quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Utinga: o rio de águas claras que nasce grande e é engolido pela ganância do agronegócio

Aos olhos de quem chega, o rio Utinga aparenta ser mais um dos rios que compõem os diversos que se formam na Chapada Diamantina e alimentam as principais bacias do Estado da Bahia. Mas esse rio de águas claras surge de um grande manancial subterrâneo, com cerca de 630 litros por segundo. Desde a nascente até desaguar no Marimbus, esse rio drena uma área de 2.906 Km² e constitui um subsistema hidrográfico que integra a bacia hidrográfica do rio Paraguaçu.

Os municípios que dependem totalmente ou parcialmente inseridos na sub bacia do rio Utinga são Utinga, Wagner, Bonito, Morro do Chapéu, Lajedinho, Ruy Barbosa, Iraquara, Lençóis, Mulungu do Morro e Andaraí. Destes, os municípios cuja sede e maior parte do território estão dentro da bacia são apenas Utinga, Wagner e Bonito.

Em 1993, foi elaborado o Plano Diretor de Recursos Hídricos para estabelecer as outorgas do uso da água. A partir desse momento, os canais de regos e os barramentos foram sendo substituídos por bombas e mangueiras. Com o discurso da eficiência, o Estado adquire o controle das águas destruindo as tecnologias sociais de irrigação do povo e tirando a autonomia hídrica das comunidades.

Atualmente, no percurso do rio Utinga, existem 3.500 hectares de área irrigada, onde cultivam 2,4 milhões de pés de banana. Entretanto, a produção agrícola vem diminuindo a cada ano, e os moradores de alguns municípios já precisaram ser abastecidos por meio de carros pipa, devido ao grande número de irrigações que se concentra da nascente do rio Utinga até a sede do município de Wagner, sem critérios para minimizar o volume de uso, a lavoura cultivada e os cuidados com a tecnologia empregada nas diversas estações do ano.

Os meses de setembro e outubro correspondem ao período do ano em que as culturas praticadas na região têm uma necessidade maior de água. Por outro lado, historicamente, são estes os meses de mais baixa vazão nos cursos d’água. Baseado nesse índice, o cultivo de espécies perenes como banana são as menos recomendadas, já que exigem irrigação constantemente

Na tabela acima, vemos que dez produtores outorgados detêm o controle de 10.898,49 m³ de água superficial por dia para irrigar uma extensão de 233,35 hectares, o que equivale a uma média de 46.704 litros por hectare/dia. Percebemos ainda uma tendência de outorgas de grandes volumes entre 2013 e 2017. A partir de 2017 até 2023, os mesmos produtores substituíram as outorgas superficiais por subterrâneas aliadas à supressão de vegetação. Isso demonstra a ampliação das áreas por esses produtores e maiores passivos ambientais, enquanto, do outro lado, as comunidades rurais, assentamentos e quilombolas estão perdendo a diversidade produtiva e as extensões de áreas cultivadas.

Na mesma tendência, o estudo da Secretaria de Infraestrutura e Recursos Hídricos aponta uma redução significativa das vazões observadas no período mais recente (de 2001 a 2018), reduzindo de 3,412 m³/s (equivalente a 39,7 mm/ano) para 1.414 m³/s (equivalente a 16,4 mm/ano), representando menos que a metade, existindo aí uma superposição dos efeitos do período de estiagem severa que atingiu a região e da retirada de água para atender as demandas da agricultura irrigada.

Em outro levantamento apresentado pelo Comitê de Bacias do rio Paraguaçu – CBHP, desde os anos 50, com estudos hidrológicos básicos, apresentada na Nota Técnica 02 aponta que no ano de 1958 a vazão média do rio era de 3.149 m³/s enquanto que, em 2018 a média caiu para 0,531 m³/s. Com esses dados percebemos uma queda no volume médio e uma maior variação entre os períodos de enchente e de estiagem, como afirma os estudos de ampliação da oferta hídrica da sub bacia do rio Utinga.

Os próprios moradores relatam que até início dos anos 1990, o rio Utinga estava sempre cheio sob a ponte da BR 242. Era possível tomar banho em uma água límpida, pescar e observar os cágados d’água (tartarugas de água doce) no fundo do rio. Dessa forma, além dessas informações oficiais, há relatos que a crise hídrica se configurou, progressivamente, nos últimos 30 anos, período em que a gestão pública dos recursos hídricos ganha espaço, com a Política Nacional de Recursos Hídricos (CBHP, Balanço hídrico superficial preliminar da Bacia do rio Utinga, 2021).

O RIO QUE INSISTE EM VIVER

Este rio tem um histórico de luta e resistência desde o século XIX. Por volta de 1846, essa região era composta por muitos quilombos resistentes, que povoavam e cultivavam o vale do rio Mocambo. Segundo Senna (2005), com o fulgor das minas de diamantes de Lençóis e Estiva, surgiu às margens desse rio, um arraial de casinhas de palha que servia de pouso dos viajantes que interligava Jacobina, Morro do Chapéu e Orobó. Desde esse período há relatos de sistemas de barramentos e regos nas vazantes do rio Utinga.

Por volta de 1917, a região estava com mais de cem engenhos de cana, produzindo açúcar, rapadura e cachaça, além de grande produção de feijão, milho, arroz, mandioca, fumo, batata e outros. No boletim da Prefeitura Municipal de Utinga – PMU, na área do  rio Utinga desenvolveu-se projetos agrícolas com alta produção de hortaliças e frutas, sem o abandono da tradicional atividade agropecuária, onde a criação bovina e o cultivo de milho, feijão e café não foi deixado de lado (SENNA, 2005, p. 58).

