Os mascotes do
consumismo digital
“Mãe,
imagine se o mundo fosse todo pixelado!? Seria incrível”. Foi com essa frase
que o filho de 6 anos de uma das autoras deste artigo a confrontou com o
imaginário de uma geração. A indagação sobre o mundo “real” (se é que ainda
podemos dizer isso) convertido em definição pixelada de videogame, revela um
tipo de influência que o ambiente digital pode exercer na infância. Entre a
imaginação de um mundo pixelado até a vontade de fazer vídeos e compartilhar
nas redes foi um caminho rápido. “Mãe, quero colocar um vídeo na internet”. Daí
uma inversão: se não é possível transformar o mundo em pixels, a criança deseja
virtualizar-se.
Testemunhar
crianças socializadas nas redes sociais nos conta sobre nosso tempo, nos serve
como lente de análise sobre aquilo que normalizamos enquanto formas de ser em
um tipo de mundo. Mas, principalmente, pode nos servir como ferramenta para
identificar o papel social da criança em tempos de capitalismo digital.
Desde
que redes sociais digitais como Instagram, YouTube, Facebook e, mais tarde,
Tiktok foram lançadas é notável a emergência da figura do influenciador como
sujeito representante de sua época. Mas, o influenciador não existe sozinho,
sua importância é legitimada pelo número de seguidores que acumula. Sem
restrição de classe, raça, gênero, etnia, geração ou ideologia, ser
influenciador e seguidor é prática generalizada e cotidiana da comunidade
digital.
Mas,
influenciar modos de vida que legitimem a produção e o consumo de mercadorias
não nasce com as redes sociais. Os dispositivos que influenciam consumidores
atravessam a história do capitalismo e se redimensionam a cada crise do
sistema. Identificar tais dispositivos, suas formas e dinâmicas renovadas, nos
ajuda a compreender o capitalismo e seu processo histórico, que depende da
produção de sujeitos para reproduzir-se e reorganizar relações sociais
subordinadas às demandas econômicas de cada época.
Qual
seria a localização do influenciador-mirim digital no circuito do capital? E,
mais especificamente, como tal sujeito internaliza uma racionalidade econômica
funcional a tal circuito? A partir destas perguntas, pretendemos localizar o
influenciador-mirim digital e seus seguidores no ciclo de acumulação do
capital. Discutiremos a relação codependente e de retroalimentação entre
influenciadores e seguidores através de um conjunto de práticas que os
caracterizam como sujeitos produzidos pelo capitalismo contemporâneo, sobretudo
pela esfera digital da economia. Tal relação é contextualizada como peça-chave
da acumulação capitalista, com foco para a etapa necessária da circulação do
capital, ou seja, da compra e venda das mercadorias, da garantia do seu “salto
mortal” (Marx, 2013, p. 243) como momento crucial do processo de reprodução do
capital e do capitalismo.
Nossa
hipótese é que o influenciador-mirim vem se tornando, junto com a emergência
das redes sociais, peça-chave para a etapa de circulação do capital e o mascote
encarregado de performar um conjunto de práticas sociais que tem como efeito
(e, ao mesmo tempo, estímulo) a internalização de uma razão econômica prescrita
pela necessidade de aceleração da circulação do capital.
·
Influenciador-mirim digital: o mascote na influência do
consumo
O
influenciador-mirim digital tem sido tema de debate de algumas pesquisas, em
sua maioria no campo do direito e ciências sociais. O foco de tais abordagens
variam entre a denúncia da exploração do trabalho infantil (Oliveira, 2022), a
intensificação da publicidade com as novas tecnologias (Efing, 2021), as
relações de gênero na identidade digital (Marôpo, Miranda, Sampaio, 2018), a
infância e a produção de novas subjetividades (Tomaz, 2017), a expansão das
telas através de um modelo econômico (Azen e Bezerra, 2022) e as relações entre
o trabalho reprodutivo e o trabalho digital (Jarret, 2016), entre outras.
