Ângela Carrato: Semipresidencialismo, nova tentativa de golpe contra a
democracia e a vontade dos eleitores
Não foram exatamente bons para o presidente Lula os
primeiros dias de retorno ao trabalho.
Após duas semanas afastado, recuperando-se de
cirurgia no quadril, ele se viu obrigado, mais uma vez, a atender ao apetite
insaciável do “Centrão”, eufemismo para designar o bloco composto pela direita
e extrema-direita no Congresso Nacional.
Liderados pelo fisiológico e oportunista Arthur
Lira, o “Centrão” demonstra não ter limite na Câmara dos Deputados. Tanto que
Lula se viu compelido a trocar a então presidente da Caixa Econômica Federal
(CEF), Rita Serrano, por Antônio Vieira Fernandes indicado por Lira.
Caso continuasse resistindo à mudança, medidas
econômicas essenciais para o governo não seriam aprovadas naquela Casa.
Vieira Fernandes, como tem destacado a mídia
corporativa brasileira, é servidor de carreira da CEF, mas não foi esse aspecto
que pesou para sua nomeação. O fundamental é a sua ligação histórica ao
Progressistas, ao qual Lira é filiado. Até onde se sabe, o governo não entregou
a CEF de “porteira fechada”.
É por isso que as pressões continuam. Lira quer
todas as diretorias deste importante banco público.
Seu filho, Arthur Lira, de 23 anos, inclusive é um
dos sócios da Omnia 360, empresa responsável por representar veículos de mídia
que participam de campanhas publicitárias da Caixa e de outros órgãos públicos.
Fato que explica porque Lira pai e Lira filho são
tão “prestigiados” por esta mídia, que se diz favorável ao “estado mínimo”, mas
quer para si sempre o “estado máximo”.
A mídia corporativa, que vive cobrando de Lula
“maior presença de mulheres” no governo curiosamente não se abalou com a
demissão de Rita.
Ao contrário. Apressou-se em informar que Vieira
Fernandes é economista e funcionário de carreira da CEF, coisa que a demitida
também era.
O episódio serviu para desmascarar a serviço de
quem está grande parte dos defensores das “pautas identitárias”. Mesmo Rita
tendo mencionado “misoginia” após deixar o cargo, suas palavras não tiveram
qualquer eco.
Essa foi a terceira alteração feita por Lula em seu
time, antes de completar um ano de governo.
A primeira minirreforma ministerial aconteceu no
início de setembro, para acomodar indicados por Lira.
No lugar da competente Ana Moser no ministério do
Esporte entrou o obscuro deputado federal André Fufuca (PP-MA).
Outro apaniguado por Lira, o deputado federal
Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) assumiu a vaga de Márcio França (PSB-SP),
que foi deslocado do ministério de Portos e Aeroportos para o do
Empreendedorismo e da Empresa de Pequeno Porte, criado para acomodá-lo.
A contrariedade de Lula ficou visível ao optar por
empossar seus novos auxiliares sem as solenidades de praxe.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, é outro que
está na mira do “Centrão”.
Do nada, passaram a circular rumores de que ele
estaria entre as “possíveis opções” de Lula para a vaga aberta no STF, com a
aposentadoria da ministra Rosa Weber.
Num primeiro momento, tais rumores pareciam não
fazer sentido. Dino, além de excelente ministro, foi peça chave para a derrota
da tentativa de golpe em 8 de janeiro.
Se dependesse apenas de Lula, substituir Dino não
estaria sequer em pauta.
Está por pressão do “Centrão”, dos militares e
desta mídia, que trata Lira como uma espécie de “primeiro-ministro” e passa
pano para os militares. Como Dino não tem dado trégua aos golpistas, sua
atuação atinge em cheio tais interesses.
Por Dino ser um ministro exemplar, estão fazendo de
tudo para que ele “caia para cima”, como se diz no jargão político.
Coincidentemente, os rumores sobre possível mudança
na pasta da Justiça circulam acompanhados da possibilidade de Lula desmembrar o
ministério ocupado por Dino em dois: Justiça e Segurança Pública.
Os principais especialistas na área e o próprio
Dino são contra.
O desmembramento, que agradaria aos militares, é
defendido pela turma do “Centrão”, que quer ter sob o seu controle a Polícia
Federal e o aparato de segurança responsável pela relação com as polícias
militares estaduais.
Eles estão incomodados com a eficiência que a
Polícia Federal vem demonstrando. Postura bem diferente do que se verificou
durante o governo Bolsonaro.
No podcast “Conversa com o Presidente” da
terça-feira (24/10) Lula falou pela primeira vez sobre o assunto, admitindo
que, diante da violência no Rio de Janeiro e em outros estados, avalia a
possibilidade de criar um ministério específico.
Golpistas e milicianos devem ter comemorado, ao
mesmo tempo em que os setores progressistas percebem o cerco se fechando.
