Aborto, ultraconservadorismo e intimidade violada
As algemas foram colocadas enquanto ela sangrava na
maca do hospital. Foram três dias assim: presa e sangrando. O estado de saúde
era grave, quando os policiais militares
entraram na unidade hospitalar e decretaram a prisão. Quem denunciou foi
o próprio médico ao desconfiar que a paciente tivesse feito um aborto em casa.
Uma mulher jovem, preta, pobre e brasileira, que tentou interromper a gestação,
e foi levada às pressas ao Sistema Único de Saúde (SUS), depois de sofrer uma
hemorragia. O pedido era de socorro, mas a paciente teve sua intimidade violada
pelo profissional que deveria protegê-la.
Esse caso é real, ocorreu em Minas Gerais, no ano
de 2020, e essa mulher é um retrato das estatísticas de quem mais sofre com a
criminalização por aborto no país. O recente aumento dos processos judiciais
contra pessoas que abortam mostram que algo está sendo violado nisso: o segredo
médico. E ele está previsto tanto no artigo 73 do Código de Ética da profissão,
quanto no artigo 207 do Código de Processo Penal. Os textos se complementam ao
dizer que é proibido revelar informações que foram acessadas por meio do
exercício profissional, a menos que a paciente autorize. O sigilo médico é,
antes de tudo, uma questão de saúde pública. AzMina também aborda esse assunto
nesse vídeo aqui.
Nos cinco primeiros meses de 2023, foram 208
processos por abortos praticados contra gestantes. Em 2022, foram 464 – os
dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A Universidade Federal do
Paraná analisou 43 processos desse tipo, entre 2017 e 2019. Em 44% deles as
mulheres foram processadas por causa de denúncias feitas por profissionais de
saúde; em 58% os profissionais foram colocados como testemunhas de acusação; em
65% dos casos os prontuários foram
compartilhados com a polícia sem o consentimento da paciente.
Também não é permitido ao profissional de saúde
depor, e se for convocado, ele deverá se declarar impedido. Há uma razão para
isso: é preciso que a paciente confie na equipe médica para que a consulta, o
tratamento, o exame ou qualquer procedimento possa ser bem realizado. O segredo
nessa relação existe porque está em jogo a intimidade vinculada à saúde.
Além de sofrerem prisão, muitas mulheres tiveram
que pagar multa, de um ou dois salários mínimos. “São pessoas simples, que
sequer ganham isso, punidas pela quebra de um direito garantido”, lamenta o
médico Cristião Rosas, obstetra da Rede Médica pelo Direito de Decidir. Muitas
eram “esteio da família”, sendo as únicas responsáveis pelo sustento da casa. A
maior parte é negra e solteira, de acordo com estudo da Defensoria Pública do
Rio de Janeiro.
A discussão sobre a descriminalização do aborto até
a 12ª semana de gestação segue à espera de uma decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF). Atualmente, a interrupção legal só pode ser feita em três
situações: anencefalia, que é uma má formação do feto; quando a mulher corre
risco de morte; e quando a gravidez foi resultado de um estupro. Nos casos de
violência sexual, não é necessário mostrar o Boletim de Ocorrência, embora há
relatos de vítimas que tiveram o procedimento negado por não terem o documento.
• Médicos
podem ser processados
Como o sigilo em saúde é um direito garantido,
médicos que denunciaram suas pacientes podem ser processados, mas a
vulnerabilidade social da maior parte dessas mulheres faz com que muitas sequer
saibam de seus direitos e da possibilidade de responsabilizar os profissionais
de saúde. Essa fragilidade facilita a perpetuação da violação.
O abuso de poder médico e policial é recorrente,
dizem especialistas entrevistados pela reportagem. Mulheres pretas, pobres e
periféricas, muitas vezes sem instrução, são levadas, inclusive, a confessarem
o aborto, compondo contra si mais uma prova na delação, que antes veio do
profissional de saúde.
O profissional que quebra o segredo pode ter de
responder tanto ao Conselho de Ética da profissão, sendo possivelmente punido
com o afastamento do cargo ou a expulsão, mas também criminalmente, em que se
prevê as mesmas consequências. A vítima que foi exposta ainda pode entrar com
um processo por danos morais.
• Provas
ilegais, vítimas condenadas
A denúncia feita por alguém da equipe médica em
atendimento é considerada ilegal, portanto o processo que se origina de uma
prova como essa, deveria ser cancelado e a delação, anulada. Mas, na prática,
não é assim. São exceções os casos em que a mulher, mesmo vítima, consegue
escapar da punição.
