SEM NOME, SEM
IDENTIDADE: Registro de recém-nascidos ainda é um desafio para indígenas
Além
das inúmeras dificuldades sofridas pelos indígenas na luta pelo território e
pela sobrevivência, eles também enfrentam outras tantas para o registro civil
de seus filhos recém-nascidos no Brasil. Alguns cartórios de registro recusam o
nome escolhido pelos genitores ou exigem a apresentação do Registro
Administrativo de Nascimento de Indígena (Rani) para comprovação da origem
indígena da pessoa.
O
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público
(CNMP) dispõem da Resolução Conjunta nº 3, de abril de 2012, para regulamentar
o assento de nascimento de indígenas no Brasil, que, embora necessite de
atualização – conforme já requerido pelo Conselho Indigenista Missionário
(Cimi)[1] –, supre, ou deveria suprir, parte dos entraves criados para a efetivação
do registro.
Quanto
ao nome escolhido para o recém-nascido e a referência ao povo ao qual
pertencem, o art. 2º da referida Resolução afasta a hipótese de recusa do
oficial de registro civil nos casos em que o prenome escolhido pelos pais possa
ser compreendido como uma exposição da pessoa ao ridículo. Vejamos:
“Art.
2º. No assento de nascimento do indígena, integrado ou não, deve ser lançado, a
pedido do apresentante, o nome indígena do registrando, de sua livre escolha,
não sendo caso de aplicação do art. 55, parágrafo único da Lei n.º 6.015/73.
• 1º. No caso de registro de indígena, a
etnia do registrando pode ser lançada como sobrenome, a pedido do interessado.
• 2º. A pedido do interessado, a aldeia de
origem do indígena e a de seus pais poderão constar como informação a respeito
das respectivas naturalidades, juntamente com o município de nascimento.
• 3.º A pedido do interessado, poderão
figurar, como observações do assento de nascimento, a declaração do registrando
como indígena e a indicação da respectiva etnia.
• 4º Em caso de dúvida fundada acerca do
pedido de registro, o registrador poderá exigir o Registro Administrativo de
Nascimento do Indígena – RANI, ou a presença de representante da FUNAI.”
Essa
recusa é inaceitável, visto que o nome é de livre escolha dos genitores. Nesse
ponto, a Resolução é clara. Portanto, não se trata de lacunas normativas, mas
sim de dificuldades criadas para a realização do registro.
Um
ato que seria simples para qualquer família se torna absolutamente moroso e
burocrático quando se trata de um recém-nascido indígena. As dificuldades
enfrentadas pelos indígenas no registro civil de seus filhos evidenciam uma
distinção no tratamento, o que viola garantias fundamentais e a igualdade
formal fixadas na Constituição (art. 5º).
Outro
problema recorrente é a exigência da apresentação do Rani para a comprovação da
origem indígena. Na Resolução Conjunta nº 3, tal exigência se aplicaria apenas
nos casos onde haja fundada dúvida acerca do registro. Ou seja, ela deve estar
devidamente embasada pelo Cartório.
A
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é expressa ao
estabelecer que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser
considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se
aplicam as disposições da presente Convenção” (Art. 1º, item 2).
Compreensão
semelhante à da OIT foi adotada pelo CNJ na Resolução 454/2022, que trata do
acesso de indígenas ao Poder Judiciário. Nessa Resolução, impõe-se a
transcrição do § 1º do art. 4º: “§ 1o Para efeitos desta Resolução, indígena é
a pessoa que se identifica como pertencente a um povo indígena e é por ele
reconhecido”.
Com
efeito, o direito à autoidentificação e autodeclaração dos povos indígenas
encontra-se consolidado no ordenamento jurídico brasileiro, seja na
Constituição Federal ou nos tratados internacionais internalizados no Brasil,
embora ainda ocorra resistência na efetivação desses direitos.
Em
situações concretas, verificamos que, entre a negativa de registro ou
suscitação de dúvida pelo oficial e a espera de sentença judicial para
determinar ao Cartório a realização do registro, por vezes, o recém-nascido
fica meses sem ter oficializado o seu registro de nascimento. Diante do entrave
criado, ocorre também que registros são realizados sem a anotação da condição
de indígena.
Quando
os genitores se opõem à resistência do oficial, acabam necessitando de
providências da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), da atuação do
Ministério Público ou Defensoria Pública para defender os direitos fundamentais
de seus filhos e os seus direitos como indígenas.
Além
da violação aos direitos civis, decorrente do direito ao nome previsto no art.
16 do Código Civil, tais práticas desrespeitam a dignidade humana (arts. 1º,
inc. III da CF), que ganha ainda maior relevo por se tratar de criança, que
goza da absoluta prioridade na proteção integral de seus direitos (art. 227,
CF).