O fogo ateado em 35 ônibus no início da semana no
Rio de Janeiro e a chacina a que foram vítimas médicos na Barra da Tijuca, com
três mortos e um ferido, são episódios atribuídos a disputas entre facções
milicianas.
Pode ser, mas pode ser muito mais. Algo como recado
para o ministro da Justiça, para Lula e para os setores progressistas.
Um dos médicos assassinados era irmão da deputada
Sâmia Bomfim, esposa do também deputado Glauber Braga, ambos do PSOL,
parlamentares dos mais combativos em relação aos milicianos e aos golpistas.
Há quatro dias, Sâmia anunciou que vai licenciar-se
de suas funções, sem prazo para retorno.
O ministério da Justiça e o próprio Lula têm se
movimentado com extremo cuidado em se tratando dos golpistas e dos milicianos.
No Rio de Janeiro, onde esses setores são
praticamente sinônimo de bolsonarismo, o governador é o fraquíssimo Cláudio
Castro, pastor e cantor gospel, que só chegou ao cargo e foi reeleito graças ao
clã do Jair.
Em São Paulo e em Minas Gerais, estados que, com o
Rio, formam o triângulo mais influente do país, os governadores também são
bolsonaristas, respectivamente Tarcísio de Freitas e Romeu Zema, figuras que
não perdem oportunidade para fustigar Lula.
Mas as pressões para reduzir os poderes de Lula não
se localizam apenas na Câmara dos Deputados ou entre esses governadores.
Também o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), vem dando sinais de que quer mais poder. Um claro indício foi a
decisão de colocar em votação o Marco Temporal, que acabava de ser derrotado
pelo STF.
Num primeiro momento, a postura de Pacheco foi
vista como disputa de poder com o STF. Ela vai bem além. Embutido na aprovação
do Marco Temporal estava atritar Lula com os ruralistas, uma vez que ele
dificilmente não vetaria a medida no todo ou em parte, como aconteceu.
Pacheco vem assumindo assim postura nitidamente
conservadora ao posicionar-se também contra a descriminalização de qualquer
tipo de droga (na contramão do que acontece no mundo), num óbvio aceno à
direita e à extrema-direita e suas pautas moralistas, buscando cacifar-se para
a disputa pelo governo de Minas Gerais. Ele espera contar com o agronegócio
para bancar sua campanha.
Outro exemplo de que senadores ligados ao Centrão
também começam a pressionar o governo Lula foi a derrota do nome indicado pelo
Palácio do Planalto para o comando da Defensoria Pública da União.
Novos nomes importantes para o governo podem
enfrentar semelhante recusa. Para cada aprovação do interesse do governo, Lula
terá que ceder ao fisiologismo de “nobres” senadores?
O próprio STF, atacado pelos golpistas em 8 de
janeiro, com a chegada de Luís Roberto Barroso à sua presidência, começa a
fazer uma inflexão. A título de evitar “traumas para a democracia”, Barroso
volta a falar em semipresidencialismo nas eleições de 2026.
O trauma a que se refere, para defender a medida,
atende pelo nome de golpe contra Dilma Rousseff em 2016, por ele denominado
impeachment.
O outro trauma ao qual possivelmente queira se
referir é a possível reeleição de Lula em 2026.
Mesmo tecendo loas à democracia e à Constituição em
sua prestigiada posse há pouco mais de um mês, não se deve perder de vista que
Barroso foi um lavajatista de primeira hora.
Indicado por Dilma, ele votou contra a Constituição
no caso da prisão depois da condenação em segunda instância, possibilitando o
encarceramento e a retirada de Lula do processo eleitoral em 2018.
Para alguns, Barroso é o tipo de pessoa que adora
aplausos e ama jogar para a plateia.
Durante evento no Reino Unido, meses antes da
eleição de 2018, ele saiu-se com a seguinte pérola: o Brasil é uma “sociedade
viciada em Estado”, com uma cultura de “desigualdade” e “desonestidade”
institucionalizada.
Além de populista e simplória, sua fala parece
esquecer que foi a completa falta de Estado que criou as milícias e as facções
criminosas.
Sua fala, em absoluto condiz com a posição de um
ministro do STF de um país onde a promoção social, através de programas
governamentais, havia conseguido retirar da fome e da miséria milhões de
pessoas.
Dizer que o Brasil é uma sociedade viciada em
Estado faz coro com o “estado mínimo” defendido pelo golpista Michel Temer,
ocupante do Palácio do Planalto na época, e contribuiu para colocar água no
moinho de Bolsonaro, eleito para a presidência da República naquele mesmo ano.
Sintomaticamente, é esse Barroso quem volta a
relançar a ideia agora.
O semipresidencialismo que defende nada mais é do
que o velho parlamentarismo experimentado pelo Brasil em 1962 e derrotado em
dois plebiscitos, em 1963 e 1993.
O sistema semipresidencialista prevê um presidente
eleito por sufrágio universal direto, um chefe de estado com prerrogativas
específicas; e um governo, composto pelo primeiro-ministro e pelo conselho de
ministros, responsável perante o parlamento.
