Como a cultura da impunidade nas Forças Armadas perdura após 44 anos de
Lei da Anistia
A Lei da
Anistia completou neste 28 de agosto 44 anos.
Promulgada pelo último presidente da ditadura militar, o general João
Baptista Figueiredo, a legislação concedeu o perdão aos perseguidos políticos
(que o regime ditatorial chamava de subversivos) e, dessa forma, pavimentou o
caminho para a redemocratização do Brasil.
Foram anistiados tanto os que haviam pegado em
armas contra a ditadura quanto os que simplesmente haviam feito críticas
públicas aos militares. Graças à lei, exilados e banidos voltaram para o
Brasil, clandestinos deixaram de se esconder da polícia, réus tiveram os
processos nos tribunais militares anulados, presos foram libertados de
presídios e delegacias.
Por outro lado, a lei é considerada por muito
setores progressistas frustrante por também ter deixado impunes agentes da
repressão do regime militar, cujos delitos jamais deveriam ter sido perdoados.
Crimes de lesa-humanidade, como sequestros, torturas, prisões arbitrárias,
execuções, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres.
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Militares continuam na
política
Outro aspecto que merece reflexão na análise sobre
os efeitos da Lei de Anistia foi o mito de que os militares, depois da
promulgação da Constituição de 1988, haviam abandonado a política. A eleição de
Jair Bolsonaro em 2018 desfez essa ilusão.
No livro República
de Segurança Nacional - militares e política no Brasil (Editora Expressão Popular, Fundação Rosa Luxemburgo, 2022),
o pesquisador sobre o pensamento político dos militares brasileiros e a
justiça de transição, Rodrigo Lentz, mostra que a chegada do capitão expulso do
Exército ao Palácio do Planalto sepultou a crença de que a queda da
ditadura militar, em 1985, havia colocado um ponto final no envolvimento dos
militares com a política brasileira.
Lentz, que é doutor em ciência política pela
Universidade de Brasília (UnB) e foi consultor do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e coordenador da Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça, conversou com exclusividade com
a Fórum sobre de que forma a Lei da Anistia pode explicar o cenário
atual no qual há uma estratégia em curso para isentar as Forças Armadas do
papel desempenhado durante os atos golpistas de 8 de janeiro.
O cientista político, que integra a Comissão de
Anistia do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, comenta que a Lei de
Anistia resultou em uma cultura de impunidade nas Forças Armadas.
Não há dúvidas que a
permanência da interpretação da Lei de Anistia pelo viés da impunidade e da
“auto-anistia” produziu uma cultura da impunidade nas Forças Armadas. Isso
inclusive se estende aos militares estaduais, nos chamados IPM’s (Inquérito
Policial Militar), no Ministério Público (que deveria, mas não exerce controle
das polícias) e no judiciário estadual. Essa cultura da impunidade alimenta o
mito do “Exército de Caxias” e uma imagem falsa sobre a relação entre
democracia e militares. Até hoje, em qualquer organização militar do país, a
ditadura de 64 é institucionalmente chamado de marco democrático. Então uma
coisa chama a outra.
Para ilustrar essa análise, nesta segunda-feira
(28), por exemplo, o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP) afirmou
em entrevista ao Fórum Café que existe
um veto do Governo Lula, partindo de José Múcio Monteiro, ministro da Defesa,
contra a investigação de militares envolvidos nos atos golpistas de 8 de
janeiro.
Em outra frente, o comandante do Exército, general
Tomás Ribeiro Paiva, tem se
emprenhado pessoalmente na missão de blindar a força e "preservar a
instituição" diante do avanço das investigações na
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos Golpistas, que mira a
atuação de militares entre apoiadores do ex-presidente de extrema
direita que promoveram a depredação da sede dos três poderes em 8 de
janeiro.
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Militares no Governo
Bolsonaro
Durante os quatro anos do Governo Bolsonaro a
presença de militares alimentou temores na sociedade de que o Brasil viveria um
novo período de ditadura diante das constantes ameaças autoritárias do
ex-presidente.
Esse medo não foi sem razão, afinal, com a derrota
de Bolsonaro para Luiz Inácio Lula da Silva nas Eleições de 2022 vivenciamos um
verdadeiro show de horrores, com bloqueio de estradas, acampamentos abarrotados
de bolsonaristas fantasiados de patriotas em frente a quartéis por todo o
Brasil, em especial em frente ao Forte Apache, em Brasília-DF. Houve ainda
atos de vandalismo na Capital Federal no dia da diplomação de Lula, em 12 de
dezembro; e até tentativa de explosão de bomba no Aeroporto Internacional de
Brasília na véspera do Natal de 2022.
