sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Ângela Carrato: Semipresidencialismo, nova tentativa de golpe contra a democracia e a vontade dos eleitores

Não foram exatamente bons para o presidente Lula os primeiros dias de retorno ao trabalho.

Após duas semanas afastado, recuperando-se de cirurgia no quadril, ele se viu obrigado, mais uma vez, a atender ao apetite insaciável do “Centrão”, eufemismo para designar o bloco composto pela direita e extrema-direita no Congresso Nacional.

Liderados pelo fisiológico e oportunista Arthur Lira, o “Centrão” demonstra não ter limite na Câmara dos Deputados. Tanto que Lula se viu compelido a trocar a então presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), Rita Serrano, por Antônio Vieira Fernandes indicado por Lira.

Caso continuasse resistindo à mudança, medidas econômicas essenciais para o governo não seriam aprovadas naquela Casa.

Vieira Fernandes, como tem destacado a mídia corporativa brasileira, é servidor de carreira da CEF, mas não foi esse aspecto que pesou para sua nomeação. O fundamental é a sua ligação histórica ao Progressistas, ao qual Lira é filiado. Até onde se sabe, o governo não entregou a CEF de “porteira fechada”.

É por isso que as pressões continuam. Lira quer todas as diretorias deste importante banco público.

Seu filho, Arthur Lira, de 23 anos, inclusive é um dos sócios da Omnia 360, empresa responsável por representar veículos de mídia que participam de campanhas publicitárias da Caixa e de outros órgãos públicos.

Fato que explica porque Lira pai e Lira filho são tão “prestigiados” por esta mídia, que se diz favorável ao “estado mínimo”, mas quer para si sempre o “estado máximo”.

A mídia corporativa, que vive cobrando de Lula “maior presença de mulheres” no governo curiosamente não se abalou com a demissão de Rita.

Ao contrário. Apressou-se em informar que Vieira Fernandes é economista e funcionário de carreira da CEF, coisa que a demitida também era.

O episódio serviu para desmascarar a serviço de quem está grande parte dos defensores das “pautas identitárias”. Mesmo Rita tendo mencionado “misoginia” após deixar o cargo, suas palavras não tiveram qualquer eco.

Essa foi a terceira alteração feita por Lula em seu time, antes de completar um ano de governo.

A primeira minirreforma ministerial aconteceu no início de setembro, para acomodar indicados por Lira.

No lugar da competente Ana Moser no ministério do Esporte entrou o obscuro deputado federal André Fufuca (PP-MA).

Outro apaniguado por Lira, o deputado federal Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) assumiu a vaga de Márcio França (PSB-SP), que foi deslocado do ministério de Portos e Aeroportos para o do Empreendedorismo e da Empresa de Pequeno Porte, criado para acomodá-lo.

A contrariedade de Lula ficou visível ao optar por empossar seus novos auxiliares sem as solenidades de praxe.

O ministro da Justiça, Flávio Dino, é outro que está na mira do “Centrão”.

Do nada, passaram a circular rumores de que ele estaria entre as “possíveis opções” de Lula para a vaga aberta no STF, com a aposentadoria da ministra Rosa Weber.

Num primeiro momento, tais rumores pareciam não fazer sentido. Dino, além de excelente ministro, foi peça chave para a derrota da tentativa de golpe em 8 de janeiro.

Se dependesse apenas de Lula, substituir Dino não estaria sequer em pauta.

Está por pressão do “Centrão”, dos militares e desta mídia, que trata Lira como uma espécie de “primeiro-ministro” e passa pano para os militares. Como Dino não tem dado trégua aos golpistas, sua atuação atinge em cheio tais interesses.

Por Dino ser um ministro exemplar, estão fazendo de tudo para que ele “caia para cima”, como se diz no jargão político.

Coincidentemente, os rumores sobre possível mudança na pasta da Justiça circulam acompanhados da possibilidade de Lula desmembrar o ministério ocupado por Dino em dois: Justiça e Segurança Pública.

Os principais especialistas na área e o próprio Dino são contra.

O desmembramento, que agradaria aos militares, é defendido pela turma do “Centrão”, que quer ter sob o seu controle a Polícia Federal e o aparato de segurança responsável pela relação com as polícias militares estaduais.

Eles estão incomodados com a eficiência que a Polícia Federal vem demonstrando. Postura bem diferente do que se verificou durante o governo Bolsonaro.

No podcast “Conversa com o Presidente” da terça-feira (24/10) Lula falou pela primeira vez sobre o assunto, admitindo que, diante da violência no Rio de Janeiro e em outros estados, avalia a possibilidade de criar um ministério específico.

Golpistas e milicianos devem ter comemorado, ao mesmo tempo em que os setores progressistas percebem o cerco se fechando.

