A psicologia por
trás de modificações da aparência
Ao
pensar em processos de modificação da aparência, imagino que o que venha
primeiro à mente sejam os procedimentos de cirurgia plástica ou o uso de
maquiagem, isto é, comportamentos focados na estética que fazem uso de
tecnologias relativamente recentes. No entanto, a prática de mudar a aparência
em humanos não só engloba diversos outros comportamentos, como é utilizada há
mais de 100 mil anos.
Qualquer
hábito que gere mudanças no corpo entram nesse nicho, ou seja, a variação de
roupas, os comportamentos de higiene, os cortes de cabelo, o uso de perfumes,
de acessórios, de cosméticos, de maquiagem, os procedimentos cirúrgicos, o
bronzeamento, as tatuagens, os piercings, a barba, exercício físico e muitos
outros. Neste sentido, a maioria de nós está frequentemente modificando nossa
aparência de diferentes maneiras. E como esta tendência de modificar a
aparência existe na maioria das populações conhecidas, uma grande parte dos
nossos ancestrais provavelmente já possuía esses costumes. Algumas destas
mudanças de aparência são reversíveis (como o uso de cosméticos) enquanto
outras são irreversíveis (como tatuagens ou procedimentos cirúrgicos).
Existem
diversos fatores que explicam a persistência da modificação de aparência em
seres vivos, como no caso de larvas de insetos que utilizam materiais variados
como pedras ou lama para proteger os corpos moles. Semelhantemente, roupas e
vestimentas humanas servem para proteção contra a temperatura, a incidência do
sol, a salinidade, a umidade e contra possíveis danos causados pela perturbação
da pele. Em parte por causa de fatores ecológicos, as populações humanas mudam
as aparências de formas distintas em diferentes lugares do planeta. Estas
modificações também dependem do conhecimento tecnológico e do acesso aos
materiais locais. Por exemplo, o creme dental com flúor, que estamos
acostumados a utilizar em nossa sociedade, serve para proteger, desinfetar e
branquear os dentes, sendo este tipo de dentes um sinal de saúde e atratividade
em nossa cultura. Porém, em várias culturas antigas, como no antigo Japão com o
costume famoso Ohaguro, havia uma mistura para sanitizar os dentes que deixava
os dentes pretos. Esta mudança de aparência era julgada como atraente e também
como um marcador humano em contraste aos demônios com dentes brancos.
As
mesmas modificações de aparência podem ao mesmo tempo servir para diferentes
fins. Por exemplo, humanos modificam a aparência para exibirem a qual grupo
social pertencem e ao mesmo tempo a quais grupos sociais não pertencem, como no
caso de roupas distintas de jogadores e fãs de diferentes times de futebol. Em
alguns casos, a mudança da aparência pode sinalizar status social,
especificamente com o uso de materiais raros e valiosos, como joias de metais
caros, penas de aves dificilmente encontradas ou até dentes e garras de
predadores perigosos. Atingir uma aparência rara é, em geral, algo visto
positivamente, como, por exemplo, atingir um corpo magro em sociedades com
abundância de recursos. Estas mudanças, assim, sinalizam o esforço que a pessoa
fez para alcançar o material ou forma corporal custosa. As alterações pelas
cirurgias plásticas podem parecer como um meio de encurtar o caminho duro para
atingir essas modificações, o que – estudos mostraram – faz com que as pessoas
que se utilizam dessas cirurgias ou até de edições de fotografias sejam
percebidas como menos confiáveis por terceiros.
Outras
modificações de aparência acontecem só em alguns momentos ou períodos
limitados, como forma de marcar um período especial que geralmente muda o
status social da pessoa. Por exemplo, casamentos ou formaturas e, em outras
culturas, puberdade ou circuncisão são rituais que marcam uma mudança social
e/ou biológica, e durante o processo se usam táticas de mudança de aparência
diferenciadas, às vezes reversíveis (ex. vestido de noiva), às vezes duradouras
(ex. aliança).
Como
exibido, os fatores socioculturais são cruciais nas mudanças de aparência. Um
simples corte de cabelo, por exemplo, pode nos comunicar sinais de status
social, etnia, religião, orientação política, gênero, status de relacionamento,
entre outros. Essas mudanças não só refletem a individualidade de cada um, por
exibirem preferências específicas em relação à aparência, como refletem as
características culturais daquela sociedade. Por exemplo, nas sociedades em que
lábios volumosos são muito valorizados, será mais frequente a realização de
procedimentos de preenchimento labial ou uso de técnicas de maquiagem que
passem a impressão de lábios maiores.
Subjacente
a toda variedade individual, cultural e ecológica, com distintas técnicas
locais para mudanças de aparência, temos os fatores biológicos e evolutivos.
Isso significa que o comportamento de alterar a aparência ajudou nossos
ancestrais, seja aumentando a sobrevivência (como o que ocorre na camuflagem),
seja estimulando a reprodução (indicação de status e exibição sexual, por
exemplo). Nesse caso, modificar a aparência é um mecanismo adaptativo e
evolutivamente antigo que existe em diversas espécies, aumentando a
sobrevivência e reprodução dos indivíduos, sendo, ao mesmo tempo, uma tática
que serve para fins sociais, como marcação do próprio grupo social.
Para
exemplificar, podemos nos apoiar em um comportamento muito frequente: a
maquiagem. A maquiagem afeta a atratividade feminina ao simular indicadores
biológicos, como a idade, simetria ou contraste manipulando a própria percepção
e a do outro – estudos psicológicos demonstraram que mulheres com maquiagem são
avaliadas por terceiros como mais atraentes do que mulheres sem maquiagem. Além
disso, elas se autoavaliam como mais confiantes, com uma maior autoestima e até
mais saudáveis quando estão usando cosméticos. Isso mostra aquilo que foi exibido
anteriormente, que ao mesmo tempo que vontades individuais e fatores
socioculturais permeiam essas mudanças estéticas, elas contribuem para a
sobrevivência e/ou o sucesso reprodutivo do indivíduo, o que faz com que esse
comportamento tenha sido mantido ao longo da evolução.
Portanto,
com tudo que foi exposto acima, percebe-se a influência das mudanças de
aparência nas nossas sociedades atuais e na história da humanidade e de outras
espécies. Elas estão presentes há muitos e muitos anos e isso se dá tanto pelo
seu envolvimento com o sucesso social e reprodutivo dos indivíduos, como por
ser tão notável em expressar preferências individuais e sinalizadores sociais
de populações com culturas específicas. Assim, conclui-se que os instrumentos
de modificação da aparência possuem um significativo papel individual, social e
evolutivo e, exatamente, devido a sua importância e frequência nas mais
diversas populações e espécies, tal área deve ser muito pesquisada, visto que
estudos sobre esses comportamentos ainda são bem escassos.
Fonte:
Jornal da USP
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