De
forma geral, o debate em torno do trabalho exercido pelos
influenciadores-mirins digitais toca pouco no seu papel específico dentro do
ciclo do capital como um todo. Para nós tal especificidade é importante para
que se possa analisar o trabalho infantil no contexto digital e identificar a
continuidade de uma racionalidade econômica que dribla regulamentações para
garantir a reprodução do capital.
Consideramos
influenciadores-mirins aqueles que usam seus perfis como veículos para a
propaganda de marcas e seus produtos. Seja como nos casos de Instagramers que
compartilham seu cotidiano como outdoors na divulgação de mercadorias como, por
exemplo, os perfis @valeti-namunizreal (8 anos, 2,2 milhões de seguidores) e
@luisaminibloger (7 anos, 315 mil seguidores); ou como nos casos de YouTubers
que monetizam seus canais através da propaganda de marcas que interpelam o
conteúdo dos vídeos, como, por exemplo, os canais Planeta das Gêmeas (10 anos e
7,4 milhões de inscritos) e Isaac do Vine (9 anos e 4,9 milhões de inscritos)
(Sayuri, 2018).
Neste
artigo não nos dedicamos a uma análise dos perfis, dos conteúdos dos canais e
as variações de cada plataforma dentro de um mesmo modelo de negócios. Focamos
no debate mais abrangente em torno daquilo que unifica os exemplos citados como
parte de uma cultura digital, caracterizada pelo capitalismo contemporâneo, sua
demanda em acelerar a dinâmica entre produtividade e consumo através da
reorganização das relações de trabalho e do papel da infância em tal
reorganização.
Compreender
como a reprodução da força de trabalho acontece em função das transformações
tecnológicas é fundamental para analisar o papel da infância dentro do ciclo de
acumulação do capital. A teoria do trabalho reprodutivo contribui amplamente
para a teoria do valor, ao reivindicar que a força de trabalho não poderia
existir e ser explorada sem que o trabalho doméstico estivesse em ação. A
esfera doméstica é, portanto, fundamental para a reprodução do capital, como em
Federici, (2011), Ferber e Nelson (1993), Folbre (2001), Fortunati (1995),
Jarret (2016), Mies (1988), Picchio (1992).
Jarret
(2016) atualiza o debate sobre trabalho reprodutivo usando o conceito de “dona
de casa digital”. Trata-se do “ator que emerge das estruturas e práticas do
trabalho ostensivamente voluntário dos consumidores, à medida que eles se
expressam, compartilham opiniões (…) em mídias digitais comerciais, ao mesmo
tempo em que agregam valor econômico para esses sites” (Jarret, 2016, p. 06). A
autora aborda as dimensões do trabalho imaterial presente desde o espaço
doméstico, suas associações com a mercadoria-audiência (Smythe, 1981) e sua
contribuição para o circuito do capital. Tal debate é fundamental para este
artigo, já que posicionamos o papel da infância como estruturante do trabalho
exercido pela audiência. A “preparação das crianças para seu papel nas
audiências” (SMYTHE, 1981, p. 236) demonstra o contexto em que tal preparação
acontece e a importância da atenção do público infantil para a mercadoria
audiência. O espaço doméstico e as funções familiares implicadas nele são o
contexto central do trabalho da audiência (Smythe, 1982).
A
partir da compreensão da família como instituição que organiza a invenção da
infância (Ariès, 1975), nos interessa, principalmente, a relação da infância
com a inauguração do sujeito consumidor. A presença da infância no centro da
família consumidora caracteriza o sucesso da produção e consumo em larga escala
e o enraizamento do consumismo através da publicidade em massa. A partir do
aumento do consumismo e da publicidade em massa criaram-se “novas e tentadoras
oportunidades de gastos. Esperava-se que os pais, quer pudessem ou não, treinassem (itálico
nosso) as crianças como consumidores experientes” (Zelizer, 1985, p. 13).
