O mercado queria
Bolsonaro e suas privatizações, mas a população preferiu um presidente com
olhar social
Lula
foi eleito prometendo redirecionar os recursos do Estado para atender as
camadas menos favorecidas, deixadas de lado no governo Jair Bolsonaro. Este,
por sua vez, que se elegeu, em 2018, demonizando a atuação do PT nos governos
Lula (2003 a 2010) e Dilma (2011-2016), pregava a austeridade fiscal, o
liberalismo e a privatização. Mas, em nome da reeleição a qualquer preço, além de
abusar da máquina do Estado em sucessivas oportunidades, incluindo “fake news”
– que levaram à condenação, como inelegíveis, de Bolsonaro e seu vice, o
general Walter Braga Neto –, o governo passado rasgou a cartilha
libero-ortodoxa na economia. No final de 2021, para reforçar os gastos
eleitoreiros, declarou calote de mais de R$ 150 bilhões nos precatórios
(dívidas da União transitadas em julgado). Quando a invasão da Ucrânia pela
Rússia, em fevereiro de 2022, detonou uma escalada da inflação, com altas de
combustíveis e pressões em alimentos, prejudicando suas chances eleitorais,
Bolsonaro, contrariado pelos reajustes dos combustíveis (seguindo a regra do
PPI, de fins de 2016), trocou vários presidentes da Petrobras.
Vendo
que a estratégia do Banco Central de elevar juros para combater uma inflação
acima de dois dígitos (a Selic estacionou em 13,75% em 3 de agosto de 2022),
iria minar as chances de reeleição do presidente, o ministro da Economia, Paulo
Guedes, rasgou a cartilha liberal que usou em 2018 como “Posto Ipiranga”, e
indicou assessor (o 4º presidente trocado por Bolsonaro) para comandar a
Petrobras, que Bolsonaro prometia privatizar se reeleito. Vale lembrar que a
antecipação de lucros dos bancos federais e da estatal decorrentes da alta dos
combustíveis e da venda de ativos veio cobrir gastos eleitoreiros. Guedes
aumentou de 50% o Auxílio Brasil para R$ 600 mensais e criou mesadas de R$ 1
mil, também de julho a dezembro, para caminhoneiros e taxistas. E ainda cortou
(até 31 de dezembro) impostos federais e estaduais de combustíveis, em especial
da gasolina (que tem o maior peso na inflação oficial), energia elétrica e
comunicações. A inflação caiu de 12,07% para 5,79%, mas não adiantou. Os
eleitores preferiram um governo com visão social, frente ao governo que ignorou
o luto pela morte de 770 mil brasileiros.
Apesar
da gastança de bilhões, com o atraso nos programas sociais e calotes nos
precatórios, o ano de 2022 fechou com um falso superávit primário (receitas
engordadas pela inflação até julho). Digo falso por que o Orçamento de
Transição para 2023 acabou aprovado com grande maioria dos votos dos políticos
ligados a Bolsonaro, eleitos no 1º turno, com bilhões de restos a pagar
transferidos para o OGU de 2023. Deixar gastos pendentes seria engrossar, no
Tribunal de Contas da União, o rol de ações já em curso na Justiça Eleitoral.
·
A geringonça política de Lula
O
fato é que Lula, com base minoritária e dispersa na Câmara e no Senado, teve
grande dificuldade de aprovar o desenho de seu governo – com o aumento do
número de ministérios e ênfase nos gastos sociais. Em Portugal, em 2015, o
primeiro-ministro Antônio Costa, do Partido Socialista (PS), de
centro-esquerda, teve de fazer das tripas coração para costurar uma aliança com
partidos minoritários de extrema esquerda no contexto europeu - o Partido
Comunista Português (PCP), o Bloco de Esquerda e o partido Os Verdes. Era tão
penoso e difícil o entendimento, entre os grupos à esquerda, que o arranjo para
o professor Antônio Costa ter aprovação, por maioria, das propostas do gabinete
no Parlamento luso foi batizado de “geringonça”. Reeleito em janeiro de 2022,
Antônio Costa conseguiu formar maioria com o PS e abriu mão da aliança com os
parceiros mais à esquerda na “geringonça”.
Quando
vejo Lula - cujo tamanho político-eleitoral sempre foi maior que o PT, e
comprovou mais uma vez isso em 2022 -, que já tinha a aliança natural do PT com
o PcdoB, atrair o PSB, negociar alianças com o PDT e as forças do centro, do
PSD e do MDB, e ainda costurar acordos com partidos furta-cor como o União
Brasil, e os conservadores do Republicanos (o partido político da Igreja
Universal do Reino de Deus) e mais a tradicional ala “hay Gobierno, soy a
favor” do PP - que esteve 100% com Bolsonaro e agora tem a parte liderada pelo
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), como o mais fiel aliado em propostas
importantes para o governo -, dá para entender por que Lula teve de ceder a
Caixa Econômica Federal com “porteira fechada” a indicado pelo PP (que já atuou
na Caixa com Dilma) e lotear alguns ministérios ao PP, ao União, ao MDB, ao
PSB, ao PSD e ao PDT.
