadas, na época levava 12 horas e era todo percorrido por
rios.
Cada família recebeu
um lote de 25 hectares.
"A gente plantava
muita verdura, mas o brasileiro não comia muita verdura naquela época",
lembra Yamada.
Segundo ele, o gosto
nipônico por folhas era inclusive alvo de brincadeiras dos brasileiros, que
comparavam os japoneses a bichos-preguiça.
A convivência amigável
entre os grupos, porém, sofreu um abalo durante a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), quando o Brasil declarou guerra aos países do Eixo (Japão, Itália
e Alemanha) e impôs controles sobre imigrantes dos três países.
Em Tomé-Açu, os
japoneses passaram a ser vigiados de perto pelas autoridades.
"Se polícia
encontrava três japoneses conversando, eram presos. Encheram o xadrez",
diz Yamada.
Com o fim da guerra,
as restrições se encerraram. Mas Yamada não conseguiu festejar por descobrir
que, antes do fim do conflito, o Japão havia sofrido um ataque nuclear dos
Estados Unidos.
Uma das duas bombas
atômicas lançadas sobre o Japão destruiu a cidade natal de Yamada, Hiroshima.
"A bomba deixou
muita gente doida por aqui", lembra. "Se eu tivesse ficado lá, acho
que teria morrido também."
Ele conta que sua mãe
chorou por vários dias ao saber do ataque contra a cidade.
O trauma da guerra,
segundo ele, só foi superado nas décadas de 1950 e 1960 com a expansão das
lavouras de pimenta-do-reino.
Foi quando as famílias
puderam construir casas maiores, comprar caminhões e abrir comércios.
A riqueza atraiu para
Tomé-Açu migrantes de vários Estados. Hoje, japoneses e seus descendentes são
uma pequena parcela da população local de 67,5 mil habitantes.
Mas sinais de sua
presença são notados em vários pontos, como no templo budista de Tomé-Açu, nos
vários restaurantes japoneses da cidade e nos túmulos com ideogramas no
cemitério.
A maior marca que os
japoneses deixaram no município, no entanto, fica em sua zona rural e ganhou
até uma sigla: o Sistema Agroflorestal de Tomé-Açu (Safta).
·
'Mottainai'
Em sua varanda
perfumada pelo cacau em fermentação, Michinori Konagano diz que, ao
desenvolverem o sistema, as famílias nipo-brasileiras também resgataram
técnicas agrícolas ancestrais japonesas que estavam sendo abandonadas.
Para fertilizar suas
agroflorestas, várias famílias recorrem à liteira da mata, composta por folhas,
galhos e frutos em decomposição. Outras usam palha de arroz ou esterco de
animais.
Os métodos eram comuns
no Japão antes do advento da adubação química.
Como muitos
agricultores de Tomé-Açu também dispensam agrotóxicos, boa parte da produção da
comunidade é orgânica.
Konagano diz que as
técnicas de adubação se relacionam com a expressão japonesa
"mottainai" (勿体無い), que significa literalmente "que desperdício" e
costuma ser direcionada a crianças que deixam um último grão de arroz no prato.
O conceito, no
entanto, tem um sentido filosófico mais amplo e deriva de antigas crenças
budistas.
Em entrevista à BBC em
2020, Tatsuo Nanai, diretor de uma ONG japonesa criada para divulgar a
expressão, explica que o conceito "pode ser aplicado a tudo em nosso mundo
físico" e supõe "que os objetos não existem isoladamente, mas estão
conectados uns aos outros".
Konagano diz que um
dos exemplos da aplicação do conceito em sua fazenda se dá na colheita do
cacau.
Em vez de levar o
fruto inteiro para o armazém onde suas amêndoas são processadas, funcionários
abrem o cacau assim que ele é colhido.
As sementes são
separadas, e as cascas, lançadas ao pé das árvores, ajudando a fertilizar o
solo.
Também são usados na
adubação da fazenda resíduos de frutos processados. Nada se desperdiça.
·
Modelo em expansão
Para Osvaldo Kato,
pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, as agroflorestas geridas pelas
famílias nipo-brasileiras de Tomé-Açu são o maior e mais bem-sucedido
experimento econômico desse tipo no Brasil.
Natural de Tomé-Açu e
neto de japoneses, Kato é agrônomo com doutorado em Agricultura Tropical pela
Universidade de Göttingen, na Alemanha.