O
sujeito consumidor inaugura, portanto, a possibilidade de um tipo de trabalho
camuflado por uma narrativa de direitos. Com os aparatos de comunicação, a
criança passa a ser sujeito de direitos, de desejos e de vontades (Schor,
2009). Mas, é no século XXI que as novas tecnologias incrementam o estatuto de
consumidoras de bens materiais e simbólicos com o título de produtoras e
emissoras desses bens (Buckingham, 2007). É essa unidade de práticas que
caracteriza aquilo que Tapscott e Williams (2006) chamaram de prossumidor.
Observamos,
portanto, como a demanda de acumulação encontra brechas para cooptar e, ao
mesmo tempo, produzir atividades exercidas no espaço doméstico enquanto formas
de trabalho. No caso dos influenciadores-mirins, tais atividades consistem em
práticas capazes de gerar informações para a produção, consumo e circulação de
mercadorias online. É a partir do espaço doméstico que tais práticas são
capturadas e compartilhadas nas redes, como constante exploração daquilo que
crianças fazem em casa.
Nesse
sentido, é relevante notar que a expansão das telas no espaço doméstico
transforma, através do entretenimento audiovisual, “o lazer moderno e o próprio
sujeito do lazer” (Azem e Bezerra, 2022, p.88). A cultura de massa, criadora de
uma “cultura do lazer” (Morin, 2018, p.61), extrapola os limites entre lazer e
trabalho. Tal extrapolação nos conta sobre como a infância torna-se, ao longo
da história, funcional ao circuito do capital. No contexto digital, a cultura do
lazer não estaria mais limitada ao ato de assistir, mas também como estímulo de
produção de conteúdo. O ato de brincar diante das câmeras, capturar e
compartilhar o lazer nas redes torna-se justificativa do não-trabalho e, ao
mesmo tempo, capital lúdico (Tomaz, 2017), através do qual “o brincar é
transportado do âmbito privado para o público” (Marôpo, Sampaio e Miranda,
2018, p. 185). Ou ainda, como diz uma mãe, produtora de suas filhas: “para
elas, sempre será uma brincadeira. Eu trabalho” (Sayuri, 2018).
Até
aqui, ressaltamos a importância do espaço doméstico como território onde o
papel da infância se transforma em função da reorganização da força de
trabalho. O que caracterizaria a esfera doméstica na contemporaneidade digital
é sua função na produção de dados sobre consumo e, ao mesmo tempo, na produção
de propaganda. A seguir, observaremos a propaganda na tarefa de atualizar o
influenciador-mirim como papel que estimula o consumo e dinamiza a organização
e previsão do comportamento consumidor.
·
O papel social da propaganda
A
tarefa da propaganda em acelerar a etapa de circulação do capital acompanha a
história do capitalismo e foi responsável por garantir que a produção em massa,
mobilizada a partir da revolução industrial, encontrasse seu destino nos consumidores.
Mais especificamente, é no pós-Segunda Guerra Mundial que a propaganda expande
o seu mercado para o público infanto-juvenil que passa a exercer influência no
consumo da família (Schor, 2009).
No
documentário The Century of the Self, Curtis (2002) mostra como a
grande recessão iniciada em 1929 e a preocupação com crises de superprodução no
pós-guerra influenciaram as estratégias desse setor. O documentário demonstra
como a década de 50 foi marcada pela tradução subversiva dos fundamentos da psicanálise
para a propaganda, a fim de garantir a continuidade e a celeridade do consumo.
A propaganda descobriria que precisava estimular as pessoas a transitarem de
uma cultura da necessidade para a cultura do desejo. Tal estímulo vinha com uma
promessa, a ideia de que o consumo motivado pelo desejo garantiria que o
sujeito se expressasse no mundo, que sua interioridade mais íntima pudesse ser
vista e percebida pelo outro. Assim, objetos irrelevantes, desnecessários,
passaram a se tornar símbolos emocionais sobre como os sujeitos gostariam de
ser vistos uns pelos outros. Comprar um produto deixava de ser mero consumo e
se tornava ato de engajamento pessoal, da intimidade do eu, com aquele serviço
ou produto.
