sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Congresso evangélico convida pastor americano que defende escravidão

OS ORGANIZADORES do congresso mais importante do campo evangélico calvinista, a Consciência Cristã, têm se gabado de trazer esse ano ao Brasil um defensor contumaz da ideia de que a Bíblia autoriza a escravidão: o pastor americano Douglas Wilson. Líder da cada vez mais influente Igreja de Cristo, ele escreveu dois livros que buscam “tirar o estigma” do sistema escravista do sul dos Estados Unidos.

A tradição calvinista é uma linha do segmento evangélico guiada pelos ensinamentos de João Calvino, um dos nomes mais importantes da Reforma Protestante. Disputado por teólogos de diversas tendências, Calvino refletiu teologicamente sobre estado e política, governo e sociedade.

A Consciência Cristã acontecerá em Campina Grande, na Paraíba, no mês de fevereiro, já que ela é realizada no período de carnaval. O evento é organizado pela Visão Nacional para a Consciência Cristã, associação conservadora liderada por diversas igrejas evangélicas.

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No congresso, estão frequentemente os maiores nomes da direita evangélica calvinista, como os pastores Augustus Nicodemus, considerado uma espécie de “papa” entre os presbiterianos conservadores, e Franklin Ferreira, de posições mais agressivas contra o campo progressista e teólogos liberais.

Embora haja muitos palestrantes considerados moderados e não alinhados com o fundamentalismo, não se espera do congresso nada próximo de uma teologia progressista, defensora dos direitos humanos ou do diálogo interreligioso. Com a vinda de Douglas Wilson, porém, o congresso cruzará uma linha inaceitável – a da defesa aberta da naturalização da escravidão.

Wilson é um dos teólogos fundamentalistas mais reconhecidos da atualidade e exerce grande influência entre os conservadores reformados brasileiros. É, também, um dos principais nomes do nacionalismo cristão, fenômeno considerado por muitos especialistas como a maior ameaça à democracia dos Estados Unidos hoje – principalmente após a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2022.

O convite feito a Wilson, portanto, levanta muitas questões a serem consideradas no contexto brasileiro, algumas das quais vou explicar a vocês neste texto.

·        Escravidão teria dado certo se seguisse princípios bíblicos, defende Wilson

Na década de 1960, como reação contra o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, uma nova geração de teólogos ultraconservadores retomou e atualizou o pensamento do pastor calvinista Robert L. Dabney, capelão de um general confederado durante a Guerra Civil. 

Dabney via os negros como uma “raça moralmente inferior”, uma “mácula sórdida e alienígena” marcada por “mentira, roubo, embriaguez, preguiça, desperdício”. Nas palavras dele, “uma diferença insuperável de raça, feita por Deus e não pelo homem, torna claramente impossível para um homem negro ensinar e governar os cristãos brancos”.

Entre os teólogos que recuperaram seu pensamento está Rousas Rushdoony, que publicou em 1973 “Institutes of Biblical Law”, livro que deu as bases para a fundamentação teológica de uma sociedade “reconstruída” segundo o Antigo Testamento, com classes com direitos diferentes. Nele, Rushdoony opôs-se ao casamento interracial e atacou o igualitarismo.

Douglas Wilson é da geração de teólogos conservadores imediatamente posterior a esse movimento e um dos mais aguerridos defensores públicos da justificação bíblica para escravidão. 

Ele trabalhou pelo revisionismo histórico sobre o legado “positivo” da escravidão e sustenta a visão de que, se o sistema escravista do Sul tivesse sido fiel aos princípios bíblicos, teria funcionado harmoniosamente, ou desaparecido “pacificamente” com o tempo. 

Wilson chega a dizer que a vitória dos abolicionistas impediu, por exemplo, que africanos escravizados pudessem ir para lugares como o estado da Virgínia, onde ele acreditava que havia maiores condições de encontrarem “mestres piedosos”. Com isso, em suas palavras, “eles foram levados para lugares como o Haiti e Brasil, onde o tratamento dos escravos era simplesmente horrendo”.

A despeito de toda a densidade de documentos, dados e relatos sobre o período da escravidão, Wilson insiste na ideia de que os escravizados tinham uma dieta alimentar superior à de um cidadão americano médio hoje. 

Além disso, ainda segundo Wilson, seguindo a compreensão do pastor confederado Dabney, os maus tratos sofridos por alguns escravizados – como as chibatatadas, os estupros, açoites, enforcamento, e outros tipos de humilhação e tortura – “foram raros e pouco frequentes”.

Apoiador incondicional de Donald Trump, Wilson apoiou a fala do então presidente americano sobre o confronto entre neonazistas e manifestantes antirracistas em Charlottesville, na Virgínia, em 2017. 