Na Embrapa desde 1979,
ele tem se dedicado a pesquisar e difundir sistemas agroflorestais pelo Brasil.
Kato conta que, nos
últimos anos, o método tem conquistado adeptos em diferentes partes do país,
assim como em outras nações latino-americanas e africanas.
Ele lista, entre as
vantagens econômicas do sistema, a diversificação das fontes de receita e a
economia com insumos externos, como adubos e pesticidas.
Entre os benefícios
ambientais, cita a capacidade de recuperar solos esgotados, a alta absorção de
carbono nas lavouras e maior biodiversidade.
Kato afirma que muitas
comunidades tradicionais e indígenas praticam variações desse método desde
tempos imemoriais - caso, aliás, dos ribeirinhos que inspiraram os japoneses de
Tomé-Açu.
Mas Kato diz que,
nesses casos, as comunidades costumam usar técnicas agrícolas para manejar
florestas.
Já os japoneses de
Tomé-Açu fazem o contrário. "Eles são agricultores e trouxeram a floresta
para dentro da agricultura", diz.
Um exemplo dessa
distinção é visual: nas agroflorestas de Tomé-Açu, os canteiros são plantados
em linhas retas, e as plantas são posicionadas conforme padrões regulares.
Já nas agroflorestas
de indígenas e ribeirinhos, roça e mata se misturam, e as intervenções humanas
se destacam menos na paisagem.
Segundo o pesquisador,
outro ponto que distingue Tomé-Açu de outras experiências em agrofloresta é a
preponderância do fator econômico.
"Eles
diversificaram a produção como estratégia econômica. Os ganhos ambientais foram
uma consequência", afirma.
Para ele, há um grande
potencial de expansão desses métodos, principalmente entre agricultores
familiares.
Os principais
entraves, segundo ele, são tecnológicos: como ainda não há muitas máquinas
adequadas a esse sistema, boa parte do trabalho tem de ser manual.
Outro desafio é
replicar o sistema cooperativista de Tomé-Açu, que, segundo Kato, também foi
fundamental para o sucesso da colônia.
A Cooperativa Agrícola
Mista de Tomé-Açu (CAMTA) hoje tem 172 cooperados e outros 1,8 mil agricultores
familiares cadastrados como fornecedores.
A cooperativa difunde
as melhores práticas entre seus membros e mantém uma agroindústria, construída
com um financiamento do governo japonês, para processar e embalar alimentos.
·
Desafios na sucessão
Mas, se há obstáculos
à expansão do modelo de Tomé-Açu para outras regiões, a continuidade dos
trabalhos nas fazendas de famílias nipo-brasileiras também enfrenta desafios.
Muitos filhos dos
agricultores concluem os estudos em Belém e não voltam para Tomé-Açu.
Outros cursam
faculdades em outras áreas, e há ainda os que resolvem migrar para o Japão, no
caminho contrário ao dos antepassados.
É o caso de Jenifer
Mineshita Miyagawa, de 26 anos. Nascida em Tomé-Açu, ela se formou em
Biomedicina e planeja passar alguns anos trabalhando no Japão para juntar algum
dinheiro.
Ela não tem qualquer
interesse em assumir a fazenda da família, adepta do sistema agroflorestal.
Seu pai, o agricultor
Tamó Mineshita, diz torcer para que algum de seus outros três filhos assuma a
propriedade.
"Se não tiver
sucessão, não tem jeito: é vender, arrumar outra profissão e ajudar os filhos
naquilo que decidirem", afirma.
Mas se as novas
gerações nipo-brasileiras de Tomé-Açu não quiserem seguir os passos de pais e
avós, a experiência da comunidade pode se perder? Quem cuidará do legado da
colônia?
Michinori Konagano
aponta possíveis saídas.
"Vejo uma
imensidão de gente necessitando de comida. Por que não passar nosso
conhecimento para todo mundo? Independente de ser da colônia japonesa ou
não", defende.
O agricultor tem posto
a ideia em prática. Konagano diz já ter recebido centenas de pesquisadores e
agricultores interessados em replicar seus métodos, e também viaja com
frequência para dar palestras e oficinas.
Assim, ele espera que
a sobrevivência do modelo criado pela comunidade não dependa de seus
descendentes.
"Eu tenho esse
olho puxado, mas me sinto mais brasileiro do que japonês."
Fonte: BBC News Brasil
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