Na Bahia de Rui e Jerônimo, quilombos enfrentam temor e a falta de
atenção a direitos
De acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), 29,90% dos quilombolas do Brasil estão na
Bahia. São 397.059 pessoas que poderiam ter, pelo menos, mais 11 somadas a
elas: nos últimos dez anos, este número de
lideranças quilombolas da Bahia foi assassinado. A última foi Maria
Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete do Quilombo Pitanga de Palmares (Simões
Filho), e a morte violenta no dia 17 de agosto passado reacendeu e escancarou
para o mundo a necessidade de leis rígidas que garantam os direitos e a
segurança dos povos quilombolas e defensores de direitos humanos.
Caminhando junto com Bernadete desde 2015 pelas
demandas dos povos quilombolas, Rejane Rodrigues é uma das lideranças do Quilombo
Quingoma (Lauro de Freitas), e lembra que a última vez que a mais velha esteve
em público foi cerca de 15 dias antes do crime, quando a presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, visitou o Quingoma. Na ocasião, Mãe
Bernadete falou a ministra sobre as ameaças que vinha sofrendo.
“O assassinato dela é um tapa na cara da justiça e
dos direitos humanos. É uma questão de terra e cabe ao Estado resolver, porque
a nossa parte estamos fazendo. Assim como a do Quingoma, a titulação do Pitanga
tem se arrastado para sair e olha o que aconteceu”, diz Rejane.
A certidão de território quilombola é dada pela
Fundação Palmares e a titulação de terra pelo Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra), que na última quarta-feira publicou no Diário
Oficial da União um edital notificando 44 proprietários e ocupantes indevidos
dentro do Pitanga dos Palmares.
“Uma vez que foram infrutíferas as tentativas de
identificação e notificação dos ocupantes, proprietários ou não constantes do
perímetro do território quilombola de Pitanga de Palmares, decidiu-se notificar
esses proprietários por meio de edital”, informou o órgão. Com isso, eles terão
90 dias para contestar o Incra. O processo já dura seis anos.
No Quingoma – 1º quilombo do País (1569) e Território Iorubá, status conferido em março
de 2023 pelo rei da Nigéria, Adéyeye Ènìtán –, a luta pela titulação já dura 13
anos. “A nossa terra permanece sendo do Estado e isso é o que permeia toda a
falta de segurança, pois pessoas de fora podem construir, e o alto custo de
desapropriar é uma das principais desculpas do Incra para não nos dar a
titulação”, lamenta Rejane.
Essa é apenas a ponta do iceberg, mas não é à toa
que a missa de 7º dia de Mãe Bernadete foi marcada por gritos de “demarcação
já!”, proferidos por membros de movimentos negros às portas da Basílica do
Senhor do Bonfim. Presente na missa, o presidente do Fórum de Entidade Negras,
Raimundo Bujão, diz sempre lembrar das palavras da liderança Maria da Cruz, a
Dona Maria do Quilombo Riacho de Sacutiaba (Wanderley): “Essas terras não são
de ninguém e, sim, da natureza, e a natureza é de todo mundo”. Bujão
acrescenta: “O problema são os gananciosos que se apropriam. E isso nos leva a
narrativa de uma história que não é recente, porque sempre foi assim. A Lei de
Terras do Brasil é de 1850 e não mudou quase absolutamente nada. Depois de 358
anos de escravidão, o primeiro pagamento da chamada Dívida Pública foi a
indenização aos senhores de engenho. Então não dá para a gente pegar essa
história e reduzi-la ao que está acontecendo agora”.
O secretário de Políticas para Quilombolas do
Ministério de Igualdade Racial (MIR), Ronaldo dos Santos, do Quilombo do
Campinho (Paraty-RJ), explica que parte dessas está associada, por exemplo, à
extração ilegal de madeira.
• Assassinato
deixa advogados em estado de alerta na Bahia
Além de alertar sobre o baixo nível de segurança
física e legal das comunidades quilombolas e lideranças, o assassinato de Mãe
Bernadete abriu os olhos de outra categoria ligada à proteção dos direitos
humanos: os advogados.
David Mendez, defensor da família da líder
quilombola, é sócio-fundador e diretor jurídico do Instituto Malé de Acesso à
Justiça. Ele atua na defesa de Comunidades Tradicionais desde 2017 e afirma que
a brutalidade do caso de Bernadete e toda esta repercussão, abriu os olhos dos
advogados da área para os riscos que “nós sempre corremos e sempre minimizamos
de alguma maneira, ou não damos a devida atenção”, aponta o ativista.
O Instituto Malé, explica o advogado, vem atuando
no vácuo e na ausência do poder público junto a essas comunidades, e nesses
seis anos de atuação – de 2017 até 2023 –, eles formaram uma espécie de arquivo
vivo.
“Nós tivemos acesso a situações absolutamente
escabrosas, aterrorizantes e inacreditáveis. E dado ao assassinato bárbaro,
brutal, covarde e abjeto Dona Bernadete, uma luz de alerta foi acendida do
risco que nós mesmos corremos. A situação já foi denunciada e pormenorizada na
OAB”, diz Mendez. A situação foi comunicada à Polícia Civil e os advogados
receberam orientações.
• Conflito
por terra gera a violência
A violência na luta por terra é histórica e tem
traço recorrente no Brasil, diz a titular estadual da Secretaria de Promoção da
Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais (Sepromi), Ângela
Guimarães: “O passivo de uma abolição inacabada e a não realização de uma
reforma agrária estruturante, ao lado do muito recente reconhecimento das
terras das comunidades remanescentes de quilombos são dados que dão a dimensão
do desafio civilizatório do Brasil e da Bahia".
