Da Covid-19 ao controle da China: como a vida noturna “acabou” em Hong
Kong
À medida em que clientes circulam de um bar deserto
para outro, fica difícil acreditar que as ruas quase vazias de Hong Kong já
estiveram entre as mais badaladas da Ásia.
É quinta-feira à noite — período geralmente
movimentado — mas não há multidões para as pessoas cruzarem, nem pessoas pelas
calçadas e muito menos necessidade de esperar para se sentar em um restaurante.
Mas nem sempre foi assim. Apesar de parecer
improvável, Hong Kong já foi a estrela principal da vida noturna na Ásia: uma
cidade famosa e livre, iluminada por neon, que nunca dormia, onde o Oriente
encontrava o Ocidente e as pessoas viravam a noite nos bares – mesmo em dias de
semana.
Esse retrato foi transmitido para todo o mundo em
1997, quando a Grã-Bretanha entregou a soberania de sua ex-colônia à China. Na
ocasião, os habitantes locais e visitantes deram as boas-vindas à nova era com
uma rave de 12 horas com Boy George, Grace Jones, Pete Tong e Paul Oakenfold.
A mensagem da China à altura era de que, mesmo com
a mudança que estava ocorrendo em Hong Kong, seu espírito de “vale-tudo”
permaneceria.
Foi prometido à cidade um elevado grau de autonomia
para os próximos 50 anos e assegurado que os seus costumes ocidentais iriam
continuar. Ou, como disse o então líder da China, Deng Xiaoping: “os cavalos
ainda correrão, as ações ainda chiarão e os dançarinos ainda dançarão”.
E por muito tempo após a partida dos britânicos, a
dança realmente continuou.
Hong Kong manteve não só o espírito do capitalismo,
mas muitas outras autonomias desconhecidas no resto da China – as liberdades
políticas de imprensa, de expressão e o direito de protestar.
Até mesmo os apelos a uma maior democracia foram
tolerados – pelo menos por um tempo.
Mas, após pouco mais da metade desses 50 anos, a
promessa de Deng agora soa vazia para muitos.
Espasmos de protestos em massa – contra a
legislação de “educação patriótica” em 2012, o movimento Occupy Central em 2014
e as manifestações pró-democracia em 2019 – levaram a China a restringir as
liberdades civis com uma Lei de Segurança Nacional.
Desde então, centenas de figuras pró-democracia
foram presas e milhares de residentes deixaram o país.
Essa repressão e o enfraquecimento das liberdades
em Hong Kong têm sido bem documentados, mas somente há pouco tempo é que
começou a surgir um efeito secundário, menos noticiado, da repressão na China:
nas ruas e nos bares, nos clubes da moda e nas discotecas com estrelas
Michelin. restaurantes, a cidade que nunca dormia começou a cochilar.
• Cidade
vazia
A vida noturna da cidade se tornou uma sombra
pálida do seu apogeu como um ímã regional de descanso e relaxamento, quando sua
reputação residia no fato de ser mais fácil de navegar do que o Japão, menos
chata do que Cingapura e mais livre do que a China continental.
Agora, em paralelo à diminuição das liberdades
políticas, o negócio dos bares, outrora prósperos da cidade, aparentemente está
“secando”. E embora alguns discutam se a culpa é da política ou da Covid-19,
poucos contestam que algo precisa ser feito.
Os bares faturaram cerca de US$ 88,9 milhões (R$
435,6 milhões, na cotação atual) no primeiro semestre de 2023, queda de 18% em
relação ao mesmo período de 2019, de acordo com dados oficiais.
Num esforço para frear a queda, o governo de Hong
Kong lançou a campanha “Night Vibes”, com bazares à beira-mar, além de gastar
milhões num recente espectáculo de fogos de artifício para celebrar o “Dia
Nacional da China” e reintroduzir a dança do dragão, iluminada por incensos, no
bairro de Tai Hang.
