Venda, mercado e
doação órgãos: O debate inusitado que Javier Milei incitou na Argentina
Não
é um tema que esteja em sua plataforma política ou agenda pública, mas o
candidato populista de direita nas eleições presidenciais argentinas, Javier Milei, e seus apoiadores
insistem em discutir e gerar polêmica: o “mercado” de órgãos.
Depois
de Milei ter afirmado em 2022 que a venda de órgãos “era apenas mais um
mercado”, e insistido no assunto durante a campanha eleitoral, seus apoiadores
voltam à briga. Dessa vez foi Diana
Mondino, representante eleita pelo seu partido, La Libertad Avanza, e
que é mencionada como possível chanceler de um eventual governo Milei.
Em
entrevista televisiva, ela quis esclarecer a posição dos libertários sobre o
assunto e restabeleceu a polêmica.
“O
que se falou é do mercado de órgãos, que é algo radicalmente diferente da venda
de órgãos”, disse Mondino.
Na
Argentina, a venda de órgãos é proibida e, graças a uma lei aprovada em 2018,
qualquer pessoa com mais de 18 anos pode ser doadora de órgãos ou tecidos,
salvo indicação expressa em contrário.
Além
disso, existe uma lista de espera única em todo o país para cada tipo de órgão,
controlada e supervisionada pelo Instituto Nacional Central Único de Ablação e
Coordenação de Implantes (Incucai), e a distribuição e alocação de órgãos e
tecidos é feita por meio de um sistema de computador baseado em critérios
médicos pré-estabelecidos que levam em consideração principalmente a gravidade
do paciente, a compatibilidade entre doador e receptor e o tempo de espera em
lista de espera.
Segundo
estatísticas do Incucai, há atualmente mais de 7 mil pessoas na lista de espera
por um órgão e 2,8 mil por córneas.
Em
2022, o número de transplantes cresceu 24% em relação a 2021 e a Argentina
voltou aos níveis pré-pandemia: 4.024 pacientes em lista de espera receberam
transplante de órgão e córnea.
Da
mesma forma, após a implementação do Plano Nacional de Córnea, os transplantes
de córnea aumentaram 42% em 2022 em comparação com o ano anterior, e todos os
pacientes pediátricos que estavam na lista de espera receberam um transplante.
Embora
a América Latina esteja longe dos líderes mundiais neste assunto (Estados
Unidos e Espanha), a Argentina, juntamente com o Brasil, é a líder da região em
número de doadores, segundo o Registro Internacional de Doações e Transplantes.
Mas
em contraste com o sistema atual, Mondino continuou com a sua explicação: “O
que é o mercado de órgãos? Você precisa de um rim e não há ninguém em seu
círculo íntimo que seja compatível com você ou que possa ou queira doá-lo para
você, mas então, talvez, haja alguém do outro lado que seja compatível com
outro que seja compatível com outro que é compatível com você.”
Porém,
para o exemplo que Mondino utilizou, já existe um programa oficial específico
desde 2017.
O
“Programa de Doação Cruzada de Rim” abre a possibilidade de transplante renal
nos casos em que não há compatibilidade entre doador e receptor e envolve
várias pessoas: trata-se de uma troca de doadores entre receptores que possuem
doadores vivos, mas que não são compatíveis. Assim, os pacientes que necessitam
de transplante recebem um órgão de uma pessoa com quem não têm parentesco.
Foi
esse sistema que possibilitou, por exemplo, ao jornalista Jorge Lanata receber
um rim da mãe de um jovem doente, enquanto seu filho recebeu um rim da então
esposa de Lanata, Sara Stewart Brown.
No
entanto, como esse procedimento específico foi anterior à implementação deste
programa e ainda não foi regulamentado, exigiu uma autorização judicial
prevista na lei em vigor para situações particulares, o que, entre outras
coisas, procura confirmar que se trata de um ato altruísta e não não há nenhum
tipo de comércio.
Mondino
também afirmou que “há um homem que ganhou o Prémio Nobel por isto: Alvin
Roth”.
No
entanto, apesar de ter recebido esse prêmio em 2012, a União Europeia, que já
tinha realizado transplantes cruzados, vetou uma proposta em 2018 que procurava
iniciar uma cadeia internacional de transplantes renais cruzados entre países
ricos e pobres porque “tem o potencial para infringir o princípio fundamental
do não pagamento por órgãos humanos.”