Curtis
(2002) adentra na origem dos mecanismos de previsão do comportamento
consumidor, o que nos ajuda a compreender a lógica por trás do acúmulo e coleta
de dados digitais nos dias de hoje. O documentarista mostra o desenvolvimento
do marketing como modo de organização do mercado consumidor a partir do levantamento
de dados da população. Todo um arcabouço de pesquisa, como os chamados “grupos
focais”, as pesquisas de opinião e outros mecanismos de coleta de informações,
começava a ser organizado para fazer a população falar sobre seus desejos em
relação aos produtos. Falar sobre produtos se tornava um elemento chave para
garantir a aceleração da circulação de mercadorias.
A
ascensão dos influenciadores digitais nas redes sociais pode ser interpretada
como a intensificação dessa lógica que está na origem da propaganda enquanto
força motriz da circulação de mercadorias. Se antes a propaganda dependia das
empresas de marketing para produzir e coletar informação sobre o mercado
consumidor, agora as redes sociais se apresentam como um espaço onde tal
produção de dados acontece de forma voluntária, “espontânea” e ininterrupta
através da navegação dos usuários.
Falar
sobre produtos como quem fala de si, falar de si como quem fala de produtos.
Essa importante intersecção entre a propaganda e as demandas do mercado é
intensificada hoje nas redes sociais. O sujeito como veículo de uma marca, que
potencialmente é ele mesmo, atinge uma eficiência própria na dinâmica entre
influenciadores e seguidores.
No
processo de desenvolvimento da cultura influencer (Fuchs, 2022), como
carro-chefe do marketing contemporâneo, os influenciadores-mirins caracterizam
um dinamismo próprio. Desde que a propaganda televisiva começou a utilizar
crianças em seus comerciais é notável a eficiência de persuasão ao consumo
através da performance infantil. Os anos 90 no Brasil foi marcado pela
utilização de crianças em comerciais e sua eficácia publicitária já que tais
imagens “facilitavam a conquista da simpatia, tanto de pais quanto das próprias
crianças, pois tendem a favorecer uma identificação entre as imagens e o
público” (Monteiro, 2014, p. 56).
Se
nesta etapa da popularização da televisão como mídia massiva a utilização de
crianças nos comerciais já demonstrava “o interesse mercadológico de investir
no poder de persuasão perante o público infantil e os pais/responsáveis”
(Monteiro, 2018, p. 97), é relevante notar as transformações de tal caráter
persuasivo no contexto das redes sociais.
Há,
no caso dos influenciadores-mirins, um elemento novo: eles inauguram um tipo de
socialização nas redes onde os indivíduos não são somente estimulados a serem
ávidos consumidores, mobilizados pela irracionalidade “libertária” do desejo,
mas também ávidos vendedores, mobilizados por uma racionalidade econômica onde
cada respiro vira palco de vendas nas redes sociais. Os influenciadores-mirins
seriam, portanto, performers de anunciantes (Fuchs, 2022), outdoors animados de
marcas, que engajam seguidores que, por sua vez, produzem atenção e aceleram a
venda de mercadorias já produzidas. Mais ainda, tal aceleração é intensificada
já que agora a “naturalidade” e “espontaneidade” dos conteúdos gravados desde o
espaço doméstico, escamoteiam a narrativa comercial, facilitam a “simpatia”
entre público e imagens de crianças e impulsionam o desejo de consumo.
Há,
neste sentido, uma mudança na percepção do consumidor sobre a relação entre a
performance do sujeito do comercial e o produto sendo vendido. Na
contemporaneidade digital, a figura da celebridade é atravessada pelas chamadas
“microcelebridades” (Senft, 2008), caracterizando uma alteração importante na
produção de comerciais. “As novas tecnologias, o barateamento e facilitação dos
processos de produção, a abertura dos canais de circulação e divulgação de
produtos possibilitam quase a qualquer um se lançar em rede” (França, 2014, p.