Já
ao nascer os indígenas vivenciam a discriminação em relação ao seu nome, ao seu
lugar de pertencimento, às suas origens, aos costumes, línguas, crenças e
tradições da comunidade da qual descende, uma vez que até mesmo o seu nome e
etnia se tornam objetos de dúvida e questionamento pelo Estado. Revelando um
preconceito ainda existente em relação aos povos indígenas.
O
Rani, documento fornecido pela Funai, não é o único meio capaz de fazer a
comprovação da origem indígena da pessoa, podendo ser inclusive comprovado,
pela Declaração de Nascido Vivo (DNV). A nosso ver, é suficiente a
autoidentificação nos termos fixados pela Resolução 454 do CNJ.
Além
dessa Resolução, são diversas as garantias previstas no ordenamento jurídico
brasileiro que o recém-nascido indígena dispõe para a defesa de seus direitos:
a Constituição Federal, a Convenção sobre os Direitos das Crianças, a Convenção
169 da OIT e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Diante
desse cenário e de tais mandamentos, impõe-se ao Estado não apenas a
assistência e proteção adequadas para os direitos dos recém-nascidos indígenas
que por meio de sua família, optem pelo registo civil, mas que não crie
obstáculos para a preservação dos povos e da cultura indígena. É de fundamental
importância que os que dificultam injustificadamente o registro sejam de alguma
forma responsabilizados.
Certo
é que o CNJ e o CNMP, oportunizada a participação de organizações indígenas e
indigenistas, estão com o desafio de atualizar a Resolução Conjunta nº 3, a fim
de tornar ainda mais pleno o direito à autoidentificação dos povos indígenas
quando do registro civil.
·
Povos
indígenas se mobilizam contra ruralistas, que prometem derrubar veto ao marco
temporal
A
Articulação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) convocou indígenas de
todo país para se mobilizar a favor da manutenção dos vetos presidenciais ao
marco temporal. A sessão conjunta do Congresso que irá decidir sobre o tema
será na próxima quinta-feira (9). A entidade pede protestos nas aldeias, nas
cidades ou mesmo virtuais, nas redes sociais.
“Sabemos
de toda a pressão que a bancada ruralista está fazendo junto aos parlamentares
e também ao governo para derrubar os vetos. Por isso temos feito uma estratégia
de incidência de agendas com parlamentares, principalmente do Senado para
tentar vencer essa questão”, disse Kleber Karipuna, coordenador da Apib.
O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou os pontos inconstitucionais do
projeto de lei, entre eles o critério de tempo para validar demarcações. Mas
manteve alguns pontos considerados como retrocessos por indígenas e
indigenistas, por permitirem a abertura de áreas indígenas ao agronegócio.
Mesmo
assim, a bancada ruralista não ficou satisfeita. O setor mais poderoso do
Congresso quer ver os retrocessos nos direitos indígenas implementados de forma
integral. Por isso, parlamentares financiados pelo agronegócio já afirmaram que
pretendem derrubar os vetos presidenciais.
Bancada
ruralista diz que Lula “enfrenta” o Congresso com veto ao marco temporal
O
deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente Parlamentar
Agropecuária (FPA), nome oficial da bancada ruralista, classificou os vetos de Lula
ao marco temporal como um “enfrentamento” ao Congresso.
“O
governo fez a opção de nos enfrentar e governar com o Supremo [Tribunal
Federal]. A vontade da população é expressa pela votação dos deputados federais
e senadores. A partir do momento que o governo opta por não respeitar isso, ele
tem bônus com a base dele e ônus com o resto do Congresso”, disse o parlamentar
ao Estadão.
Para
derrubar os vetos presidenciais, a sessão conjunta do Legislativo terá que ter
maioria absoluta, ou seja, pelo menos 257 votos dos deputados e 41 dos
senadores. A tese ruralista foi aprovada com 283 votos na Câmara e 43 no
Senado, mais do que o necessário para a derrubada dos vetos.
Se
nada mudar até o dia 9 de novembro, lideranças indígenas avaliam nos bastidores
que os vetos serão derrubados, reinstituindo o marco temporal das terras
indígenas. Pela tese jurídica, só podem ser demarcadas terras ocupadas por
indígenas na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988.
Câmara
refratária às reivindicações indígenas
A
Apib, que congrega organizações indígenas de todas as regiões do país, acredita
que há chances dos vetos serem mantidos. Mas veem a Câmara muito mais
refratária às reivindicações dos indígenas do que o Senado.
“Há
uma possibilidade grande de reverter esses alguns pontos ou quase sua
totalidade no Senado, já que as casas votam separadamente para obter a maioria
absoluta”, afirmou o coordenador Kleber Karipuna.
“Para
além disso, estamos chamando a mobilização nacional em todo o Brasil. Os
parentes devem marcar presença, fazer posicionamentos em atos e manifestações
pela manutenção do veto: Congresso, respeite os vetos!”, afirmou a liderança
indígena.
Fonte:
Por Paloma Gomes, Rafael Modesto e Nicolas Nascimento, no Le Monde/RBA
Nenhum comentário:
Postar um comentário