A
Constituição de 1988 foi desenhada para o regime parlamentarista. Ulysses
Guimarães não teve coragem de implantar o modelo na largada. Deixou para um
plebiscito, cinco anos depois (1993), sepultar a ideia 30 anos após a volta do
presidencialismo, em fevereiro de 1963, quando Jango retomou o comando pleno do
governo (de onde foi apeado em 1º de abril de 1964). A “geringonça” política
brasileira (à direita ou à esquerda) faz contorcionismos para abrigar, no
Ministério e na estrutura do Estado, correntes da Câmara e Senado que foram -
aberta ou veladamente - oposição a Lula na campanha.
·
O pragmatismo de Lula
O
mercado queria Bolsonaro e suas ideias privatistas e de redução do papel do
Estado como ente regulador da economia e dos conflitos sociais. Mas a maioria
da população preferiu a volta de um presidente com olhar social.
Para
reconstruir os orçamentos (federal e dos estados e municípios) esgarçados pelos
cortes arbitrários e unilaterais de impostos feitos por Paulo Guedes, as áreas
econômicas e políticas se contorcem para cumprir os compromissos de campanha
sem descontrolar as contas públicas. Como 2024 é um ano eleitoral (renovação
das prefeituras e câmaras municipais), que serve de prévia às eleições de 2026,
Lula não abre mão de cumprir as promessas de campanha e de retomar projetos de
investimentos em obras e na área social.
Lula
já “abrasileirou” os preços dos combustíveis, transformando em trunfo para a
competitividade nacional as grandes reservas de petróleo mais leve do pré-sal,
extraídas a baixo custo pela Petrobras, que o usa em suas refinarias (operando
a 96% da capacidade). O contraste é notável. O Brasil estaria muito mais
exposto às oscilações inflacionárias dos especulativos preços do mercado
internacional, se Bolsonaro fosse reeleito e já estivesse anunciado a
privatização da Petrobras. No ano eleitoral de 2024, Lula não quer frear
investimentos que vão melhorar a vida dos brasileiros e tornar a economia mais
competitiva. O pior que poderia fazer seria parar os investimentos pela metade,
com custos financeiros e políticos (a enorme frustração da sociedade).
O
grande economista John Maynard Keynes já provou que a ação dos investimentos
bem liderados pelo Estado movimenta a engrenagem da economia. Isso tirou os
Estados Unidos da grande depressão, iniciada em 1929 com a quebra da Bolsa de
Nova Iorque. Após a 2ª Guerra, para ser mais pujante, a economia americana
precisava de parceiros para promover o comércio mundial. Os investimentos pelos
Estados europeus ajudados pelo Plano Marshall fizeram a Europa vencer a longa
recessão. No Brasil, desde o 1º longo período Vargas, ficou evidente que os
ciclos de expansão econômica foram liderados pela ação dos investimentos
indutores do Estado: a criação da CSN foi a marca da 1ª era Vargas, junto com a
CLT; a breve 2ª era teve como marca a criação da Petrobrás, em outubro de 1953.
No
governo JK, o Plano de Metas implantou a indústria brasileira de consumo de
bens duráveis, cujo acesso ao mercado interno, impraticável pela malha
ferroviária construída há mais de um século para escoar o café das regiões
produtoras para os portos exportadores, ficou obsoleta, foi facilitado com a
construção de rodovias (mais rápidas e com custo menor que o trem). Os governos
militares reforçaram a infraestrutura da energia, telecomunicações e portos e
aeroportos. Mas a migração da produção agrícola para o Centro-Oeste, a partir
de 1980, não foi seguida por corredores rodoviários ou ferroviários de exportação
rumo aos portos do Sul, Sudeste e Norte. Lançada no fim dos anos 80, a Ferrovia
Norte-Sul, só agora, liga as duas extremidades.
·
Fiscalismo trava economia e o bem-estar
A
crise do petróleo em 1973 pôs em xeque o ‘milagre brasileiro’. A economia ficou
vulnerável e o país fez um esforço de grandes projetos para reduzir déficits
comerciais enquanto não descobria petróleo (que veio em agosto de 1974, com a
Bacia de Campos, que começa a produzir para valer na década de 80). Mas o
Brasil, endividado pela escalada dos juros nos Estados Unidos, que chegaram a
20% ao ano na virada de 1979 para 1980, estourou todos os cronogramas dos
empréstimos externos tomados a partir de 1973, para ajustar estruturalmente o
balanço de pagamentos. Quebrado, teve de recorrer ao Fundo Monetário
Internacional, em 1982. Ao adotar a política fiscalista de contenção dos gastos
do Estado, a economia brasileira atravessou várias décadas de estagnação e
segue com crescimento baixo ou os chamados voos de galinha – a expansão de um
ano não se sustenta no seguinte.
