Flores do bem: neurocientista Sidarta Ribeiro explica relação entre
maconha e saúde
Em agosto deste ano, retornou à pauta do Supremo
Tribunal Federal (STF) a descriminalização do porte da maconha para consumo
próprio. No dia 24, o ministro André Mendonça pediu o adiamento da discussão, e
o julgamento foi suspenso.
Com pesquisas que apontam benefícios medicinais de
produtos derivados da cannabis, o debate sobre o uso da planta tem avançado
pela população. Na pesquisa do PoderData no mês de setembro, 53% dos
entrevistados aprovam a liberação do porte da maconha. Já o Conselho Federal de
Medicina, junto à Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), emitiram uma nota
em agosto condenando o uso da planta.
Na entrevista para o episódio 96 do podcast Pauta
Pública, o neurocientista Sidarta Ribeiro fala sobre seu livro “As Flores do
Bem’’, que discorre sobre a relação entre a humanidade e a maconha, planta que,
além do uso medicinal, tem usos religiosos e recreativos.
Ele se refere a guerra às drogas como “guerra às
pessoas”, e fala como isso atinge uma parcela mais vulnerável da população que
é condenada por tráfico com pequenas quantidades. Para Sidarta, temos que olhar
para a questão das drogas como um problema de saúde pública, não de segurança.
>>> Confira os principais pontos da
entrevista:
• [Andrea
Dip] Você está lançando o livro “As Flores do Bem”, e a pergunta de partida não
podia ser outra. Em que momento nós estamos no Brasil com relação à
descriminalização da maconha?
Eu acho que estamos muito atrasados, mas em
movimento. O movimento pela libertação da maconha cresceu no mundo todo nos
últimos 20 anos. A partir de 2010, ele realmente se tornou uma avalanche que
mudou o cenário completamente nos Estados Unidos, Canadá, Uruguai e em vários
países da Europa. Então é um momento diferente, e o exemplo mais claro desse
fracasso é justamente o da maconha.
No Brasil, eu diria que por causa das associações
de pacientes, portanto, de seus interesses legítimos e de seus familiares, por
causa dos cultivadores que mantiveram vivo o conhecimento sobre a planta
(apesar de clandestino), por causa da ciência, também, de como os pesquisadores
foram elucidando o papel do sistema endocanabinóide na saúde, e tudo isso
convergiu para o que eu chamei de Ippon Médico.
Em casos de epilepsia, a indicação da maconha é tão
importante que moveu a opinião pública nos Estados Unidos, e está movendo a
opinião pública no Brasil. Na última pesquisa do Datafolha, a maioria de
pessoas é a favor do uso terapêutico da maconha. Nesse ponto temos uma
contradição, porque há uma maioria contra o uso recreativo, o que claramente
reflete o pânico moral em torno da maconha, e também a ideia de que o prazer
não é legal, o prazer é algo a ser evitado.
De qualquer forma, é possível ver que as coisas
estão evoluindo. Existe o Projeto de Lei 399/2015 tramitando no Congresso,
também existe o recurso extraordinário sobre a descriminalização do porte de
drogas, que em princípio abordaria as drogas como um todo, mas depois passou a
ser apenas sobre a maconha. Isso parece ser um caminho para a aprovação.
• [Mariama
Correia] Já que você está falando de usos medicinais comprovados que relacionam
o uso da maconha a tratamentos, no livro, você cita alguns, como o tratamento
da epilepsia, câncer, depressão, ansiedade, efeitos anti-inflamatórios e
analgésicos, e vários transtornos que podem ser tratados, como por exemplo o
transtorno do sono. É interessante que a maconha parece curar de tudo: você
acha que ela é a grande descoberta da medicina do nosso tempo?