Esse movimento golpista culminou com o 8 de
janeiro. Mas começou com a eleição de Bolsonaro, em 2018, com apoio ferrenho
das Forças Armadas, anistiadas pelos crimes da ditadura militar de 1964.
Para Lenzt, o casamento entre Bolsonaro e os
colegas da caserna, ajudou na ascensão do ex-capitão ao Palácio do Planalto,
embora não seja a única explicação.
Eu diria que ajudou a
criar as condições para essa ascensão. Embora seja discutível o que chamamos de
“bolsonarismo”, entendo que ele é um subproduto de nossa cultura militar. E
nela, o viés da impunidade e da legitimação do terrorismo de estado faz
edifício.
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Comissão de Anistia
Criada em 2001, durante o primeiro mandato de Lula,
a Comissão de Anistia promoveu uma das maiores políticas de reparação a
violações de direitos humanos do mundo. No entanto, chegou tarde, pois a
Constituição de 1988 já determinava que o Estado brasileiro deveria reconhecer
e indenizar as vítimas da ditadura militar.
Em razão da fragilidade da transição democrática no
Brasil, conduzida pelos militares, esse processo de reparação demorou 13 anos.
Com a chegada de Bolsonaro à presidência, o foco da Comissão foi subvertido e,
ao invés de amparar as vítimas, passou a minimizar os horrores do regime
militar.
Agora, no Governo Lula 3, a Comissão de Anistia
retomou seu objetivo de reparação às perseguições cometidas pelo Estado
brasileiro entre 1946 e 1988, o que inclui a ditadura militar. Em março deste
ano, o órgão voltou a se reunir e vem dando seguimento aos processos com a
revisão de milhares de pedidos de reparação que foram negados durante os
governos de Bolsonaro e Michel Temer e que agora podem ser deferidos pelo
colegiado. A estimativa é de que pode ser de quatro mil até oito mil a nove mil
processos.
Lentz, que integra a Comissão de Anistia, comenta a
importância do órgão no processo de reparação às vítimas da ditadura
militar.
A grande missão
constitucional da Comissão de Anistia é a promoção da reparação. A partir do
governo Lula 2, na gestão de Tarso Gento e Paulo Abrão, a própria concepção de
anistia foi alterada: não de se trata de uma auto-anistia, em que o Estado
concede “perdão” à vítima”; mas um pedido de desculpas do Estado às pessoas que
foram perseguidas por motivação política e vítimas de graves violações de
direitos humanos. E não apenas de forma individual, mas também coletiva, pois
toda a sociedade sofreu consequências da ditadura e prescinda ser reparada.
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Homenagens
a torturadores
Nesse caldeirão de impunidade criado pela Lei da
Anistia, ao longo do Governo Bolsonaro foi normalizado o negacionismo sobre os
horrores do regime militar e até mesmo homenagens a torturadores. Exemplo
recente desse fenômeno foi a aprovação de um projeto de lei,
pela Assembleia Legislativa de São Paulo, que batiza um viaduto com o
nome do coronel Erasmo Dias. Ele ficou conhecido pela brutalidade com que agia
contra os adversários da ditadura.
Lentz avalia que esse tipo de medida serve para
engajar apoiadores da extrema direita. Ele também faz uma crítica dirigida ao
campo democrático, que ao longo de anos deu pouca atenção a esse tipo de
manifestação. Foi o caso da atuação de Bolsonaro por quase três décadas como
parlamentar, período no qual fez inúmeros elogios à ditadura, mas foi
tratado como figura folclórica até ser transformado em um "mito".
São gestos ideológicos
para sua base, visando alimentar uma coesão cultural que o campo democrático
nas últimas décadas deu pouco atenção. E gestos como esses são legitimados pela
cultura da impunidade. Afinal, qual o problema em homenagear agentes públicos
que jamais foram julgados pela justiça? Isso também ajuda na legitimação do atual
terrorismo de Estado, como ocorreu recente na Baixada Santista.
No caso da homenagem ao coronel torturador em São
Paulo, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia quer
explicações tanto do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos),
afilhado político de Bolsonaro, quando do presidente do legislativo
estadual, deputado André do Prado (PL).
Ø Coronel Lawand tinha imagens com teor golpista no celular
Ex-subchefe do Estado Maior do Exército, o
coronel Jean Lawand Júnior mantinha imagens com
teor golpista e de exaltação à ditadura militar salvas na galeria do seu
celular. Lawand é investigado pela CPMI do 8 de Janeiro por sugerir um golpe
de Estado em conversa com o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair
Bolsonaro.
O militar teve o sigilo telemático quebrado pela
CPMI. As imagens estavam salvas no iPhone de Lawand e foram obtidas pela
coluna. Uma delas tinha um brasão com o slogan “Deus, Pátria, Família,
Liberdade”, usado por Bolsonaro na campanha eleitoral, com um pedido de
“S.O.S.” às Forças Armadas. É comum ver a mesma mensagem em atos antidemocráticos e em defesa de uma
intervenção militar.
Lawand salvou um print do
site Jusbrasil, com o artigo 142 da Constituição. Bolsonaristas defendem, de forma
equivocada, que o trecho autoriza as Forças Armadas a atuarem como poder
moderador, o que permitiria uma intervenção militar em períodos de crise.
O STF, em manifestação sobre o tema, classificou a interpretação de “terraplanismo constitucional”.
Outra imagem encontrada no celular de Lawand trazia
a bandeira do Brasil com a frase: “Liberdade não se ganha, se toma!”. O coronel
guardava uma postagem do polemista Olavo de
Carvalho em que ele afirmava que uma “democracia não
pode ser instaurada por meios democráticos” […] “nem pode, quando moribunda,
ser salva por meios democráticos”.
O militar também mantinha diversas imagens
laudatórias à ditadura militar, como capas de jornais da época; entre elas,
havia uma do Correio da Manhã com a manchete: “Por causa do povo em massa nas
ruas é que houve a intervenção militar”.
Outra imagem citava o general Humberto Castelo
Branco, primeiro ditador do regime militar, e sugeria que a ditadura era uma
alternativa melhor ao sistema democrático atual. “Castelo Branco desfilou sob
aclamação do povo, em 1965. Os vermes de hoje têm que se esconder do povo e só
circulam em aviões da FAB e jatos particulares às custas do povo, de quem
roubam o sangue, o suor e a dignidade”, dizia o texto.
Lawand também guardava imagens com conteúdo
político, como um discurso do empresário Luciano Hang a favor do bolsonarismo e a foto de uma
manifestante exaltando o ex-deputado nacionalista Enéas Carneiro. “Faltam sete
dias para derrotarmos o socialismo”, dizia outra imagem, com os rostos de Lula e Fernando
Haddad atrás de um sinal de proibido.
Ø Cadeia de verdade: PGR quer transferência de militares golpistas para
que haja "disciplina mínima"
A Procuradoria-Geral da República (PGR) solicitou
ao Supremo Tribunal Federal (STF), na última sexta-feira (25),
que militares presos por omissão nos atos golpistas de 8 de janeiro fossem
transferidos para outras unidades militares.
Os sete militares em questão foram presos preventivamente em operação realizada pela Polícia Militar e pela
PGR no último dia 18 e são ex-integrantes da cúpula da
Polícia Militar do Distrito Federal. A acusação é de que os oficiais conheciam
previamente os riscos do atentado golpista às sedes dos Três Poderes
e deixaram de agir para impedir o vandalismo, sendo omissos.
·
Detenções irregulares
O subprocurador-geral da República, Carlos
Frederico Santos, explicou que o 19º Batalhão da PM, onde os investigados estão
cumprindo prisão preventiva, apresenta indícios de não ter “condições para
caucionar disciplina mínima”. A mudança busca evitar que haja “intercorrências
de subversão da ordem e disciplina”.
Dos sete militares presos, cinco são coronéis. A
PGR pede que eles sejam supervisionados por um coronel com patente de
antiguidade superior, após receber informação da Secretaria de Segurança
Pública do DF de que três deles estão sob supervisão de um major, posição
inferior na hierarquia militar.
A PGR também identificou irregularidades nas
detenções, como uma visita da esposa do coronel preso Jorge Eduardo
Naime, sem autorização do comando da unidade militar.
Outros presos na operação foram os
coronéis Klepter Rosa Gonçalves, Marcelo Casimiro Vasconcelos Rodrigues,
Paulo José Ferreira de Sousa Bezerra e Fábio Augusto Vieira; o
major Flávio Silvestre de Alencar; e o tenente Rafael Pereira Martins.
Fonte: Fórum/Metrópoles
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