29).
Se
antes as empresas de marketing e as agências de publicidade precisavam
mobilizar todo um capital para a produção de dados, de comerciais para os meios
de comunicação (rádio, televisão, jornais, revistas etc.) e para pagar suas
equipes e equipamentos, agora o influenciador digital torna-se responsável por
essa tarefa a um custo muito baixo. É ele agora o próprio produtor da cena e
quem garante a captura de atenção de potenciais consumidores dos produtos que
divulga. Dessa forma, o influenciador reduz os chamados “falsos custos” (Marx,
2014, p.235), contribui para a economia de capital como um todo e torna-se peça
fundamental para a etapa da circulação.
A
tendência à concentração e centralização da produção e da distribuição de
conteúdos culturais como forma de reduzir riscos ao capital (Bolaño, 2000) não
seria algo novo, mas muda de forma. Agora, como resultado dessa prática, as
megacorporações (e seus donos) proprietárias das plataformas de comunicação e
informação digital passam a acumular capital através do número de anunciantes
que usam os influenciadores como veículos de circulação de seus produtos. As
agências de publicidade vão se tornando obsoletas enquanto centralizadoras de
um mercado de produção de conteúdo para propaganda dando espaço às agências de
marketing digital, as quais passam a organizar a relação entre anunciantes e
influenciadores-mirins digitais.
·
Neoliberalismo como utopia liberal
A
fim de colaborar com o debate sobre trabalho infantil focamos na identificação
do influenciador como comportamento emblemático, como ideologia que subsidia o
capitalismo contemporâneo (Fuchs, 2022). É ele o sujeito “escolhido” de nossa
época e que precisa trazer consigo seguidores como parte de suas “capacidades
acumuladas” (Foucault, 2008). Há, neste sentido, uma relação de codependência e
retroalimentação entre influenciadores e seguidores, capaz de alinhar demandas
de circulação e acumulação a uma subjetividade produzida como modelo. Isso quer
dizer que, nas redes, há uma subjetividade-modelo que atua duplamente, tanto
através das práticas de influenciadores quanto de seguidores.
No
capitalismo contemporâneo o influenciador se apresenta, portanto, não como um
status, mas como um processo e uma série de práticas (Marwick, 2016) onde se
prepara uma subjetividade capaz de performar a generalização de uma forma
econômica, subdividida ou terceirizada para seus seguidores.
Os
conceitos de “biopolítica” e “governamentalidade” elaborados por Michel
Foucault (2008) são importantes para se compreender como o influenciador-mirim
atualiza, através de suas práticas, um processo de internalização da
racionalidade neoliberal, primordialmente subsidiada pelo discurso do
“empreendedorismo do eu”. Em sua investigação, o filósofo se debruçou sobre
Hayek (1960) e sua utopia do “liberalismo como estilo geral de pensamento, de
análise e de imaginação” (Foucault, 2008, p. 302) a qual, se adotada, seria
capaz de superar a mera técnica econômica de governo para se tornar um
“pensamento vivo” de controle e reprodução social do capitalismo, que anima e é
animado por seus sujeitos. À luz dessa interpretação, o neoliberalismo buscou,
e ao mesmo tempo predeterminou, um “princípio de racionalidade estratégica”
(Foucault, 2008, p. 308) na atividade do trabalho.
A
força de trabalho apareceu, então, como “capital” composto por características
físicas e psicológicas de uma pessoa. São essas características observadas por
Foucault (2008) como aptidões e competências, que, do ponto de vista do
trabalhador, vão sendo agregadas como capital da força de trabalho. Cada
indivíduo seria, portanto, uma máquina, um agregado de competências, de capital
organizado em força de trabalho.