Para viabilizar o golpe contra a presidente Dilma,
o Congresso Nacional agiu como se no Brasil já vigorasse o
semipresidencialismo, uma vez que mesmo sem crime de responsabilidade, ela foi
deposta por não contar com o apoio da maioria dos parlamentares.
Defender o semiparlamentarismo significa, em outras
palavras, encontrar uma maneira para reduzir a importância da escolha do
eleitor para a presidência da República.
Significa encontrar uma maneira para ampliar o
poder aos quais os Liras e os Pachecos servem.
O que Barroso propõe nada mais é do que o
rebaixamento do valor do voto direto para presidente e o empoderamento do que
há de mais conservador na sociedade.
Um dos tormentos para a classe dominante brasileira
tem sido não conseguir eleger seus representantes para o mais alto cargo da
República. Vide as seguidas derrotas dos tucanos José Serra, Geraldo Alckmin e
Aécio Neves para candidatos petistas.
Quanto ao Congresso Nacional, seus integrantes, a
cada eleição, se mostram mais conservadores e reacionários, impulsionados pela
atuação dos lobbies do agronegócio, dos especuladores financeiros nacionais e
internacionais, das armas e das igrejas neopentecostais.
Em síntese pelo poder do dinheiro.
É importante lembrar que o parlamentarismo ou o
semipresidencialismo são sempre lembrados no Brasil quando políticos
progressistas estão prestes a chegar ao poder ou se teme que sejam reeleitos.
Foi assim quando Jânio Quadros renunciou, em 1961, e seu vice, João Goulart,
assumiu o poder.
Foi ventilado no primeiro governo Lula e volta à
cena agora, quando a classe dominante já perde o sono diante da possibilidade
dele ser candidato em 2026.
Como se tudo isso não bastasse, a mídia
corporativa, também dá sua contribuição para tentar complicar a vida do governo
Lula. Em encontro com jornalistas na sexta-feira (27/10), Lula afirmou que o
déficit nas contas públicas este ano não será zero, como chegou a mencionar
meses atrás.
A informação é relevante, mas está longe de
sinalizar problemas para a economia. Em países como os Estados Unidos, esse
déficit é altíssimo e nem por isso a economia deixa de funcionar dentro dos
padrões esperados.
Para quem não sabe, a dívida pública do governo
estadunidense em relação ao PIB em 2022 foi de 123,4%. Já a brasileira, deve
fechar este ano perto dos 75% do PIB.
Não se alcançar, como queria Lula, o déficit zero
nas contas neste primeiro ano de governo e diante da pesada herança
bolsonarista, não indica nada que possa justificar reduzir ou cortar
investimentos em programas que levem ao desenvolvimento, como o PAC. Mesmo
assim, foi o bastante para a mídia corporativa reagir de maneira furiosa.
Em editorial intitulado “Lula sabota o país”, a
Folha de S. Paulo, no sábado (28/10), relata não só o que considera “infelizes
discursos de Lula”, como tenta atritar o presidente com o mercado financeiro e
com o seu próprio ministro da Economia, Fernando Haddad. Posição da Folha vem
sendo seguida Rádio CBN, do grupo Globo.
Ao contrário de se constituírem em fatos isolados, as
ações de Lira, de Pacheco, dos militares, dos milicianos, dos três
governadores, ministro Barroso e da própria mídia não se constituem em fatos
isolados.
Elas visam tolher e desgastar o governo Lula junto
à opinião pública. Até agora não tinham obtido sucesso, mesmo que a mais
recente pesquisa Quaest, divulgada na quinta-feira (26/10) deva servir como
sinal de alerta.
Houve, pela primeira vez, um recuo na aprovação do
atual governo, com os que o avaliam positivamente somando 38%, os que o
consideram regular 29%, enquanto outros 29% dos entrevistados deram avaliação
negativa e 4% não souberam responder. A queda foi de quatro pontos em relação à
avaliação anterior.
Já a aprovação do trabalho pessoal de Lula teve
queda maior: era de 60% em agosto e agora está em 54%.
Fatores externos como as guerras na Ucrânia e o
massacre de Israel contra os palestinos influem nestas avaliações, uma vez que
o temor dos reflexos na economia impactam na popularidade de qualquer governo.
Seja como for, talvez tenha chegado a hora de Lula
não enfrentar mais a situação sozinho e contar para a população o que está
acontecendo.
Não cabe ao Legislativo assumir funções que são do
Executivo. Não cabe a parlamentares coagirem o governo para indicar ministros,
não cabe a governadores ou a integrantes do STF atuarem, mesmo que
disfarçadamente, contra a democracia e contra governos democráticos eleitos.
Não é aceitável que à mídia corporativa brasileira trabalhe contra os
interesses da maioria da população.
Povo na redes e rua é sempre o melhor antidoto para
golpistas.
Fonte: Viomundo
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