Grupos de supremacistas brancos fizeram uma marcha de “orgulho confederado”, convocada pelo presidente do movimento de extrema direita neoconfederado Liga do Sul, Michael Hill, no seguinte tweet: “Se quiser defender a civilização do Sul e do Ocidente dos judeus e dos seus aliados de pele escura, esteja em Charlottesville no dia 12 de agosto”. 

Trump se recusou a reprovar a marcha de supremacistas brancos e afirmou que “havia culpa dos dois lados”, sendo fortemente criticado. Wilson, então, publicou a carta “Em louvor ao nosso presidente”, defendendo Trump e afirmando categoricamente: “Eu igualo o Black Lives Matter à Ku Klux Klan”. 

·        Nacionalismo cristão ameaça a democracia nos EUA e aqui

Além de defender a escravidão, Douglas Wilson ainda se identifica assumidamente com o nacionalismo cristão nos Estados Unidos. A ideia de uma cooptação total da ordem social por um cristianismo fundamentalista que deve orientar a sociedade política, moral, religiosa e culturalmente se tornou um risco político antidemocrático crescente.

Essa ideologia de extrema direita se vale de uma gramática religiosa para justificar sua visão de mundo e projeto de poder; uma mistura explosiva do radicalismo cristão com novos movimentos de supremacia branca e saudosistas do Sul confederado escravista.

Ela teve na eleição de Donald Trump um marco e está diretamente vinculada ao ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2022 – e também mostrou a sua cara brasileira no ataque às sedes dos três poderes em Brasília em 8 de janeiro de 2023

Mas, segundo Wilson postou no Twitter, “o nacionalismo cristão é uma resposta cristã, baseada na Bíblia, à loucura dos nossos tempos”. Por isso, “os cristãos devem, portanto, desejar que as escolhas morais da sociedade a que pertencem sejam fundamentadas na vontade do Deus verdadeiro, e não na vontade dos ídolos”. 

Aqui, não cabe nenhuma ilusão ou visão de um evangelho “genuíno”. O “Deus verdadeiro” é o eufemismo escolhido para um projeto político que não aceita que qualquer outra orientação ideológica, mesmo cristã, paute a sociedade.

Nenhuma outra religiosidade deve ter parte na construção e estruturação dos valores morais e culturais. Nessa guerra, portanto, os “ídolos” são todos os outros, inclusive a própria democracia.

·        Extrema direita evangélica brasileira dobra aposta

A escolha de Douglas Wilson para ser o principal palestrante da Consciência Cristã não foi recebida com festa por todos. Mesmo entre evangélicos conservadores nos Estados Unidos, ele não é uma unanimidade e chega a ser considerado um líder polêmico. 

A pergunta que fica, então, é: por que a Consciência Cristã escolhe como convidado essa figura nesse momento político tenso tanto aqui quanto nos Estados Unidos? 

Lá, Trump ganha força enquanto a extrema direita evangélica se convence de que ele é ideal para guiar o país na “guerra cultural” contra a esquerda e movimentos antirracistas. Aqui, com a vinda de Wilson, a nossa direita religiosa mostra estar em perfeita sincronia com a americana. 

Veremos em novembro se essa força se sustentará – e, nos meses e anos seguintes, como repercutirá por aqui.

 

Ø  BOLSONARISTAS FAZEM FORÇA-TAREFA SECRETA PARA LEVAR PAUTAS EXTREMISTAS À CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO

 

UMA MOBILIZAÇÃO SECRETA de grupos bolsonaristas está se preparando para influenciar a Conferência Nacional de Educação, a Conae, com pautas de extrema direita. O objetivo declarado da força-tarefa é “formar famílias em todos os estados brasileiros” para lutar contra o “aparelhamento ideológico da educação”. 

Para isso, os extremistas levarão a Brasília, onde a etapa nacional da Conae ocorre, entre 28 e 30 de janeiro, na Universidade de Brasília, temas como homeschooling e o Escola Sem Partido.

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A Conae é um evento convocado pelo Fórum Nacional de Educação, um órgão de participação da sociedade civil nas políticas do Ministério da Educação, com o objetivo de construir o Plano Nacional de Educação, o PNE, para o período de 2024 a 2034. 

A conferência tem como foco principal a promoção de uma educação inclusiva e comprometida com o desenvolvimento sustentável, mas a chamada “Força Tarefa Conae” promete direcionar os debates para pautas alinhadas com a extrema direita.

Por meio de mais de 40 grupos no WhatsApp, a força-tarefa bolsonarista está convocando participantes para uma série de palestras e atividades com especialistas na área da educação. Essas palestras, que começaram no último 8 de janeiro, apresentam um cronograma extenso, incluindo temáticas como “crise de autoridade na educação” e “opção de gênero” – um termo que, por si só, já denota uma visão preconceituosa do tema, além de ser condenado por especialistas.