O fogo ateado em 35 ônibus no início da semana no Rio de Janeiro e a chacina a que foram vítimas médicos na Barra da Tijuca, com três mortos e um ferido, são episódios atribuídos a disputas entre facções milicianas.

Pode ser, mas pode ser muito mais. Algo como recado para o ministro da Justiça, para Lula e para os setores progressistas.

Um dos médicos assassinados era irmão da deputada Sâmia Bomfim, esposa do também deputado Glauber Braga, ambos do PSOL, parlamentares dos mais combativos em relação aos milicianos e aos golpistas.

Há quatro dias, Sâmia anunciou que vai licenciar-se de suas funções, sem prazo para retorno.

O ministério da Justiça e o próprio Lula têm se movimentado com extremo cuidado em se tratando dos golpistas e dos milicianos.

No Rio de Janeiro, onde esses setores são praticamente sinônimo de bolsonarismo, o governador é o fraquíssimo Cláudio Castro, pastor e cantor gospel, que só chegou ao cargo e foi reeleito graças ao clã do Jair.

Em São Paulo e em Minas Gerais, estados que, com o Rio, formam o triângulo mais influente do país, os governadores também são bolsonaristas, respectivamente Tarcísio de Freitas e Romeu Zema, figuras que não perdem oportunidade para fustigar Lula.

Mas as pressões para reduzir os poderes de Lula não se localizam apenas na Câmara dos Deputados ou entre esses governadores.

Também o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), vem dando sinais de que quer mais poder. Um claro indício foi a decisão de colocar em votação o Marco Temporal, que acabava de ser derrotado pelo STF.

Num primeiro momento, a postura de Pacheco foi vista como disputa de poder com o STF. Ela vai bem além. Embutido na aprovação do Marco Temporal estava atritar Lula com os ruralistas, uma vez que ele dificilmente não vetaria a medida no todo ou em parte, como aconteceu.

Pacheco vem assumindo assim postura nitidamente conservadora ao posicionar-se também contra a descriminalização de qualquer tipo de droga (na contramão do que acontece no mundo), num óbvio aceno à direita e à extrema-direita e suas pautas moralistas, buscando cacifar-se para a disputa pelo governo de Minas Gerais. Ele espera contar com o agronegócio para bancar sua campanha.

Outro exemplo de que senadores ligados ao Centrão também começam a pressionar o governo Lula foi a derrota do nome indicado pelo Palácio do Planalto para o comando da Defensoria Pública da União.

Novos nomes importantes para o governo podem enfrentar semelhante recusa. Para cada aprovação do interesse do governo, Lula terá que ceder ao fisiologismo de “nobres” senadores?

O próprio STF, atacado pelos golpistas em 8 de janeiro, com a chegada de Luís Roberto Barroso à sua presidência, começa a fazer uma inflexão. A título de evitar “traumas para a democracia”, Barroso volta a falar em semipresidencialismo nas eleições de 2026.

O trauma a que se refere, para defender a medida, atende pelo nome de golpe contra Dilma Rousseff em 2016, por ele denominado impeachment.

O outro trauma ao qual possivelmente queira se referir é a possível reeleição de Lula em 2026.

Mesmo tecendo loas à democracia e à Constituição em sua prestigiada posse há pouco mais de um mês, não se deve perder de vista que Barroso foi um lavajatista de primeira hora.

Indicado por Dilma, ele votou contra a Constituição no caso da prisão depois da condenação em segunda instância, possibilitando o encarceramento e a retirada de Lula do processo eleitoral em 2018.

Para alguns, Barroso é o tipo de pessoa que adora aplausos e ama jogar para a plateia.

Durante evento no Reino Unido, meses antes da eleição de 2018, ele saiu-se com a seguinte pérola: o Brasil é uma “sociedade viciada em Estado”, com uma cultura de “desigualdade” e “desonestidade” institucionalizada.

Além de populista e simplória, sua fala parece esquecer que foi a completa falta de Estado que criou as milícias e as facções criminosas.

Sua fala, em absoluto condiz com a posição de um ministro do STF de um país onde a promoção social, através de programas governamentais, havia conseguido retirar da fome e da miséria milhões de pessoas.

Dizer que o Brasil é uma sociedade viciada em Estado faz coro com o “estado mínimo” defendido pelo golpista Michel Temer, ocupante do Palácio do Planalto na época, e contribuiu para colocar água no moinho de Bolsonaro, eleito para a presidência da República naquele mesmo ano.

Sintomaticamente, é esse Barroso quem volta a relançar a ideia agora.

O semipresidencialismo que defende nada mais é do que o velho parlamentarismo experimentado pelo Brasil em 1962 e derrotado em dois plebiscitos, em 1963 e 1993.

O sistema semipresidencialista prevê um presidente eleito por sufrágio universal direto, um chefe de estado com prerrogativas específicas; e um governo, composto pelo primeiro-ministro e pelo conselho de ministros, responsável perante o parlamento.