Desde 2007, a Sepromi tem realizado ações em prol
das demandas de inclusão social e de desenvolvimento econômico das omunidades.
Em março, o Estado aprovou o Plano de Atuação Integrada de Enfrentamento à
Violência contra Povos e Comunidades Tradicionais, criado em conjunto pela
Sepromi, e as secretarias de Justiça e Direitos Humanos (SJDH) e de
Desenvolvimento Rural (SDR) e as polícias e Corpo de Bombeiros.
No âmbito federal, foi criado, em junho, o Grupo de
Trabalho Técnico Sales Pimenta (GTT), aponta o secretário da SJDH, Felipe
Freitas: “O objetivo é melhorar e corrigir as defasagens em relação ao
sucateamento do programa de proteção para os defensores de direitos humanos,
que é uma demanda antiga dos movimentos sociais e que ganhou ainda mais
urgência depois da morte de Mãe Bernadete”.
Presidente do Conselho Municipal das Comunidades
Negras (CMCN) de Salvador, Evilásio Bouças acredita que se as terras do
Quilombo Pitanga dos Palmares tivessem recebido a titulação e os responsáveis
pela morte de Binho, filho de Mãe Bernadete, tivessem sido punidos, a situação
não teria chegado a esse ponto: “Essa luta é pela terra e os que aqui estão
continuam lutando, mas a verdade é que quem se expõe mais, acaba sendo abatido
e tirado da luta".
• ‘Precisamos
pensar na proteção dos defensores de direitos humanos’
O violento assassinato de Mãe Bernadete do Quilombo
Pitanga de Palmares (Simões Filho), alertou o mundo sobre a longa e brutal luta
dos povos quilombolas para manter seus territórios e população em segurança. Em
entrevista ao A TARDE, o Secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e
Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Ciganos (SQPT), do Ministério de
Igualdade Racial (MIR), Ronaldo Santos falou sobre o histórico de lutas e o que
o MIR tem feito para dar celeridade às titulações e uma melhor segurança aos
territórios quilombolas.
• Secretário,
fale sobre esse histórico de violência dentro dos territórios de quilombo
A questão quilombola foi invisibilizada. Historicamente,
essa é uma comunidade violentada, pois o racismo estrutural produz isso, muita
violência. A constituição de 1988, que é muito recente, tem apenas 35 anos, é
quem traz a questão quilombola de volta para a agenda do Estado Brasileiro.
Porém, a primeira titulação de território quilombola se deu sete anos depois,
em 1995, e até hoje o que nós vemos é uma execução muito baixa da política de
regularização fundiária dos territórios quilombolas e da entrega de títulos
definitivos.
• Qual
o papel e importância da titulação de território dentro dessa situação?
Nós compreendemos que a titulação dos territórios
quilombolas é um mecanismo fundamental para conter a escalada de violência que
é histórica, mas que, porém, nunca teve a visibilidade que hoje já conseguimos
denunciar, produzir estatística e alarmar a partir dos dados mostrados. Então
queremos falar sobre a titulação dos territórios, pois o cumprimento efetivo
dessa política é fundamental para conter a violência, assim como precisamos
debater o melhoramento das políticas de proteção dos defensores de direitos
humanos, que até então também tem sido fundamental, mas é importante a gente
perceber que ela tem sido insuficiente.
• Efetivamente,
em quem recai a responsabilidade de conter essa onda histórica de violência
contra as comunidades quilombolas?
Bom, o Estado tem uma responsabilidade na contenção
e na erradicação dessa escalada de violência. E digo Estado com seus muitos
braços. Como falei, a regularização fundiária inevitavelmente é o principal
elemento de contenção e erradicação dessa escalada de violência. Junto a isso,
precisamos pensar na proteção dos defensores de direitos humanos desses
territórios, dessas lideranças, e não dá para a gente pensar em proteção de
liderança isolada. Precisamos pensar na proteção das comunidades, dos
territórios quilombolas que ficam vulneráveis frente ao avanço dessa onda de
violência. Por exemplo, parte das violências que atingem essas comunidades está
associado aos madeireiros, essa atividade ilegal de extração de madeira. A
gente precisa de uma política ambiental que dê suporte a essas comunidades,
contendo essas ações ilegais dentro desses territórios.
• E
qual tem sido o foco do Ministério da Igualdade Racial nesta situação?
O Ministério tem trabalhado fortemente sobre a
criação da Agenda Nacional de Titulação, que é uma estratégia de governo que
busca ser uma política de Estado, de forma a organizar e dar celeridade ao
processo de regulação fundiária. A Agenda Nacional de Titulação está prevista
no Aquilomba Brasil, criado pelo Decreto 11447, e junto com ela,
concomitantemente, estamos criando a Política de Gestão Territorial e Ambiental
Quilombola, que na última semana realizou oficinas em Brasília com quilombolas
do Brasil inteiro, discutindo a criação dessa política. São medidas que,
enquanto responsáveis por essa política, nós temos buscado fazer a nossa parte,
assim como temos nos reunido com outros ministérios, como o de meio Ambiente e
Direitos Humanos, assim como com a Fundação Cultural Palmares e o Incra. Mas
repito: os vários ministérios federais, assim como os governos estaduais e
municipais precisam entender que têm papéis a desempenhar nessa contenção e
erradicação da violência contra as comunidades quilombolas.
Fonte: A Tarde
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