Culpa de comer:
você precisa saber como as redes sociais podem detonar a sua autoestima e sua
alimentação
Já
pensou se todos os dias e lugares por onde você circulasse só visse corpos
magros, peles sem marcas ou rugas e cabelos alinhados? Pois esse é o mundo
vendido nas redes sociais. A questão é que muitas imagens nem sempre são reais.
E o que estudos mostram é que a exposição
a esse ambiente tem prejudicado a autoimagem das pessoas, que passam a
se cobrar por um corpo inatingível e embarcam em dietas sem nem mesmo precisar
delas.
>>>
Nesta reportagem, você vai ler sobre:
- internet x a
imagem sobre nossos corpos;
- o terrorismo
alimentar online;
- como mulheres
têm lutado para fazer do ambiente online menos hostil.
>>> Internet x a imagem sobre nossos corpos
A
idealização de corpos e estética veio antes da internet e das redes sociais, só
que nunca antes estivemos expostos
a tantos exemplos e conteúdos sobre dietas, corpo, exercícios e
estética.
🚨 Isso tem a ver com como a própria rede
social funciona: é completamente visual (alimentada por fotos e vídeos), com
corpos alterados por edições e filtros, e que, com o algoritmo, coloca o
usuário em uma bolha sobre um mesmo assunto ou tipo de pessoa -- incluindo
publicidades.
Pesquisas
têm confirmado que essa superexposição traz consequências:
- 🔎Um
estudo da Universidade do Minho, de Portugal, publicado em 2023, ouviu 310
universitárias sobre comparação. A pesquisa apontou que 98% delas
comparavam seu corpo com o de outras pessoas e 52% das estudantes disseram
se comparar com pessoas online.
- 🔎Um
estudo da universidade de medicina da UCL, de Londres, feita em 2017,
analisou a exposição de 680 estudantes às redes sociais para entender a
tendência à ortorexia -- um transtorno de autoimagem. A pesquisa
identificou que as pessoas envolvidas nos conteúdos do Instagram sobre
alimentação saudável têm uma alta prevalência de sintomas de ortorexia.
E
não é só a academia que vem dizendo que as redes sociais estão mudando como a
gente se enxerga e a autoestima, mas a própria plataforma.
🚨Em 2021, o jornal norte-americano The Wall
Street Journal vazou uma pesquisa feita pelo Facebook com adolescentes na
plataforma. O estudo descobriu que 32%
das meninas que disseram se sentir mal com o corpo afirmaram que o Instagram as
fazia se sentir pior. O relatório, segundo o jornal, ainda concluiu
que as comparações no Instagram
podiam mudar a forma como as jovens se viam.
As
pessoas estão expostas o tempo todo a modelos de beleza inalcançáveis para a
vida cotidiana. Além disso, um ambiente de terrorismo alimentar que tem deixado
as pessoas preocupadas o tempo todo com o que comem, com quanto comem e isso
vem refletindo em doenças como transtornos alimentares, depressão e ansiedade.
— Fabio Salzano, psiquiatra no Ambulim, especializado no atendimento de
transtornos alimentares
·
O terrorismo alimentar
Se
existe uma pressão pelo corpo "ideal", existe demanda de conteúdo
sobre como alcançá-lo. Nas redes, pessoas ganham a vida produzindo conteúdo
sobre como emagrecer, exercícios e um lifestyle de saúde.
👉 O que os nutricionistas explicam é que com
tanta informação, as pessoas sabem o básico e para ganhar audiência é preciso
uma chamada comercial e um tom de novidade. É aí que quem produz conteúdo
online investe no que especialistas chamam de terrorismo alimentar.
Terrorismo
alimentar cria lista de alimentos "perigosos" para a dieta e saúde
sem base científica — Foto: Karolina Grabowska/Pexels
"Açúcar
vicia como cocaína. Cortar o glúten é o segredo para emagrecer. Leite é
inflamatório. Pão é vilão. Bolo de chocolate pode levar ao Alzheimer." Todas essas
afirmações não têm qualquer base
científica, mas estão em massa na internet em vídeos com títulos que
buscam chamar a atenção.
Se
você já viu esse tipo de conteúdo, se deparou com um exemplo de terrorismo alimentar. Segundo
especialistas, esse tipo de conteúdo coloca alimentos em uma categoria de
perigo e aterroriza quem come.
🚫 Se antes a fixação era contar calorias, o
modismo online agora é incluir uma série de alimentos que fazem parte do
cotidiano e da cultura alimentar brasileira como proibidos.