Para viabilizar o golpe contra a presidente Dilma, o Congresso Nacional agiu como se no Brasil já vigorasse o semipresidencialismo, uma vez que mesmo sem crime de responsabilidade, ela foi deposta por não contar com o apoio da maioria dos parlamentares.

Defender o semiparlamentarismo significa, em outras palavras, encontrar uma maneira para reduzir a importância da escolha do eleitor para a presidência da República.

Significa encontrar uma maneira para ampliar o poder aos quais os Liras e os Pachecos servem.

O que Barroso propõe nada mais é do que o rebaixamento do valor do voto direto para presidente e o empoderamento do que há de mais conservador na sociedade.

Um dos tormentos para a classe dominante brasileira tem sido não conseguir eleger seus representantes para o mais alto cargo da República. Vide as seguidas derrotas dos tucanos José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves para candidatos petistas.

Quanto ao Congresso Nacional, seus integrantes, a cada eleição, se mostram mais conservadores e reacionários, impulsionados pela atuação dos lobbies do agronegócio, dos especuladores financeiros nacionais e internacionais, das armas e das igrejas neopentecostais.

Em síntese pelo poder do dinheiro.

É importante lembrar que o parlamentarismo ou o semipresidencialismo são sempre lembrados no Brasil quando políticos progressistas estão prestes a chegar ao poder ou se teme que sejam reeleitos. Foi assim quando Jânio Quadros renunciou, em 1961, e seu vice, João Goulart, assumiu o poder.

Foi ventilado no primeiro governo Lula e volta à cena agora, quando a classe dominante já perde o sono diante da possibilidade dele ser candidato em 2026.

Como se tudo isso não bastasse, a mídia corporativa, também dá sua contribuição para tentar complicar a vida do governo Lula. Em encontro com jornalistas na sexta-feira (27/10), Lula afirmou que o déficit nas contas públicas este ano não será zero, como chegou a mencionar meses atrás.

A informação é relevante, mas está longe de sinalizar problemas para a economia. Em países como os Estados Unidos, esse déficit é altíssimo e nem por isso a economia deixa de funcionar dentro dos padrões esperados.

Para quem não sabe, a dívida pública do governo estadunidense em relação ao PIB em 2022 foi de 123,4%. Já a brasileira, deve fechar este ano perto dos 75% do PIB.

Não se alcançar, como queria Lula, o déficit zero nas contas neste primeiro ano de governo e diante da pesada herança bolsonarista, não indica nada que possa justificar reduzir ou cortar investimentos em programas que levem ao desenvolvimento, como o PAC. Mesmo assim, foi o bastante para a mídia corporativa reagir de maneira furiosa.

Em editorial intitulado “Lula sabota o país”, a Folha de S. Paulo, no sábado (28/10), relata não só o que considera “infelizes discursos de Lula”, como tenta atritar o presidente com o mercado financeiro e com o seu próprio ministro da Economia, Fernando Haddad. Posição da Folha vem sendo seguida Rádio CBN, do grupo Globo.

Ao contrário de se constituírem em fatos isolados, as ações de Lira, de Pacheco, dos militares, dos milicianos, dos três governadores, ministro Barroso e da própria mídia não se constituem em fatos isolados.

Elas visam tolher e desgastar o governo Lula junto à opinião pública. Até agora não tinham obtido sucesso, mesmo que a mais recente pesquisa Quaest, divulgada na quinta-feira (26/10) deva servir como sinal de alerta.

Houve, pela primeira vez, um recuo na aprovação do atual governo, com os que o avaliam positivamente somando 38%, os que o consideram regular 29%, enquanto outros 29% dos entrevistados deram avaliação negativa e 4% não souberam responder. A queda foi de quatro pontos em relação à avaliação anterior.

Já a aprovação do trabalho pessoal de Lula teve queda maior: era de 60% em agosto e agora está em 54%.

Fatores externos como as guerras na Ucrânia e o massacre de Israel contra os palestinos influem nestas avaliações, uma vez que o temor dos reflexos na economia impactam na popularidade de qualquer governo.

Seja como for, talvez tenha chegado a hora de Lula não enfrentar mais a situação sozinho e contar para a população o que está acontecendo.

Não cabe ao Legislativo assumir funções que são do Executivo. Não cabe a parlamentares coagirem o governo para indicar ministros, não cabe a governadores ou a integrantes do STF atuarem, mesmo que disfarçadamente, contra a democracia e contra governos democráticos eleitos. Não é aceitável que à mídia corporativa brasileira trabalhe contra os interesses da maioria da população.

Povo na redes e rua é sempre o melhor antidoto para golpistas.

 

Fonte: Viomundo

 

Nenhum comentário: