segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Na Bahia de Rui e Jerônimo, quilombos enfrentam temor e a falta de atenção a direitos

De acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 29,90% dos quilombolas do Brasil estão na Bahia. São 397.059 pessoas que poderiam ter, pelo menos, mais 11 somadas a elas: nos últimos dez anos, este número de  lideranças quilombolas da Bahia foi assassinado. A última foi Maria Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete do Quilombo Pitanga de Palmares (Simões Filho), e a morte violenta no dia 17 de agosto passado reacendeu e escancarou para o mundo a necessidade de leis rígidas que garantam os direitos e a segurança dos povos quilombolas e defensores de direitos humanos.

Caminhando junto com Bernadete desde 2015 pelas demandas dos povos quilombolas, Rejane Rodrigues é uma das lideranças do Quilombo Quingoma (Lauro de Freitas), e lembra que a última vez que a mais velha esteve em público foi cerca de 15 dias antes do crime, quando a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, visitou o Quingoma. Na ocasião, Mãe Bernadete falou a ministra sobre as ameaças que vinha sofrendo.

“O assassinato dela é um tapa na cara da justiça e dos direitos humanos. É uma questão de terra e cabe ao Estado resolver, porque a nossa parte estamos fazendo. Assim como a do Quingoma, a titulação do Pitanga tem se arrastado para sair e olha o que aconteceu”, diz Rejane.

A certidão de território quilombola é dada pela Fundação Palmares e a titulação de terra pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que na última quarta-feira publicou no Diário Oficial da União um edital notificando 44 proprietários e ocupantes indevidos dentro do Pitanga dos Palmares.

“Uma vez que foram infrutíferas as tentativas de identificação e notificação dos ocupantes, proprietários ou não constantes do perímetro do território quilombola de Pitanga de Palmares, decidiu-se notificar esses proprietários por meio de edital”, informou o órgão. Com isso, eles terão 90 dias para contestar o Incra. O processo já dura seis anos.

No Quingoma – 1º quilombo do País (1569) e  Território Iorubá, status conferido em março de 2023 pelo rei da Nigéria, Adéyeye Ènìtán –, a luta pela titulação já dura 13 anos. “A nossa terra permanece sendo do Estado e isso é o que permeia toda a falta de segurança, pois pessoas de fora podem construir, e o alto custo de desapropriar é uma das principais desculpas do Incra para não nos dar a titulação”, lamenta Rejane.

Essa é apenas a ponta do iceberg, mas não é à toa que a missa de 7º dia de Mãe Bernadete foi marcada por gritos de “demarcação já!”, proferidos por membros de movimentos negros às portas da Basílica do Senhor do Bonfim. Presente na missa, o presidente do Fórum de Entidade Negras, Raimundo Bujão, diz sempre lembrar das palavras da liderança Maria da Cruz, a Dona Maria do Quilombo Riacho de Sacutiaba (Wanderley): “Essas terras não são de ninguém e, sim, da natureza, e a natureza é de todo mundo”. Bujão acrescenta: “O problema são os gananciosos que se apropriam. E isso nos leva a narrativa de uma história que não é recente, porque sempre foi assim. A Lei de Terras do Brasil é de 1850 e não mudou quase absolutamente nada. Depois de 358 anos de escravidão, o primeiro pagamento da chamada Dívida Pública foi a indenização aos senhores de engenho. Então não dá para a gente pegar essa história e reduzi-la ao que está acontecendo agora”.

O secretário de Políticas para Quilombolas do Ministério de Igualdade Racial (MIR), Ronaldo dos Santos, do Quilombo do Campinho (Paraty-RJ), explica que parte dessas está associada, por exemplo, à extração ilegal de madeira.

•        Assassinato deixa advogados em estado de alerta na Bahia

Além de alertar sobre o baixo nível de segurança física e legal das comunidades quilombolas e lideranças, o assassinato de Mãe Bernadete abriu os olhos de outra categoria ligada à proteção dos direitos humanos: os advogados.

David Mendez, defensor da família da líder quilombola, é sócio-fundador e diretor jurídico do Instituto Malé de Acesso à Justiça. Ele atua na defesa de Comunidades Tradicionais desde 2017 e afirma que a brutalidade do caso de Bernadete e toda esta repercussão, abriu os olhos dos advogados da área para os riscos que “nós sempre corremos e sempre minimizamos de alguma maneira, ou não damos a devida atenção”, aponta o ativista.

O Instituto Malé, explica o advogado, vem atuando no vácuo e na ausência do poder público junto a essas comunidades, e nesses seis anos de atuação – de 2017 até 2023 –, eles formaram uma espécie de arquivo vivo.

“Nós tivemos acesso a situações absolutamente escabrosas, aterrorizantes e inacreditáveis. E dado ao assassinato bárbaro, brutal, covarde e abjeto Dona Bernadete, uma luz de alerta foi acendida do risco que nós mesmos corremos. A situação já foi denunciada e pormenorizada na OAB”, diz Mendez. A situação foi comunicada à Polícia Civil e os advogados receberam orientações.

•        Conflito por terra gera a violência 

A violência na luta por terra é histórica e tem traço recorrente no Brasil, diz a titular estadual da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais (Sepromi), Ângela Guimarães: “O passivo de uma abolição inacabada e a não realização de uma reforma agrária estruturante, ao lado do muito recente reconhecimento das terras das comunidades remanescentes de quilombos são dados que dão a dimensão do desafio civilizatório do Brasil e da Bahia".

Desde 2007, a Sepromi tem realizado ações em prol das demandas de inclusão social e de desenvolvimento econômico das omunidades. Em março, o Estado aprovou o Plano de Atuação Integrada de Enfrentamento à Violência contra Povos e Comunidades Tradicionais, criado em conjunto pela Sepromi, e as secretarias de Justiça e Direitos Humanos (SJDH) e de Desenvolvimento Rural (SDR) e as polícias e Corpo de Bombeiros.

No âmbito federal, foi criado, em junho, o Grupo de Trabalho Técnico Sales Pimenta (GTT), aponta o secretário da SJDH, Felipe Freitas: “O objetivo é melhorar e corrigir as defasagens em relação ao sucateamento do programa de proteção para os defensores de direitos humanos, que é uma demanda antiga dos movimentos sociais e que ganhou ainda mais urgência depois da morte de Mãe Bernadete”.

Presidente do Conselho Municipal das Comunidades Negras (CMCN) de Salvador, Evilásio Bouças acredita que se as terras do Quilombo Pitanga dos Palmares tivessem recebido a titulação e os responsáveis pela morte de Binho, filho de Mãe Bernadete, tivessem sido punidos, a situação não teria chegado a esse ponto: “Essa luta é pela terra e os que aqui estão continuam lutando, mas a verdade é que quem se expõe mais, acaba sendo abatido e tirado da luta".

•        ‘Precisamos pensar na proteção dos defensores de direitos humanos’

O violento assassinato de Mãe Bernadete do Quilombo Pitanga de Palmares (Simões Filho), alertou o mundo sobre a longa e brutal luta dos povos quilombolas para manter seus territórios e população em segurança. Em entrevista ao A TARDE, o Secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Ciganos (SQPT), do Ministério de Igualdade Racial (MIR), Ronaldo Santos falou sobre o histórico de lutas e o que o MIR tem feito para dar celeridade às titulações e uma melhor segurança aos territórios quilombolas.

•        Secretário, fale sobre esse histórico de violência dentro dos territórios de quilombo

A questão quilombola foi invisibilizada. Historicamente, essa é uma comunidade violentada, pois o racismo estrutural produz isso, muita violência. A constituição de 1988, que é muito recente, tem apenas 35 anos, é quem traz a questão quilombola de volta para a agenda do Estado Brasileiro. Porém, a primeira titulação de território quilombola se deu sete anos depois, em 1995, e até hoje o que nós vemos é uma execução muito baixa da política de regularização fundiária dos territórios quilombolas e da entrega de títulos definitivos.

•        Qual o papel e importância da titulação de território dentro dessa situação?

Nós compreendemos que a titulação dos territórios quilombolas é um mecanismo fundamental para conter a escalada de violência que é histórica, mas que, porém, nunca teve a visibilidade que hoje já conseguimos denunciar, produzir estatística e alarmar a partir dos dados mostrados. Então queremos falar sobre a titulação dos territórios, pois o cumprimento efetivo dessa política é fundamental para conter a violência, assim como precisamos debater o melhoramento das políticas de proteção dos defensores de direitos humanos, que até então também tem sido fundamental, mas é importante a gente perceber que ela tem sido insuficiente.

•        Efetivamente, em quem recai a responsabilidade de conter essa onda histórica de violência contra as comunidades quilombolas?

Bom, o Estado tem uma responsabilidade na contenção e na erradicação dessa escalada de violência. E digo Estado com seus muitos braços. Como falei, a regularização fundiária inevitavelmente é o principal elemento de contenção e erradicação dessa escalada de violência. Junto a isso, precisamos pensar na proteção dos defensores de direitos humanos desses territórios, dessas lideranças, e não dá para a gente pensar em proteção de liderança isolada. Precisamos pensar na proteção das comunidades, dos territórios quilombolas que ficam vulneráveis frente ao avanço dessa onda de violência. Por exemplo, parte das violências que atingem essas comunidades está associado aos madeireiros, essa atividade ilegal de extração de madeira. A gente precisa de uma política ambiental que dê suporte a essas comunidades, contendo essas ações ilegais dentro desses territórios.

•        E qual tem sido o foco do Ministério da Igualdade Racial nesta situação?

O Ministério tem trabalhado fortemente sobre a criação da Agenda Nacional de Titulação, que é uma estratégia de governo que busca ser uma política de Estado, de forma a organizar e dar celeridade ao processo de regulação fundiária. A Agenda Nacional de Titulação está prevista no Aquilomba Brasil, criado pelo Decreto 11447, e junto com ela, concomitantemente, estamos criando a Política de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola, que na última semana realizou oficinas em Brasília com quilombolas do Brasil inteiro, discutindo a criação dessa política. São medidas que, enquanto responsáveis por essa política, nós temos buscado fazer a nossa parte, assim como temos nos reunido com outros ministérios, como o de meio Ambiente e Direitos Humanos, assim como com a Fundação Cultural Palmares e o Incra. Mas repito: os vários ministérios federais, assim como os governos estaduais e municipais precisam entender que têm papéis a desempenhar nessa contenção e erradicação da violência contra as comunidades quilombolas.

 

Fonte: A Tarde

 

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