Para
o chefe da Organização Nacional de Transplantes da Espanha, país líder no
assunto, seria “uma nova forma de tráfico de órgãos”.
·
O que Milei tinha dito
Em
2022, Milei disse a Lanata que a venda de órgãos era “só mais um mercado” e
questionou “por que tudo tem que ser regulamentado pelo Estado”.
“Como
vou organizar o corpo de outra pessoa, como vou decidir o que ela pode ou não
fazer? Quem decidiu lhe vender o órgão, como isso afetou a vida de outras
pessoas? Como isso afetou a propriedade de outros? Como isso afetou a liberdade
dos outros?”
Depois,
em maio de 2023, voltou ao assunto e, embora evitasse se manifestar a favor da
venda de órgãos, sustentou: “Há algo que não está funcionando bem”, porque
existem “mais de 350 mil potenciais doadores por lei” e “7.500 pessoas que
aguardam transplantes”.
“Há
algo que não funciona no meio e que gera muita corrupção”, argumentou, embora
não tenha explicado como esse problema seria resolvido. “Isso envolve as garras
do Estado”.
Incucai
respondeu com um comunicado em que afirmava que Milei desconhecia o
funcionamento do sistema e defendia a sua transparência, destacando que o
instituto foi escolhido pela Organização Mundial da Saúde como um dos três
centros colaboradores nesta área no mundo.
Além
disso, lembrou que qualquer pessoa que tenha conhecimento de ato ilícito ligado
à doação e transplante pode denunciá-lo, mas que sendo representante do Poder
Legislativo – Milei é deputado – “tem a obrigação de fazê-lo”, disse o
Instituto.
Ø
Filho
de general da ditadura, defensor de rompimento com Vaticano; quem são os
eleitos do grupo de Milei ao Congresso
Além
da ida do oposicionista Javier Milei para o
segundo turno das eleições presidenciais na Argentina, os libertários do
partido Liberdade Avança conseguiram se transformar em terceira força política
na Câmara e no Senado.
O
movimento de Milei saiu de uma bancada mínima — apenas três parlamentares — no
Congresso para ter 38 deputados e oito senadores. Ficará atrás, na nova
legislatura, do União pela Pátria (de Sergio Massa) e do Juntos pela
Mudança (coalizão liderada por Patricia Bullrich).
Os
grupos de Massa e de Bullrich, no entanto, diminuíram sensivelmente de tamanho.
Na Câmara, o União pela Pátria caiu de 118 para 108 deputados e o Juntos pela
Mudança saiu de 118 para 93 representantes.
Entre
os eleitos do Liberdade Avança há perfis bastante polêmicos: o filho de um
repressor da ditadura militar condenado por tortura, a maquiadora de Milei, um
economista que propôs romper as relações da Argentina com o Vaticano.
Eleito
pela província de Tucumán (noroeste do país), Ricardo Bussi é filho do general
argentino Antonio Bussi. Morto em 2011, ele foi um dos símbolos da repressão na
ditadura argentina (1976-1983) e responsável por 30 centros clandestinos de
detenção de presos políticos. O general foi condenado por sequestro, tortura e
assassinato no regime militar.
Lilia
Lemoine, que assumirá uma cadeira na Câmara pela província de Buenos Aires, é
fotógrafa e celebridade no mundo cosplay (pessoas que se fantasiam, com
acessórios, representando um personagem). Ela é maquiadora do candidato
presidencial que se apresenta como “anarcocapitalista”.
Lemoine
prometeu que apresentará, no começo da nova legislatura, um projeto de lei para
permitir a “renúncia da paternidade” pelos homens. “Não é justo que um homem
tenha que sustentar economicamente uma criança até os 18 anos quando não quer
tê-la”, afirmou a deputada eleita.
Em
uma entrevista, ela explicou como pretende encaminhar sua proposta: a lei
estabeleceria que uma mulher, ao saber da gravidez, teria 15 dias para
notificar o pai — que “poderia decidir se quer reconhecer o filho ou não”.
