“Carros elétricos não são a solução para a transição energética”, diz
pesquisador
Em viagem ao Brasil para o lançamento de seu livro
“Autonorama: uma história sobre carros inteligentes, ilusões tecnológicas e
outras trapaças da indústria automotiva” (Autonomia Literária e Fundação Rosa
Luxemburgo), o historiador da tecnologia Peter Norton concedeu entrevista para
a Agência Pública e explicou porque não enxerga os carros elétricos como uma
solução para a transição energética.
Professor da Universidade de Virgínia, nos Estados
Unidos, Norton é reconhecido por pesquisas sobre a história dos carros e o
lobby da indústria automobilística. Sua publicação mais recente trata sobre a
ilusão de que os carros elétricos e autônomos resolverão os problemas de
mobilidade urbana.
“Os carros elétricos são uma distração. Eles
divergem nossa atenção das coisas que realmente funcionam. Não quero dizer que
a eletrificação não é necessária, ela é. O problema é a forma como ela está
sendo apresentada, como se fosse uma solução milagrosa”, explica o historiador
à Pública.
Norton defende que, quanto mais uma nação é
dependente dos automóveis, mais difícil é resistir a eles. “É um paradoxo,
porque são justamente os países mais dependentes de carros que precisam
implementar mudanças com urgência.”
Em sua visão, os carros elétricos precisam ser
problematizados. “Quando pensamos em veículos elétricos, a primeira coisa que
vem à cabeça é um SUV movido a bateria, que é o pior tipo possível de veículo
elétrico. Por que não pensamos em bicicletas, bondes ou trens elétricos?”,
provoca.
O pesquisador pondera que a eletrificação dos
carros pode ser útil, mas não deve ser encarada como uma solução definitiva,
especialmente se considerados os impactos negativos da exploração de minérios
para fabricação de baterias em países do terceiro mundo. “O Sul Global deve se
unir em protesto contra esses esforços abusivos, até mesmo envolvendo a ONU e o
julgamento das possíveis contribuições dos países ricos para o desastre
climático, a destruição ambiental e a violação de direitos humanos.”
>>>> Confira a entrevista completa.
• O que
são “futuramas” e por que o livro se chama “Autonorama”?
Há cerca de 100 anos, a General Motors descobriu
uma maneira de vender muito mais carros do que a Ford já havia vendido. A estratégia
era comercializar não só para consumidores individuais e reforçar a atração da
posse de um carro, mas também vender futuros na forma de promessas, normalmente
situados dali a 20 anos. Futuros em que as pessoas dirigiam para todos os
lugares sem qualquer atraso e com estacionamento grátis. É um futuro
impossível, não podemos redesenhar as cidades para tornar isso possível.
É exatamente nesse ponto que a venda de futuros se
tornou vantajosa, porque enquanto o futuro não chega, ninguém pode dizer que é
impossível. A General Motors introduziu o termo em 1938 e chamou essa técnica
de “futurama”, a combinação de futuro e diorama, palavra grega que significa
apresentação. Futurama é uma maneira de vender o futuro tornando-o visível na
forma de um modelo de transporte. Como a dependência dos carros não funciona, o
conceito de futurama falhou.
Em 1964, a GM tentou de novo e anunciou o segundo
futurama para restaurar sua credibilidade: a promessa da vez eram os
transistores elétricos, que estavam bombando na década de 1960. É claro, os
transistores não resolvem o problema da dependência dos carros, mas esse não é
o ponto: a tecnologia é tão fantástica que, por si só, consegue persuadir as
pessoas a acreditar no impossível.
O terceiro futurama, dos anos 1980, envolveu os
microprocessadores, com rodovias inteligentes e redes de circuitos integrados –
tudo isso também falhou.
Só nos Estados Unidos, foram bilhões de dólares
jogados fora. Toda vez que uma promessa de futurama falha, outras são
inventadas, e cada uma envolve as melhores tecnologias de ponta da sua época.
Hoje, a promessa é o carro elétrico, supostamente autônomo, por isso a palavra
“autonorama”. Na verdade, um carro não tem nada de autônomo, segue padrões já
estabelecidos e gera dependência.
• No
livro, o senhor diz que os carros elétricos não são a solução para a transição
energética. Por quê?
Eu diria que é pior do que eles não serem uma
solução, os carros elétricos são uma distração. Eles divergem nossa atenção das
coisas que realmente funcionam. Não quero dizer que a eletrificação não é
necessária, ela é. O problema é a forma como ela está sendo apresentada, como
se fosse uma solução milagrosa.
Carros como os SUV’s precisam de baterias que pesam
500kg, um modo de locomoção que só é viável para atender 1 ou 2% da população
mundial. Isso com o enorme custo ecológico da destruição causada pela mineração
e todas as catástrofes relacionadas. Temos outras excelentes possibilidades,
mas elas não são adotadas, porque há muito dinheiro envolvido em promessas de
coisas que não funcionam, mas podem milagrosamente funcionar graças à “mágica
da tecnologia”.