É
essa “motivação” o gancho que os neoliberais encontram para alinhavar um
princípio de racionalidade e desejo no e pelo trabalho como comportamento
humano. O que o neoliberalismo busca em sua análise econômica é decifrar – e,
ao mesmo tempo, programar – indivíduos enquanto empresas de suas próprias
capacidades, “unidades-empresas”, sujeitos capazes de reproduzir uma
racionalidade econômica que seja a pulsão da sociedade.
Foucault
(2008) evidencia como o capitalismo reorganiza as relações de trabalho,
ampliando a subordinação da subjetividade às demandas econômicas. Indivíduos
precisam ser continuamente motivados a exercerem condutas funcionais às
demandas de acumulação e ao escamoteamento das relações de poder. A esfera do
trabalho (e do não trabalho) acompanharia, portanto, a necessidade ideológica
de ofuscar as relações por onde se dá a produção de valor no capitalismo
contemporâneo.
·
Entre liberdade e obediência
Com
sua roupagem neoliberal, o capitalismo passaria a produzir sujeitos que desejem
e dependam subjetivamente de uma certa performance. O sujeito modelo de sucesso
nas redes já não somente performa as relações sociais que o subordinam, num
corpo dócil como se passivo e domesticado por uma força externa, mas passa a
reproduzir o desejo de subordinação cotidianamente.
No
caso das redes sociais digitais, como contexto em que novas formas de trabalho
atualizam mecanismos de subordinação, a relação recíproca entre liberdade e
obediência característica do neoliberalismo (Gago, 2019) é atualizada. Através
das práticas exercidas por influenciadores e seus seguidores, o imbricamento
entre liberdade e obediência se intensifica. Mais ainda, há um “desejo de
performance” sendo estimulado nas redes a partir da dinâmica entre liberdade e
obediência.
Chamamos
de “desejo de performance” a mobilização de uma disponibilidade constante nas
redes, capaz de atender as demandas de digitalização da vida como um todo. Tal
performance ininterrupta compõe o que Deleuze e Guattari (1980) chamam de
“servidão maquínica”, responsável por colocar o desejo em ação, “por o desejo
para trabalhar” (Lazzarato, 2010, p. 178). Na “servidão maquínica” o desejo é
“combustível” da engrenagem que o produz. Isso quer dizer que, nas redes,
desejamos performar comportamentos monetizáveis, organizados pela lógica do
ranqueamento, pela coleta de dados traduzíveis em informação que alimenta a
previsibilidade de consumo. Ou ainda, “(…) constituímos simples entradas e
saídas, inputs e outputs do funcionamento de processos econômicos, sociais,
comunicacionais (…)” (Lazzarato, 2010, p. 170). Do café da manhã até a hora de
dormir, tudo é palco para uma performance a ser capturada, compartilhada e
dataficada (Sibilia, 2016). O que torna tal performance específica é que ela
não só entretém um público, mas, ao entreter, alicia outra força de trabalho:
seguidores. Ao performar, o influenciador anima cotidianamente o engajamento de
seus seguidores que, por sua vez, produzem atenção traduzida em dados digitais.
Aqui
o termo performance é usado duplamente. Se refere ao influenciador em sua
eficiência no entretenimento e captura da atenção de seus seguidores, assim
como ao seguidor que, engajado, produz atenção, convertida em dados acumulados
e distribuídos. Ambos, influenciador e seguidor, mobilizam sua força de
trabalho a partir de competências e funções diferentes dentro da economia das
plataformas digitais.
Consideramos
que tal “desejo de performance”, de disponibilidade constante nas redes, é
parte importante no processo de internalização de uma racionalidade funcional a
esta etapa de circulação do capital. O influenciador-mirim digital é, portanto,
socializado desde a mais tenra idade, através do desejo de performar para a
câmera, motivado pela liberdade comunicacional que os dispositivos móveis
oferecem e, ao mesmo tempo, pela obediência em compartilhar tal performance e
gerenciar seu engajamento. Ele já não é mais somente um usuário, consumidor ou
produtor, mas peça intrínseca para o funcionamento de um sistema produtor de
dados e engajamento responsáveis por acelerar a circulação do capital.