Esses esforços atraíram uma mistura de críticas e
chacotas – muitos apontaram a ironia da cerimônia de abertura da campanha,
feita com dois leões brancos, cor associada a funerais na cultura chinesa.
A campanha precisou ser interrompida após a
passagem de tufões, além das preocupações com a segurança devido ao uso de
fogos de artifício.
Ainda assim, o Chefe do Executivo de Hong Kong,
John Lee, insiste que os eventos são um sucesso, dizendo que pelo menos 100 mil
pessoas visitaram os bazares e que 460 mil turistas da China continental
estiveram presentes no Dia Nacional.
E os leões brancos? As autoridades disseram que, na
verdade, eram “fluorescentes”.
Um porta-voz do governo de Hong Kong disse à CNN
esta semana que as atividades foram “bem recebidas pelos residentes locais e
turistas”.
O Hong Kong Wine & Dine Festival, um evento
recente, atraiu 140 mil pessoas. Além disso, os shoppings que apoiaram a
campanha “Night Vibes” disseram ter visto “um crescimento no fluxo e na
rotatividade de visitantes”, acrescentou.
• Covid
ou repressão?
Há quem aponte o dedo apenas para a Covid-19.
“É óbvio que está pior do que antes. Este é o
efeito colateral da Covid, que mudou o modo de vida”, disse Gary Ng, economista
do banco de investimento francês Natixis.
E poucos contestam que a Covid cobrou o seu preço.
Durante a pandemia, Hong Kong fez questão de aderir
estritamente a uma abordagem de tolerância zero ao estilo da China continental
que, embora não tão draconiana, ainda foi extrema o suficiente para expatriar
pessoas, que se dirigiram para cidades como Singapura, Tailândia e Japão.
Hong Kong, onde os viajantes que chegavam
enfrentavam semanas de quarentena e as mesas dos restaurantes eram limitadas a
dois clientes, tornou-se subitamente o país aborrecido, enquanto Singapura – em
uma comparação surpreendente – o mais animado.
Sob restrições pandêmicas, a música ao vivo de Hong
Kong foi praticamente proibida em locais pequenos por mais de 650 dias.
Por outro lado, há quem diga que Hong Kong está em
negação, e que os seus problemas de vida noturna são muito mais profundos do
que a pandemia. Se outros lugares se recuperaram, eles dizem, por que não Hong
Kong?
Esses observadores acreditam que a resposta da
cidade à Covid-19 deveria ser vista através das lentes da liberdade, cada vez
mais desaparecida da cidade.
Meses antes do surgimento do vírus, a China havia
reforçado o controle sobre Hong Kong, em resposta aos protestos pró-democracia
que se espalharam por toda a cidade.
O governo aplicou restrições à liberdade – como a
de expressão e de imprensa – que estavam supostamente garantidas.
Canções e slogans considerados ligados aos
protestos foram proibidos, memórias de protestos anteriores foram deletadas da
Internet, filmes sensíveis censurados e editores de jornais acusados de sedição
e conluio com forças estrangeiras.
O governo tem defendido que a aplicação da lei é
necessária para que Hong Kong restaure a estabilidade e a prosperidade e impeça
o que a China chama de “forças estrangeiras” de se intrometerem na cidade.
“Desaprovamos veementemente e rejeitamos firmemente
esses ataques infundados, calúnias e difamações contra a RAEHK [Região
Administrativa Especial de Hong Kong] sobre a proteção de tais direitos e
liberdades fundamentais em Hong Kong”, disse um porta-voz à CNN.
Mas — os críticos revidaram — nada disso é válido
para uma atmosfera onde as pessoas vão querer sentar, relaxar e conversar.
“As pessoas podem sentir que precisam se
autocensurar ao bater um papo em restaurantes ou bares porque, quem sabe quem
pode estar ouvindo. Eles podem muito bem ficar em casa para a mesma conversa,
onde se sentem seguros”, disse Benson Wong, uma das pessoas que deixou Hong
Kong.