Apesar do engajamento de centenas de militantes bolsonaristas por meio do WhatsApp, chama a atenção que o esforço não tem sido divulgado em redes sociais abertas, como o Twitter e o Facebook – o que demonstra que a incidência na Conae tem um fator “elemento surpresa”, para pegar desprevenidos o governo Lula e os participantes da conferência. 

Uma das principais estratégias é “denunciar a ditadura educacional do texto referência” do Plano Nacional de Educação, que será votada no Conae.

Entre os palestrantes confirmados para “qualificar” a participação dos patriotas na Conae estão acadêmicos de extrema direita, como Inez Augusto Borges, Adriana Marra e Fernando Nassi Nader. Cada um deles aborda temas específicos. São eles, respectivamente: educação cristã, crise de autoridade na educação e presença da família na educação. Os assuntos, segundo a organização, têm “relevância para a educação e a família brasileira”. 

As atividades do grupo têm apoio da Associação Nacional de Educação Domiciliar e da Confederação Nacional das Associações de Pais de Alunos, entidades de extrema direita engajadas no tema da educação – a última, inclusive, integra o Fórum Nacional de Educação, responsável pela convocação da Conae.

·        Bolsonaristas organizam frentes de trabalho para a Conae

Os participantes dos 47 grupos criados na comunidade do WhatsApp da “Força Tarefa Conae” estão sendo instigados a se organizar por frentes de trabalho, relacionadas a diferentes temas educacionais, e a se reunirem virtualmente para discutir estratégias de incidência na Conae. 

A mobilização sugere um esforço concentrado para direcionar as discussões da conferência para visões conservadoras – e, mais que isso, tumultuar o evento de participação social da gestão Lula.

A força-tarefa mobiliza adeptos para influenciar a Conae com uma diversidade impressionante de frentes de trabalho, cada uma focada em aspectos distintos da educação.

Desde a educação infantil até questões mais complexas, como gênero e pluralidade pedagógica, a variedade de frentes revela uma tentativa coordenada de abordar todos os aspectos da educação sob uma ótica ideológica específica. Há até uma frente chamada “agronegócio”. 

Além disso, há pessoas organizadas para se dedicarem à produção de materiais, como panfletos, manifestos, apostilas e vídeos, visando disseminar determinadas ideias no campo educacional.

Aspectos controversos, como homeschooling e o Escola Sem Partido, são tratados como frentes específicas, sugerindo uma intenção deliberada de promover os debates durante a Conae – sendo que, na programação oficial do evento, não há espaço para esses temas.

A estratégia da “Força Tarefa Conae” planeja ainda, até a data da etapa nacional, ações concomitantes, como reuniões por videochamada, a criação de grupos específicos por estado e a formação de líderes para atuarem localmente. 

O aparato organizacional sugere um esforço coordenado para ampliar a influência dessas frentes não apenas no âmbito da Conae, mas também em estados e municípios, depois da conferência.

·        Força-tarefa na educação é ‘sintoma preocupante do extremismo’

O Intercept Brasil ouviu a coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, para que ela analisasse as ações da força-tarefa bolsonarista. Segundo ela, a mobilização é um “sintoma preocupante” de um movimento mais amplo na sociedade brasileira e global.

“Esse movimento tem sido acentuado por extremismos de direita, que reagem de maneira hostil a políticas voltadas para garantia de direitos, equidade e liberdades individuais. Esta reação tem gerado a ascensão de populismos extremistas de direita, movimentos reacionários e violentos, que buscam minar os avanços conquistados em prol de uma sociedade mais inclusiva e justa”, comentou.

Pellanda apontou, no entanto, que os bolsonaristas podem ter chegado “tarde demais” ao processo de participação. “É notável que esse grupo, pequeno diante do tamanho da Conferência, foi pego de “calças curtas”, avaliou.

“Sua chegada tardia ao processo conferencial resultou na falta de representação significativa nas etapas municipais, estaduais e agora para a nacional – dado que é preciso se eleger desde a etapa municipal para chegar a delegado da nacional, por fim –, demonstrando uma desconexão com o amplo espectro do campo educacional”, disse ela.

A coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação afirmou ainda que “a tentativa, portanto, passa mais por organizar uma minoria e tentar cooptar mais delegados para sua agenda que de fato com potencial de emplacar retrocessos”. 

Segundo ela, a maioria das emendas analisadas pela relatoria da Conae, da qual a própria Pellanda faz parte, “não reflete o escopo retrógrado proposto por esse grupo, indicando que suas ideias não encontram respaldo na maioria do setor educacional”.

 

Fonte: The Intercept

 

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