Não, primeiramente porque ela foi uma descoberta da
medicina de um tempo ancestral. A maconha começou a ser cultivada há mais ou
menos 12 mil anos, logo após o final da glaciação, ela faz parte de uma
longuíssima revolução agrícola talvez tenha sido a primeira fonte de fibras
vegetais, e certamente uma fonte de alimento e de remédios. Certamente, apenas
estamos redescobrindo e detalhando quimicamente e também fisiologicamente uma
tecnologia ancestral.
Também acredito que não existe panaceia, nenhuma
substância cura tudo. Com a maconha não é diferente, ela tem muitos
constituintes com propriedades diferentes, dependendo da composição da flor da
cannabis que está sendo usada para fazer um óleo, por exemplo, os efeitos podem
ser diversos. Por isso que há surpresa com a ampla gama do uso terapêutico da
cannabis, porque através das moléculas canabinóides, dos terpenos e também dos
flavonoides, que estão contidos na planta eles atuam em um sistema que nós
possuímos em nosso corpo: o sistema endocanabinoide.
Este sistema é uma grande encruzilhada metabólica,
ele é como um grande sistema de comunicação molecular e celular que faz com que
o organismo, como um todo, encontre o equilíbrio e regule o seu funcionamento
como: sono, alimentação, resposta imune e formação de memórias.
Então não é uma panaceia, porque isso não existe,
mas tem múltiplas indicações, porque lida com muitos aspectos diferentes do
nosso sistema. Ou seja, não é uma surpresa se conhecermos a biologia da
maconha.
• [Mariama
Correia] Então, o nosso organismo produz também nesse sistema que você falou,
moléculas semelhantes à da maconha?
Sim, todos nós todos temos o tempo todo uma
produção de tipos de lipídios, funcionalmente semelhantes ao THC, ao
canabidiol, que existem na maconha. Isso quer dizer que, por exemplo, se alguém
é contra a planta e gostaria de viver 100% sem a maconha, essa pessoa deve
considerar que se tirar tudo aquilo que se parece com a maconha do corpo dela,
ela vai ter um colapso do sono, da alimentação, da formação de memórias e da
resposta imune.
• [Andrea
Dip] Eu queria saber se você vê mudanças ou tem esperanças em mudanças com
relação a guerra às drogas com o novo governo.
Eu tenho esperança, mas eu acho que não depende do
governo, depende da sociedade civil. A pauta da cannabis avançou nos últimos
sete anos, mas temos que lembrar que a pauta da legalização da maconha, para
uso terapêutico, por exemplo, é muito importante, mas é uma pauta que só
resolve a vida da classe média e branca. A pauta que realmente interessa é a de
parar a guerra às drogas, que é a pauta da guerra às pessoas.
Quase um terço da população carcerária brasileira
tem a ver com a condenação por comércio de pequenas quantidades de drogas, no
caso da população feminina é mais do que a metade. Hoje, a terceira maior
população carcerária do mundo está no nosso país, são pessoas que deveriam, em
sua maioria, estar na escola, na universidade, trabalhando, e não naquelas
condições degradantes. O centro fundamental dessa discussão é olhar para as
drogas como uma questão de saúde, fazer seu uso nunca foi um problema na
espécie humana, o problema é o abuso, o uso problemático. E para esse uso é
necessário ajuda, suporte, acolhimento, medicina, tratamentos, terapêuticas,
práticas integrativas, mas certamente não precisa de coerção, repressão e
punição.
Se quisermos acabar com o narcotráfico, temos que
compreender que este é hoje um grande negócio que se infiltrou totalmente no
aparato estatal, é uma situação de polícias e militares infiltrados. Então tem
que haver coragem, e essa coragem eu diria, está legalizar para poder acabar
com o mercado ilegal, ou pelo menos reduzir bastante. E, por fim, ajudar as
pessoas a não terem uso problemático com qualquer substância, podendo ser
maconha, álcool ou até açúcar. Tudo isso precisa ser feito com muita moderação.
Fonte: Por Andrea DiP, Ricardo Terto e Mariama
Correia, da Agencia Pública
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