Wong, um ex-professor associado especializado em
política local, disse que costumava comer fora em barracas ao ar livre, onde as
pessoas falavam livremente sobre tudo, desde fofocas de celebridades até
política.
Agora, porém, disse ele, “ninguém se sentirá feliz
se tiver que ter cuidado com tudo o que fala”.
• Para
onde foram todos?
Quer tenha sido a Covid-19 ou a repressão — ou
alguma combinação dos dois — fato é que ocorreu um êxodo de cidadãos de classe
média de Hong Kong e de expatriados nos últimos anos.
Em 2022, a cidade registrou a saída de 60 mil
residentes, o que reduziu o número de residentes habituais para 7,19 milhões no
fim do ano – queda de quase 144 mil pessoas em relação ao mesmo período de
2020.
Grande parte deles são habitantes de Hong Kong que
conseguiram vistos especiais ou cidadania oferecidos por países ocidentais,
como a Grã-Bretanha, o Canadá e a Austrália, logo após a repressão da China.
Mas também tem havido uma constante saída da
população expatriada que, como uma ressaca pós-colonial, permaneceu na cidade
muito depois da partida da Grã-Bretanha.
Elas eram, em grande parte, profissionais em
finanças e direito.
Os meios de comunicação locais estão agora cheios
de notícias de bancos e escritórios de advocacia que transferiram os seus
locais de trabalho, parcial ou totalmente, para centros financeiros rivais,
como Singapura.
Infelizmente, para os proprietários de bares e
restaurantes, os dois grupos que estão saindo estão entre seus maiores
consumidores.
“Os expatriados mudaram-se, assim como [os
habitantes de Hong Kong] com rendimentos mais elevados. É claro que a saída
deles terá um impacto”, disse Ng, da Natixis.
Cada vez mais, estes dois grupos estão sendo
substituídos por cidadãos da China continental, que representam agora mais de
70% dos 103 mil vistos de trabalho ou de pós-graduação concedidos desde 2022,
segundo o Departamento de Imigração.
Os migrantes recentemente dominantes, salientam os
economistas, tendem a ter hábitos de consumo muito diferentes.
Yan Wai-hin, professor de economia da Universidade
Chinesa de Hong Kong, disse que a robusta vida noturna da cidade era
sustentada, em grande parte, por uma base de expatriados e de moradores de
classe média mergulhados na antiga cultura de desfrutar de uma boa bebida
gelada após um longo dia de trabalho.
“A composição da população é diferente agora”,
disse Yan. “Agora temos mais imigrantes do continente, e eles tendem a adorar
voltar para a China continental para gastar.”
• Os
negócios são desafiadores
No bairro noturno mais famoso de Hong Kong, Lan
Kwai Fong, a música pode estar diminuindo, mas não parou completamente.
No entanto, durante uma visita recente da CNN,
poucas diferenças distinguiam a área de qualquer outra rua.
“Tem sido muito desafiador até agora e nem de longe
voltou ao normal”, disse Richard Feldman, que dirige o bar Petticoat Lane no
California Tower, em Lan Kwai Fong.
Presidente da Associação Soho, que administra
negócios na cidade há mais de três décadas, Feldman disse que os negócios foram
ligeiramente melhores entre sexta e sábado do que durante a semana e que lojas
com boa reputação foram menos afetadas.
Mas, em geral, ele também disse que o número de
ocidentais estava diminuindo, naquele que costumava ser o local preferido dos
expatriados.
“Era uma mistura de expatriados e profissionais
locais que saíam para beber e dançar tarde da noite. Mas essa demografia
diminuiu bastante no ano passado”, disse outra proprietária de bar, Becky Lam.
“Estamos conseguindo mais clientes no continente.”