A
nutricionista Marina Nogueira conta que esse tipo de conteúdo e abuso de imagens
de corpos irreais a levou a criar o projeto Não Conto Calorias. Usando as redes
sociais, blog e podcast ela faz alertas sobre terrorismos, restrições em dietas
e chama, principalmente mulheres, para uma reflexão sobre a pressão estética
online.
Online,
o discurso da saúde colocou um verniz em cima de obsessões alimentares. Pessoas
que deixam de comer determinados alimentos, embarcadas em modismos. E fazem
isso pela obsessão de estar no corpo do outro, por essa superexposição a
padrões. — Marina Nogueira, nutricionista e influenciadora no projeto Não Conto
Calorias
🔎 Em uma busca rápida pelo Instagram, por
exemplo, há 35 milhões de publicações com a hashtag dieta. Grande parte desse
conteúdo traz vídeos de pessoas compartilhando sua "rotina saudável"
na perda de peso, com dicas de como emagrecer e até indicação de produtos
emagrecedores sem a sinalização de que são publicidades.
Marina
explica que a divulgação de dietas de pessoas famosas sempre existiu, mas o que
houve foi uma massificação seguida de um aumento no volume de pessoas famosas,
com as influenciadoras.
"As
pessoas que vendem esse tipo de conteúdo tiveram que se reinventar. Não é só a
dieta, mas novos alimentos proibidos, uma chamada caça clique de alimento
perigoso ou de risco para emagrecer e engajam com isso sem preocupação com quem
lê. Além de muita publicidade não sinalizada", diz a nutricionista Marina
Nogueira.
Miriam
Bottan, jornalista e influenciadora, conta que viveu o auge dos corpos magros
dos anos 2000 e os primórdios das redes sociais. Ela diz que sempre se viu como
uma pessoa magra, até a adolescência quando sentiu a pressão por padrões. Foi
quando entrou em um ciclo de dietas, restrições, muitos exercícios e que
terminou em bulimia (comer seguido de vomitar ou usar laxante), além do abuso
de álcool e drogas.
Eu
via na internet um discurso de saúde que, na verdade, era pró-doença, que
impulsionava para transtornos alimentares. Eu tinha muita culpa de comer, não
podia comer uma série de coisas e lembro como foi a sensação do meu primeiro
hambúrguer sem me culpar depois de anos.
—
Miriam Bottan, jornalista e influenciadora
A
influenciadora conta que durante a doença chegou aos 38 kg e que, à época, não
havia muitas influenciadoras ou comunidades online que falassem sobre o
assunto. O auge ainda era um discurso de emagrecimento como "saúde".
Em
meio ao tratamento, decidiu publicar sobre o que estava vivendo e foi quando
percebeu que, na verdade, havia mais pessoas como ela online. Desde então,
Miriam usa as redes para falar sobre a relação com o próprio corpo, desmentir
conteúdos de terrorismo sobre a
comida e falar sobre transtorno
alimentar. Tem quase meio milhão de pessoas nas redes, onde tenta fazer
da internet um ambiente menos hostil.
"Compartilho
a minha relação com a comida e com meu corpo na tentativa de fazer as pessoas
refletirem", diz.
·
É filtro ou é verdade?
O
corpo feminino parece ter sempre estado em discussão quando falamos de padrão,
com a eleição de ‘sex simbols’ e misses como um exemplo do que deveria ser
seguido por quem vivia a ‘vida real’, não dedicada à própria imagem.
💃 Se nos anos 60 Marilyn Monroe, com seu
corpo curvilíneo de pernas grossas, era um símbolo de beleza. Nos anos 80 e 90
esse padrão se perdeu para um modelo mais magro, como de Cindy Crawford e
depois Kate Moss – que representava o estilo heroin chic, que classificava como
auge de beleza o corpo magro, com ossos expostos, como de usuários de heroína.
A
trajetória dos padrões não é linear: os modelos de corpos e tendências vão
mudando ao longo do tempo. Ou
seja, fica impossível de acompanhar.
🚨E o que já era impossível, ficou ainda mais
complexo com as redes. Os modelos de beleza podem ser editados, esconderem
plásticas, publicarem fotos de ângulos escolhidos para parecerem o que não
são. O que existe online nem
sempre é real ou é só parte da história.
Em
2017, por exemplo, a empresária e influenciadora Bianca Andrade (Boca Rosa)
compartilhava sua rotina de dietas que a fez perder cerca de 12 kg, mas mais
tarde revelou que, além da rotina, o resultado havia sido tonificado por uma
lipoaspiração (cirurgia para retirada de gordura abdominal) que fez, mas que
não compartilhou com os seguidores.