Outro
vitorioso nas eleições parlamentares foi o economista Alberto Benegas Lynch, de
83 anos, que propôs o rompimento dos laços diplomáticos entre a Argentina e o
Vaticano por causa do “espírito totalitário” do Papa Francisco.
Lynch
defendeu essa ideia no encerramento da campanha de Milei no primeiro turno, um
evento que reuniu milhares de pessoas na Movistar Arena, o espaço mais moderno
de espetáculos e competições esportivas indoor de Buenos Aires.
O
próprio Milei, em entrevista recente ao jornalista americano Tucker Carlson
(ex-âncora da Fox News), criticou o pontífice: “[Ele] tem afinidade por comunistas
assassinos. De fato, não os condena e é bastante condescendente também com a
ditadura venezuelana. É condescendente com todos da esquerda, ainda que sejam
verdadeiros assassinos”.
O
partido Liberdade Avança elegeu ainda nomes como Martín Menem, sobrinho do
ex-presidente Carlos Menem, para a Câmara e Juan Carlos Pagotto, advogado
defensor de militares condenados por crimes de lesa-humanidade na ditadura,
para o Senado.
Ø
As
mulheres trans torturadas pela ditadura na Argentina
Os
testemunhos dos sobreviventes serviram para demonstrar a perseguição
sistemática contra as mulheres trans.
Diferentes
organizações de direitos humanos indicam que cerca de 400 pessoas da comunidade
LGTBQ+ foram vítimas da repressão militar.
Mas
quando foram presos, nem todos sabiam que eram vítimas do aparelho repressivo
militar. Muitos pensaram que se tratava apenas de mais uma costumeira operação
da polícia.
“Me
forçaram a entrar num carro e me levaram para este lugar, que só pude
reconhecer muitos anos depois, quando o vi em uma das transmissões do Juicio de
las Juntas”, diz González, referindo-se ao processo judicial que começou em
1985 por ordem do presidente Raúl Alfonsín contra os membros das três primeiras
Juntas Militares.
Depois
de apagar o enésimo cigarro durante nossa conversa, González volta a mencionar
uma lembrança que repetiu ao longo de sua história:
“A
imagem que mais fica comigo é que quando cheguei tinha uma menina sozinha, como
se tivesse levado uma surra, num canto. Ela tinha uma expressão como se tivesse
sido abandonada ali.”
·
“Não tínhamos outra opção senão a prostituição"
“Eles
nos perseguiram para nos disciplinar por causa de nossa identidade. Éramos uma
praga que precisava ser exterminada", disse à BBC Mundo Carla Fabiana
Gutiérrez, detida no Poço de Banfield, uma das principais prisões e centros de
tortura da ditadura argentina, em 1978.
Gutiérrez
fala comigo em italiano. Ela pensa que a contactei por meio de um meio de
comunicação local em Milão, onde vive há vários anos, mas depois descobre que
falo espanhol.
Peço
que ela fale sobre o que aconteceu no Poço de Banfield e ele concorda
imediatamente. Em qualquer idioma.
"Claro.
Quero falar por todas aquelas pessoas que gritaram ‘Chega, por favor, não faça
isso de novo!’ e deixar claro o que os torturadores que viveram impunes todos
esses anos fizeram”, afirma.
Gutiérrez
nasceu no bairro de Mataderos, sudoeste da capital argentina. Ela sempre se
sentiu uma mulher.
“Eu
tinha 15 anos quando conheci uma mulher trans e sabia que queria ser como ela.”
Há
um ponto em que as histórias de todas as sobreviventes da ditadura se
encontram: todas tiveram que se dedicar à prostituição “porque não tínhamos
outra opção de conseguir dinheiro”.
Carla
começou a trabalhar à noite, assim como Julieta.
“Eu
queria fazer o que faziam as mulheres trans, que eram muito poucas e não as
chamávamos assim. Naquela época só existiam homens e mulheres. E gays, mas eu
não queria ser gay. Eu queria ser mulher”, diz Gutiérrez.
Então
ocorreu o golpe de estado de março de 1976.
“A
polícia estava nos perseguindo o tempo todo. Mas quando nos pegaram naquele
momento em que (os militares) chegaram ao poder foi diferente”, diz González.