Mas, essa realidade começou a ser mudado com a presença do Instituto de Álcool e Açúcar, criado em 1933 pelo governo de Getúlio Vargas. Este Instituto interferiu de certa forma com muita intensidade na economia, como afirma Ronaldo Senna sobre o vale do rio Utinga (2005), em que os engenhos foram calando a vida de todos, piorando e dando início ao grande êxodo.

RESPOSTAS DO ESTADO AO LONGO DOS ANOS, DIANTE DOS CONFLITOS

Nos anos de 1999/2000, a Companhia de Engenharia Hídrica e Saneamento da Bahia (CERB), através do Contrato Nº 015/99 com a GEOEXPERTS, elaborou os Estudos de Viabilidade de Barragens em uma Área da Bacia do rio Utinga com as seguintes recomendações: primeiro, a localização e identificação de 06 sítios de barramento, entre elas a Barragem Riacho Cachoeirinha, incluindo o estudo hidrológico realizado em maio de 1996, a pedido da Sete Ferros Agroindustrial Ltda.

O projeto conclusivo propõe uma barragem com capacidade de 4,12 Hm³ (4.120.000 m³), permitindo regularizar uma vazão de 0,197 m³/s para uma garantia de 100%. Tal vazão seria suficiente para permitir a irrigação de cerca de 400 ha. No projeto, as estruturas de extra vazão da barragem deveriam ser dimensionadas para uma cheia de projeto de 346,2 m³/s, correspondente a um Tempo de Recorrência (TR) de 500 anos.

O Projeto Executivo da Barragem no rio Cachoeirinha, no município de Wagner/BA, foi concluído em fevereiro de 2014, pela ENVGEO Engenharia, para a CERB. Numa avaliação atual, verificou-se ser possível, topograficamente, elevar em 2,00 m a cota deste N.A. máximo normal, passando-se a ter uma acumulação de 4,379547 hm³, aumentando em cerca de 44 %, o volume acumulado por esta barragem.

No entanto, a população em geral vem questionando a função dessas barragens, tomando por exemplo a situação hídrica da comunidade de Cachoeirinha que só piorou após a construção clandestina de barragens construídas na fazenda SARPA. Estas ações fizeram com que esse rio, também conhecido como rio das Lajes, secasse. Todas as dúvidas levantadas pelas comunidades partem desse exemplo, já que as barragens da Fazenda SARPA estão matando o rio e deixando o povoado de Cachoeirinha e diversas comunidades sem água. Nessas circunstâncias, mais uma barragem seria construída no mesmo rio e dentro de uma fazenda, evidenciando a incapacidade do Estado em fazer uma gestão democrática das águas.

Hoje, o rio Utinga destaca-se em função da expansão da agricultura, inclusive irrigada, em suas margens, causando conflitos associados à menor disponibilidade de água, agravada pelas oscilações na pluviosidade. Na parte baixa do rio tem ocorrido, sistemática ou sazonalmente, graves conflitos de uso da água, envolvendo as necessidades de irrigação acima e o uso precípuo para o abastecimento humano.

O próprio Estado reconhece que este conflito é gerado majoritariamente pelos usuários de água para irrigação e com outros usos, no entanto, sugere a distribuição melhor das disponibilidades de água nas zonas da bacia, além de promover a ampliação da oferta de infraestrutura hídrica necessária, através de barragens, poços, canais e adutoras. Entre as sugestões do Estado, estão as estratégias de armazenar a água do período chuvoso para o período seco, utilizar o manancial subterrâneo que tem menor influência da chuva sazonal e/ou adotar práticas que reduzam o consumo de água.

Ao tempo que o órgão público responsável reconhece suas fragilidades já que, a utilização da água subterrânea está, aparentemente fora de controle, com um grau de desconhecimento bastante significativo sobre onde estão localizados os atuais poços profundos que estão sendo explorados pelos usuários. Carece de uma gestão dos recursos hídricos mais disciplinada e presente com os instrumentos já existentes, como o controle nas demandas dos usuários e medidores de vazão e, por fim, a alocação da água, definida periodicamente para usuários da irrigação e os demais. Para isso, serão instaladas três barragens maiores de regularização interanual, quatro barragens sazonais de menor porte no médio Utinga e duas barragens sazonais no baixo Utinga. Mais duas barragens identificadas foram descartadas.

Destas, uma construção da barragem no rio Bonito está em licitação. Com a barragem, a implantação de uma adutora a partir da barragem, visando atender à cidade de Wagner e reativar o ramal de captação da Embasa no rio Bonito atendendo o Sistema de Abastecimento de Água – SAA de Lajedinho e abastecer mais 09 pequenas localidades.

Esta barragem tem uma ocupação rural significativa, envolvendo mais de 56 construções sedes de sítios e na sua maior parte bem cultivada, com agriculturas diversas. Possui também uma estrada vicinal por todo o vale que permite o acesso das propriedades de ambos os lados do rio e para a sede de Wagner, além de fornecimento de energia elétrica. Por outro lado, os eixos mais à jusante teriam maior adensamento de propriedades rurais do Vale. Além das desapropriações na área de inundação será necessário a construção de cerca de 24 km de estradas em ambos os lados do Vale e a relocação da rede de energia a ser redimensionada.

 

Fonte: CPT-BA

 

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