Se uma empresa quer ganhar dinheiro, ela não pode
dizer isso para as pessoas que desejam comprar seus produtos. Em vez disso, ela
pode dizer que seus produtos salvam o planeta, e nesse caso os alvos não são
somente compradores individuais, mas também governos que criam políticas e
subsidiam baterias de carros elétricos, baseados na premissa de que eles são
uma solução. As empresas influenciam as decisões dos governos para aumentar
suas vendas. Essa distração funciona, é efetiva. As companhias são inteligentes
em mostrar visões de futuro que pareçam atraentes e com credibilidade, embora
nunca sejam alcançadas.
Uma das vantagens que as empresas têm sobre nós é
que nossa memória coletiva é muito curta. Todo mundo aprende a não encostar em
um ferro quente, depois de uma experiência traumática com isso – nossa memória
individual é boa. Porém, falhamos na memória coletiva. Quase ninguém sabe que
as promessas de que a tecnologia fará com que a dependência do carro funcione
são apresentadas para nós há pelo menos 90 anos. Nunca funcionou e nunca
funcionará, porque a tecnologia não pode fazer funcionar a dependência do
carro.
• Então
o problema está na dependência do carro em si, e não na fonte de energia usada
para fazê-lo funcionar?
Os automóveis são úteis para alguns objetivos, mas
nem tanto para outros. Por exemplo, uma chave de fenda é boa para apertar
parafusos, mas não para martelar um prego. Os carros podem ser ferramentas
interessantes para alguns propósitos, o problema é que as indústrias
persuadiram governos e consumidores a enxergá-los como a solução para todas as
situações.
Ao redor do mundo, a distinção entre decisões de
governos e de empresas se confunde, porque as corporações usam seus recursos
para influenciar políticas públicas – elas fazem uma pressão mais eficiente
sobre os governantes do que os próprios eleitores. A população ainda pode
cobrar e pressionar pela redução dessa influência, mas o maior desafio é
convencer as pessoas de que a dependência dos carros é opressiva, e não
libertadora. Quando vivemos em um mundo em que ter um carro é uma necessidade
para ir até o trabalho, qualquer possível restrição ao seu uso é entendida como
uma ameaça. Enfrentamos uma grande dificuldade em mostrar para as pessoas que
existe um futuro mais libertador para além da dependência dos carros.
• O
senhor acredita que essa visão idealizada sobre os carros está ligada a menores
investimentos em transporte público?
Certamente sim. Muitos especialistas dizem que não
injetamos tanto dinheiro em transportes públicos porque as pessoas preferem se
locomover em automóveis — é a interpretação que eles têm principalmente em
regiões dos Estados Unidos, o país com a maior dependência de carros da Terra.
Essa é uma maneira estúpida de interpretar os dados, dirigir em locais sem
outra opção a não ser os carros não significa que as pessoas preferem dirigir.
Quanto mais um país é dependente dos carros, mais
difícil é resistir a eles. É um paradoxo, porque são justamente os países mais
dependentes de carros que precisam implementar mudanças com urgência.
• Na
edição brasileira, o senhor escreve: “Com ciência contratada, [as indústrias
automobilísticas] constroem muros de autoridade para proteger suas promessas
das perguntas difíceis que devemos fazer a qualquer inovação”. Por que é
importante questionar as inovações?
É interessante observar que, quando pensamos em
veículos elétricos, a primeira coisa que vem à cabeça é um SUV com bateria, que
é o pior tipo possível de veículo elétrico. Por que não pensamos em bicicletas,
bondes ou trens elétricos?
As empresas que querem vender automóveis e emplacar
a dependência dos carros são inteligentes. Elas aprenderam que se conseguirem
associar seus produtos com a tecnologia mais impressionante e incrível
disponível, a tecnologia vai trabalhar para persuadir as pessoas a comprar o
que quer que esteja à venda.
O escritor de ficção científica Arthur C. Clarke
dizia que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da
magia”. Isso é verdade, as tecnologias têm o poder de tornar o impossível
possível. E deve ser sempre a última versão, a mais nova, a mais
impressionante. Se as empresas associarem os carros robóticos com novas
tecnologias, isso dá a elas a vantagem de dizer que o impossível é agora
possível.
Isso gera um desperdício imenso de recursos, cerca
de 200 bilhões de dólares foram gastos com o desenvolvimento de carros
robóticos que nós não precisamos e não funcionam para atender a maioria da
população, são caros demais e impraticáveis. É uma tendência que desvia
recursos e atenção, criando credibilidade quando ela não está garantida. Só
piora nossos problemas, tirando dinheiro de pesquisas em coisas que funcionam.
• Os
carros elétricos são anunciados como uma solução para as mudanças climáticas e
a redução de emissões de gases do efeito estufa. Como o senhor explicaria os
problemas que eles podem causar para alguém que só enxerga o lado positivo?