Lam, co-fundador de vários bares e restaurantes de
Hong Kong, disse que embora os chineses do continente estivessem dispostos a
gastar, eles tendiam a orbitar em torno dos restaurantes e eram menos propensos
a ficar fora de casa até tarde.
Nos dias de semana, os bares que ela administra
recebem apenas metade dos clientes em comparação à pré-pandemia.
“Eles vão se contentar com os Happy Hours e pronto.
Não estamos falando das 2h às 3h”, disse ela.
• Contra
todas as probabilidades
Existem outros problemas que corroem o setor da
vida noturna.
“Os hábitos das pessoas mudaram desde a Covid, já
que muitas estão acostumadas a ficar em casa assistindo TV e Netflix”, disse
Feldman.
Durante a pandemia, Hong Kong impôs uma proibição
prolongada de bares e serviços de jantar para impedir reuniões sociais, no que
muitos consideraram um aceno à estratégia “Covid-zero” da China continental.
Isso afetou lojas e shoppings, que encurtaram o
horário de funcionamento por falta de clientes.
Em muitos casos, os horários reduzidos tornaram-se
o novo normal, com algumas lojas fechando às 21h, o oposto do padrão pré-Covid
de 22h30.
Conspirando contra a vida noturna da cidade, está
também o dólar forte de Hong Kong em comparação com o yuan chinês, o que afeta
a forma como as pessoas gastam dinheiro.
“As pessoas do continente têm menos probabilidade
de vir aqui para fazer compras, enquanto as pessoas de Hong Kong vão para
Shenzhen para gastar o seu dinheiro”, disse Marco Chan, chefe de pesquisa da
empresa imobiliária e de investimentos CBRE.
Embora os turistas do continente pensem duas vezes
antes de ir para Hong Kong, muitos moradores da cidade têm passado os fins de
semana na China continental, onde muitos serviços custam uma fração do preço,
disse Chan.
• “Era
internacional, agora é doméstico”
Conhecido como o “Padrinho de Lan Kwai Fong”, Allan
Zeman – o empresário que transformou a pequena praça do distrito central de
Hong Kong num famoso centro de vida noturna – tem uma posição mais otimista e
insiste que os negócios não estão tão ruins quanto parecem.
Ele estima que os clientes da China continental
representam agora 35% dos clientes em Lan Kwai Fong e diz que eles gastam
muito.
“Eles vão a um clube, como o California Tower no
telhado, e gastam cerca de 400 mil a 550 mil dólares de Hong Kong [R$ 250 mil a
R$ 344 mil] apenas em bebidas”, disse.
Para ele, a moeda forte de Hong Kong e a relativa
falta de voos de entrada em comparação com a era pré-Covid que estão atrasando
a retomada da cidade. “Acho que é temporário”, disse ele.
Mas o dono do bar, Lam, disse que Hong Kong precisa
reexaminar a sua abordagem regulatória, se quiser prosperar novamente.
Lam apontou a remoção das famosas luzes de néon da
cidade, em nome da segurança, como um exemplo da atual abordagem equivocada.
Ela afirmou ainda que seu bar, Shady Acres, foi
orientado a atender os clientes apenas em ambientes fechados, além de trancar
todas as portas e janelas após às 21h, como parte dos requisitos da licença de
funcionamento.
“Esse tipo de obstáculo é realmente grande em Hong
Kong”, disse Lam. “Mas olho para as nossas cidades vizinhas, como Bangkok,
Xangai e Taipei. Essas cidades têm uma vida noturna emocionante, pois realmente
promovem a diversão noturna com música, arte de rua e jantares.”
Feldman, de Petticoat Lane, deu outra opinião.
“Hong Kong costumava ser um destino muito mais internacional. Agora é um
destino doméstico”, disse ele.
A cidade, disse Feldman, deveria “fazer tudo o que
puder para atrair pessoas não só da China, mas de todo o mundo”.
Fonte: CNN Brasil
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