A
culpa não foi propriamente dos gastos mal feitos pelo governo (embora o
desperdício e os sobrepreços cobrados pelos fornecedores e empreiteiras, dado o
histórico de atraso de pagamentos, sejam regra geral). O caso da hidroelétrica
binacional de Itaipu (no rio Paraná, entre Brasil e Paraguai) é emblemático.
Maior hidrelétrica do mundo até os chineses criarem Três Gargantas (já no 3º
milênio), Itaipu era um dos grandes projetos para substituir o petróleo
importado. Os financiamentos a longo prazo – maiores e com maior carência
quando envolviam a compra de equipamentos - tinham como parâmetros juros de 6%
a 7% ao ano. O Brasil bancou 100% dos avais externos e o Paraguai, que tinha
uma indústria incipiente, se comprometeu a ficar com pouco mais de 10% da
energia gerada. Quando os juros dispararam, os cronogramas financeiros foram
para o espaço (assim como os de outros projetos públicos e privados). A
renegociação das dívidas foi inevitável e o Tesouro americano reconheceu sua
responsabilidade na quebra financeira dos países emergentes, refinanciando, com
descontos várias dívidas no Plano Brady, concebido em 1985-86 pelo secretário
do Tesouro Nicolas Brady. Vale lembrar que só em meados do ano passado a dívida
externa de Itaipu (que responde por 30% da geração hidroelétrica do país) foi
quitada. Por isso, houve desconto da conta cambial nas faturas mensais de
energia elétrica.
Mas
o método de conta de padeiro do FMI – de medir os gastos públicos dos Estados
pela diferença entre as receitas de caixa e as despesas de cada ano, sem contar
os altíssimos juros da dívida pública) – serve apenas para garantir um esforço
fiscal para honrar o pagamento dos juros da dívida. Acontece que no caso do
Brasil os juros ficaram tão elevados que os aumentos de gastos com o serviço
dos títulos da dívida (que beneficiam bancos que administram fundos de
investimento e grandes investidores individuais e grandes investidores
institucionais – fundos de pensão, seguradoras) superam largamente o aumento de
gastos do governo com as camadas de menor renda.
De
2019, quando os gastos com juros da dívida ficaram em R$ 367,2 bilhões (4,97%)
do PIB, houve déficit primário de R$ 61,8 bilhões (0,84% do PIB) para 2020, com
a baixa da taxa Selic a 2% ao ano, a partir de maio, os gastos com juros
reduziram para R$ 312,4 bilhões (4,11% do PIB), mas os gastos com a pandemia
levaram a um déficit primário de R$ 702,9 bilhões, ou a 9,54% do PIB. Em 2021,
a economia reagiu, cresceu 2,9%, mas os gastos com juros deram um salto: foram
a R$ 448,4 bilhões (+ R$ 136 bilhões) ou a 5,05% do PIB, superando largamente o
superávit primário de R$ 64,7 bilhões (0,73%) do PIB. E o déficit nominal ficou
em R$ 393,6 bilhões (4,32% do PIB). Já no ano passado, com todos os calotes e
mexidas na economia, que geraram o superávit de R$ 125,9 bilhões ou 1,28% do
PIB, com sacrifícios da merenda escolar, de programas educacionais, na área de
saúde, do Minha Casa, Minha Vida e outros, o aumento de R$ 138 bilhões
destinado aos financiadores da dívida (que custou R$ 586,4 bilhões) engoliu
tudo.
Devido
à greve dos funcionários do Banco Central, os dados de setembro (previstos para
31.10) só serão conhecidos dia 8 de novembro. Até agosto, os gastos somavam R$
467,1 bilhões, devido à manutenção da Selic em 13,25% (só em setembro caiu para
12,75% e esta semana para 12,25%). E nos 12 meses terminados em agosto a conta
subiu ainda mais para R$ 689,3 bilhões (6,60% do PIB). Lula não quer conter os
gastos programados para este ano e para 2024, para honrar compromissos com os ricos
investidores nos papéis da dívida que ganham dinheiro sem fazer muita força.
Para ele, o dilema é falso. E cabe à sua base política, reforçada no Congresso,
encontrar a saída, garantindo os recursos propostos pelo governo para reforçar
a arrecadação.
A
outra parte depende da queda mais rápida dos juros para evitar que a economia,
que deve crescer 3% este ano, reduza a velocidade, como no voo da galinha, para
1,5% em 2024. A escalação de dois diretores para o Banco Central, em janeiro,
garantiria maior cacife ao governo contra o conservadorismo do Comitê de
Política Monetária na 1ª reunião do Copom em 2024, em 31 de janeiro. Seria um
bom presente para meus 74 anos, um Banco Central mais sintonizado na economia
real e menos à visão operacional de mercado. A baixa de juros, mais firme e
acelerada reforçaria a arrecadação e poderia fazer a roda da economia girar
mais rápido e redistribuir renda no país.
Fonte:
Por Gilberto Menezes Côrtes, no Jornal do Brasil
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