A
gente precisa olhar para o mundo real. Se você olhar no digital só vai ser
gente magra e sarada. Mas se for à praia, qual corpo você vai ver? A gente está
presa em um surto coletivo, ninguém está olhando para ninguém no mundo real,
que é muito diferente do que está online. — Marina Nogueira, nutricionista
·
Uma internet menos hostil
Uma
possível solução para o surto coletivo é ver corpos mais parecidos com o que
tem aqui fora no mundo online. É isso o que mulheres têm tentado fazer, falando
com transparência sobre a pressão e contando suas histórias.
A
publicitária e influenciadora Bertha Salles foi uma das vítimas da pressão
estética. Ela conta que passou a vida entre dietas e crises de compulsão,
sempre influenciada pelo que via online.
Eu
comecei a usar Instagram na época das musas fitness e aí postavam muito antes e
depois. Essas coisas eram gatilhos enormes, principalmente para eu que tinha o
viés do transtorno alimentar. Foi então que pensei que, se tivesse alguém como
eu, com meu corpo, que eu pudesse acompanhar, eu teria sofrido muito menos
trauma.
—
Bertha Salles, influenciadora que reúne mulheres para malhares por saúde.
No
isolamento da pandemia, Bertha ganhou peso e, com a reabertura, chegou a
recorrer a tratamento com Saxenda, uma das canetas emagrecedoras, perdeu 17 kg,
mas voltou a engordar e decidiu repensar sua relação com o corpo.
Ela
conta que sempre gostou de se exercitar, mas se sentia pressionada pelo ambiente
da academia e não sentia que podia compartilhar sua rotina por não ter um corpo
que suprisse a expectativa. Foi quando decidiu romper e criar a comunidade
'Bucinho Suado'.
Ao
invés de compartilhar sua rotina com fotos do corpo, fazia posts com o buço
suado. O movimento cresceu, se tornou uma comunidade e reúne mulheres para
treinos coletivos.
“A
gente busca o exercício físico como uma coisa prazerosa, divertida. Criamos um
ambiente em que as pessoas se sintam seguras de ir malhar porque não é um lugar
que vai cultuar o corpo perfeito. São corpos reais”, conta.
Closes
em paisagens paradisíacas, praias deslumbrantes e sendo uma mulher gorda. Essa
é a jornada de Pollyane Marques, que compartilha sua experiência no Viaja
Gorda. Ela conta que passou pela bulimia depois de muita pressão estética
tentando ser uma pessoa magra e chegou aos 48 kg, até buscar ajuda e entender o
próprio corpo e a alimentação.
Pollyane
diz que descobriu com as viagens que seu corpo poderia fazer muitas coisas. Por
ser uma pessoa gorda, via limitações com os casos constantes de constrangimento
em companhias aéreas, e por não se ver representada em tudo que via ao
pesquisar sobre os destinos que sonhava ir.
Eu
queria saber sobre viagem e não achava pessoas com o corpo parecido com o meu.
Você vê no Instagram pessoas com corpos esbeltos em todos aqueles lugares
lindos e achava que eu não cabia ali. Até que decidi fazer eu mesma e mostrar
que muitas como eu podem e que nosso corpo é capaz além dos limites que tentam
impor. — Pollyane Marques, jornalista e influenciadora.
Ela
conta que já percorreu diversos lugares do mundo e que os impeditivos, na
verdade, eram gordofobia. "Somos vistos como pessoas preguiçosas,
incapazes. Um dia, cobrindo política, duvidaram que eu poderia ir de um salão a
outro por causa do meu peso, apesar da minha experiência com a cobertura. Hoje,
eu ando o mundo", conta.
A
influenciadora Ju Romano decidiu falar sobre moda e beleza, um dos nichos com
maior pressão estética no mercado.
Sendo
uma pessoa gorda, incentiva pelas redes mulheres a romperem como "look que
valoriza" em busca de se aproximar do padrão, mas usar a moda como
expressão.
"O
look que valoriza é o que expressa a personalidade, que comunica, que traz
partes de mim para o mundo - e não o que tenta mudar, afinar ou alongar meu
corpo", escreve em suas redes.
Decote,
plissado, listras, estampas e cores diversas. Pelas redes, compartilha seus
looks que vão contra a cultura de discrição que é imposta a mulheres gordas.
Fonte:
g1
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