“Eu
tinha 14 ou 15 anos. Tiraram os sapatos que eu estava calçando, me deixaram
meio nu, para comer tive que perguntar se tinham sobras e pagar pela comida. O
pagamento esperado por eles era com sexo”, lembra Gutiérrez.
"Eu
não entendi nada. Foi a primeira vez que alguém me bateu. Eles me humilharam
durante todo o tempo que estive lá e eu não sabia por quê.”
·
Limpar poças de sangue
Os
depoimentos perante o tribunal ocorreram em abril passado.
Estas
mulheres puderam testemunhar no âmbito do julgamento das chamadas “brigadas”,
que eram os comandos policiais que geriam os centros clandestinos de detenção,
tortura e extermínio conhecidos como Inferno (localizados em Lanús, no sul da
zona suburbana de Buenos Aires), Poço de Quilmes e Poço de Banfield (nas
cidades de mesmo nome, também no sul).
Tanto
Julieta como Carla estiveram presas neste último.
Centros
de detenção clandestinos foram usados pelos comandos militares e policiais
argentinos para deter, torturar e “desaparecer”
dezenas de milhares de pessoas (estima-se que até 30 mil, segundo
organizações de direitos humanos) em meio a uma
repressão feroz.
O
que ficou conhecido como Poço de Banfield era um prédio localizado dentro da
Brigada de Investigação Policial, que funcionava na cidade de Banfield.
González
lembra do lugar pelas janelas.
“Tinha
janelas enormes que nos faziam limpar quase todos os dias. Não me esqueço mais
delas, até porque via por ali chegarem os carros que levavam as pessoas para o
centro e os soldados dentro deles.”
Em
conversa com a BBC Mundo, ela lembra do inferno a que a submeteram: “Eles me
estupraram diversas vezes. Ouvi pessoas gritarem, limpei poças de sangue nos veículos
que as levavam a esses centros. Ouvi bebês nascendo.”
Gutiérrez
lembra que quando os superiores iam embora e só permaneciam os oficiais de
nível médio, eles a tiravam de sua cela e a forçavam a ter relações sexuais.
“É
horrível quando alguém te força a fazer algo que você não quer. Mas não foi
isso. Eram os gritos, constantes. Logo percebemos que eles estavam fazendo
coisas horríveis com as pessoas que estavam lá. Até hoje ainda ouço esses
gritos.”
Posteriormente,
ela percebeu que não só pessoas eram torturadas naquele local, mas algo mais
grave estava acontecendo. Tudo aconteceu quando recebeu ordens para limpar um
carro usado pelos militares.
“O
que tive que limpar foram poças de sangue que estavam no chão do carro. Não
eram manchas secas, o sangue era abundante e fresco”, afirma.
·
Construir memória
Tanto
González como Gutiérrez não passaram mais de um mês no centro clandestino de
Banfield, mas nunca entenderam por que foram levadas para aquele local.
Em
dezembro de 1983, Raúl Alfonsín foi empossado como presidente eleito da
Argentina, marcando o fim do regime militar.
Além
de todos os processos de reparação e memória que se iniciaram a partir daquele
momento, o movimento trans iniciou um em especial: a criação de um arquivo onde
pudessem ser registradas as atividades que mulheres trans haviam desenvolvido
ao longo da história para o reconhecimento de sua identidade.
Muitas
pessoas passaram a fornecer documentos, fotos, testemunhos do que sofreram,
tanto nos governos militares como na democracia.
“Há
alguns anos, no meio desse processo, contei o que havia acontecido no Poço de
Banfield e alguém que me ouviu me chamou para testemunhar no julgamento que
estava sendo realizado contra aqueles que dirigiam esses lugares”, diz
Gutiérrez.
O
depoimento ajudou a reafirmar a identidade dos perpetradores e a constatar que
ali nasceram vários meninos ou meninas, dos quais nada mais se ouviu falar.
A
expectativa é que em breve seja determinada uma sentença para os responsáveis.
“Muitas
coisas aconteceram naquele lugar e precisamos falar sobre isso como foi: uma
violação, um ataque direto à nossa dignidade e à das pessoas que não estão mais
aqui”, finaliza.
Fonte:
CNN Brasil/BBC News Brasil
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