Performar
nas redes sociais é, portanto, tarefa que subordina nosso tempo, já que
consegue sintetizar demandas econômicas em uma cultura que se generaliza. Com o
influenciador-mirim tal generalização se torna eficiente através de práticas
que unificam “brincadeira” e “trabalho”. Ao observar a “servidão maquínica” nas
crianças que “trabalham diante da televisão; trabalham na creche com brinquedos
concebidos para melhorar suas performances produtivas” (Guattari, 1980, p. 80),
Guattari antecipa aquilo que hoje representa nas redes a metamorfose entre
brincadeira em trabalho.
·
Considerações finais
Neste
artigo, tentamos demonstrar que o influenciador-mirim e seus seguidores exercem
um papel central na reprodução da sociedade capitalista contemporânea. Como
vimos, são trabalhadores infantis e, ainda que não-produtivos de novos valores,
são necessários à reprodução do capital, pois são funcionais para a aceleração
da circulação do capital através das redes e plataformas.
Nesse
sentido estritamente econômico, são atores fundamentais para elevar o lucro das
big techs. Em um mundo onde, desde o pós-guerra, a superprodução de mercadorias
preocupa, a garantia da venda das mercadorias de forma constante e acelerada é
central.
Como
legitimador da esfera econômica, vemos no influenciador-mirim o mascote de uma
cultura digital. É ele o sujeito capaz de internalizar uma racionalidade
econômica a ser praticada, performada em uma espécie de “parceria” com seus
seguidores. Para que essa racionalidade se conforme em ideologia, a motivação
do influenciador é central, ele carrega e “compartilha” o status do empresário
e empreendedor de si mesmo, justamente para escamotear, fetichizar a estrutura
econômica que prescreve sua dança, supostamente espontânea desde a mais tenra
idade.
Mais
ainda, o empresário de si mesmo agora tem um estímulo maior, ele não somente é
encarregado de produzir a si mesmo como tal, mas também de acumular seguidores.
O influenciador-mirim é, portanto, um sujeito produzido para exercer as
práticas necessárias ao funcionamento da economia digital e, ao mesmo tempo, um
produtor de um tipo de atenção central para tal eficiência: seus seguidores.
É
nessa duplicidade entre ser produzido como subjetividade-modelo e, ao mesmo
tempo, ser produtor de uma subjetividade que educa e reproduz, que o
influenciador-mirim se torna representante de uma nova profissão continuamente
aliciada na geração digital e celebrada entre selfies e unboxing. Estamos
falando de uma subjetividade-modelo duplicada, produzida para afunilar,
enquadrar a subjetivação do mundo entre o influenciar e o seguir.
Essa
dupla codependente, que motiva afetos, expectativas, frustrações e até
patologias, caracteriza a ideologia contemporânea que nos convida (ou obriga) à
participação nas redes, seja como capacidade de influenciar ou de seguir.
Influenciar
e seguir já não é mais a mesma relação entre celebridade e seus fãs, produtores
e receptores. Agora influenciamos e/ou seguimos, como modos que caracterizam
uma subjetivação das relações sociais subordinadas à acumulação de capital nas
redes. Tal subjetividade-modelo é estimulada por um “desejo de performance” que
nos acompanha nos momentos cruciais de nossa formação e desenvolvimento
enquanto seres sociais. Seja por sua produção ou consumo, performar é
imperativo e garante a “dança” entre liberdade e obediência nas redes. Mas,
mais importante, tal estímulo é força ideológica que responde à demanda
econômica de aceleração da circulação do capital, momento crucial da reprodução
de um sistema onde as mercadorias produzidas (planejadamente obsoletas) abundam
e necessitam ser escoadas em tempo real, just in time.
Fonte:
Por Veridiana Zurita e José Paulo Guedes Pinto, em Outras Palavras
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