Eles são uma solução até certo ponto, mas não
resolvem todos os problemas. Eu diria que os carros elétricos movidos a
baterias são úteis, porque podem contribuir para melhorar o cenário. Mas não
podemos chamá-los de solução, porque isso implicaria resolver todos os
problemas e não fazer qualquer crítica a eles. Reconhecê-los como úteis é
também reconhecer que podemos ir além deles.
Quando vejo uma propaganda desses veículos no meu
país, quase sempre é um enorme SUV com uma bateria que pesa pelo menos 500kg e
trabalha para locomover uma única pessoa. Cerca de 97% da energia elétrica da
bateria é usada para mover o veículo e a bateria, e apenas 2 ou 3% são usados
efetivamente para mover a pessoa que está dentro do automóvel. Só isso já pode
ser um fator de desconfiança sobre os carros elétricos, mas fica ainda pior
quando entendemos que o marketing desses veículos presume que os minérios
necessários para o funcionamento das baterias, como níquel, cobre, lítio,
cobalto e manganês, serão suficientes.
Se cada norte-americano dirigir um SUV movido a uma
bateria de meia tonelada, isso envolverá a destruição do Sul Global: devastação
do norte do Chile com a mineração de cobre, da República Democrática do Congo
com a exploração de cobalto, e até mesmo de regiões do Brasil, onde as empresas
já estão em busca de novas reservas de lítio. O Brasil tem um motivo ainda mais
forte do que os Estados Unidos, Europa e China para questionar o futuro
prometido com os carros elétricos, porque essas promessas só são possíveis às
custas do Sul Global.
Durante a minha época de universidade, eu ouvia
colegas da escola de engenharia dizerem coisas como “nós temos que aceitar a
existência de zonas de sacrifício para realizar a transição energética”. Em
outras palavras, áreas que desistimos de proteger e apenas destruímos para
conquistar minérios. Como esse discurso parte de pessoas vivendo em um país [os
Estados Unidos] cujas regras ambientais restringem a mineração de metais raros,
é lógico que essas “zonas de sacrifício” ocorrerão em países distantes e com
mercados que mal podem comprar carros elétricos. O Sul Global deve se unir em
protesto contra esses esforços abusivos, até mesmo envolvendo a ONU e o
julgamento das possíveis contribuições dos países ricos para o desastre
climático, a destruição ambiental e a violação de direitos humanos.
• Se os
carros elétricos não são a solução, onde devemos apostar nossos esforços?
Os carros elétricos são úteis, mas não são a
solução para a transição energética, assim como bicicletas, ônibus e trens não
são soluções. Tudo depende do objetivo que pretendemos alcançar, e só depois de
refletir sobre isso é que podemos decidir qual a melhor ferramenta para
atendê-los.
A boa notícia é que temos uma grande caixa de
ferramentas com várias opções ao nosso dispor. Porém, a maioria dos outros
meios de transporte além do carro são negligenciados, porque não geram tantos
lucros quanto a indústria automobilística.
Existe um conceito chamado pirâmide da mobilidade,
que tem um topo, simbolizado pelos meios de transporte que devemos privilegiar,
e uma base, onde estão as coisas menos importantes. Atualmente, no topo estão
os carros e na base os pedestres; no meio dos dois, há o transporte público e
as bicicletas. Essa é a pirâmide que herdamos nas últimas décadas, mas podemos
invertê-la, colocando os pedestres no topo e os carros na base. A ordem de
prioridade deve ser: pedestres primeiro, em segundo bicicletas (incluindo
elétricas), depois outros tipos de micro mobilidade, seguidos por bondes,
ônibus e trens elétricos e, por fim, os carros.
• Recentemente
foram instalados semáforos inteligentes na cidade de São Paulo, que analisam o
fluxo de carros e calibram o tempo de abertura e fechamento dos sinais para
otimizar o trânsito. Qual sua análise sobre esse tipo de tecnologia?
Os primeiros semáforos sincronizados da história,
não por sensores digitais mas sim por aparatos mecânicos, datam de 1926, em
Chicago. Eles eram sincronizados de tal maneira que os condutores que
dirigissem a uma certa velocidade passavam por sinais verdes um atrás do outro.
Costumamos nos perguntar se as tecnologias
funcionam ou não, mas o problema é que elas funcionam às custas de outros
fatores que não valorizamos, tirando poderes de um grupo e dando para outro. O
que aconteceu em Chicago naquela época foi o mesmo que está acontecendo agora em
São Paulo: os semáforos podem ser calibrados para favorecer os carros, os
pedestres ou outros propósitos. E isso determina quem leva vantagem e quem se
prejudica.
Então, os semáforos inteligentes podem ser úteis,
desde que valorizem os pedestres, ainda mais em uma cidade enorme como São
Paulo. Temos vários motivos para favorecer os pedestres, mas se for feito o
contrário, perde o sentido. No fim das contas, é o poder que determina isso.
Fonte: Por Gabriel Gama, da Agencia Pública
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