A Justiça de São Paulo concedeu apenas 17% dos
habeas corpus pedidos pela Defensoria Pública do estado em processos como
esses, entre 2003 e 2016. “Infelizmente,
o judiciário brasileiro tem muita dificuldade de anular provas, principalmente
quando se trata de uma classe mais pobre”, desabafa o Defensor Público, Gustavo
de Almeida Ribeiro, há vinte anos na função. Conseguir um desfecho satisfatório
para a vítima depende muito de quem julga o caso. “Quando o processo cai na mão
de um juiz que tem o olhar conservador, é muito difícil”, apontou Gustavo.
O perfil majoritário dos juízes brasileiros é
homem, branco, católico, casado e com filhos, conforme levantamento do CNJ, de
2018. O machismo judicial também
encontra uma forma de punir mais
fortemente as mulheres nesses julgamentos. Primeiro porque elas foram contra a
lei, segundo porque são vistas como aquelas que se afastaram do papel de mãe.
As penas servem, então, para controlar essa “transgressão” contra o sistema
patriarcal, como abordou AzMina nesta reportagem.
• Grupos
antiabortos x Direito das Mulheres
Desde o ano passado (2022), a quantidade de
processos judiciais registrados contra mulheres que praticaram o aborto vem
crescendo no Brasil – são mais de uma 1 ação desse tipo por dia (em média). De
2021 (136) para 2022 (464), o aumento foi de 340%, três vezes mais. A média mensal de 2021, foi 11,3 processos;
em 2022 – 38,6; e este ano já está em 41,6, somente de janeiro a maio.
“É um
reflexo dos últimos quatro anos de governo [Bolsonaro], que veio com uma pauta
moralista e religiosa muito forte, influenciando a postura dos médicos, que se
sentiram autorizados a fazerem isso, porque o Executivo os incentivava”, avalia
Luiza Vasconcelos Oliver, mestre em direito penal.
A internet potencializa cada vez mais os discursos
de ódio e a desinformação espalhados pelos grupos antidireitos das mulheres e
antiaborto. Movimento que se articula dentro e fora do país, com novas
estratégias em todos os campos: saúde, justiça, educação, religião e política.
AzMina também fez uma reportagem especial e transfronteiriça sobre isso com
veículos jornalísticos da Colômbia e Equador, onde os ataques às mulheres
seguem a mesma dinâmica daqui.
Para que os profissionais de saúde não insistam
nessa violação, é preciso que os hospitais e postos estejam alinhados com a
importância do sigilo médico, do bom tratamento, e se coloquem ao lado da
paciente. Mas a cultura institucional do atendimento à saúde pode favorecer
esse tipo de denúncia. “A gestão do serviço deve cuidar para que as normas
éticas e técnicas sejam respeitadas. Não há subjetividade nisso, mas nem todos
os gestores entendem dessa forma,” diz Ana Teresa Derraik, diretora geral da
Maternidade Santa Cruz da Serra, em Duque de Caxias (RJ), e fundadora do Nosso
Instituto e coordenadora do projeto Acolhe.
• Entre
a morte e a prisão
A criminalização do aborto gera o medo da punição,
que faz com que muitas pessoas não procurem ajuda, se coloquem em risco,
aumentando o tempo de gestação para fazer a interrupção. Métodos caseiros, como
chás abortivos, são comumente utilizados por mulheres pobres, por serem
supostamente mais baratos do que procedimentos em clínicas clandestinas,
profissionais particulares ou remédios importados. Sem informação de qualidade
e acompanhamento, elas acabam nos atendimentos de emergência para sobreviver.
Há cinco anos, inclusive, a campanha Nem Presa Nem
Morta foi construída por organizações e coletivos feministas que se uniram para
ampliar o debate sobre o direito ao aborto no Brasil.
Em março de 2023, o Supremo Tribunal de Justiça
acolheu um pedido da Defensoria Pública de Minas Gerais e trancou a ação penal
de uma mulher que havia sido denunciada pelo próprio médico, após realizar um
aborto inseguro. O STJ considerou que o médico não pode acionar a polícia para
investigar pacientes que procuram atendimento e relatam ter realizado o
procedimento. A investigação contra ela foi encerrada.
O processo da jovem que abre essa reportagem corre
em segredo de justiça e está em fase de instrução, que é quando o juiz se
dedica a colher provas e testemunhas. É nessa instância que será discutido como
será o julgamento. Se não for anulado antes, são grandes as chances de ela ter
que enfrentar o Tribunal do Júri, formado pela sociedade civil, “o povo”. Isso
porque o aborto provocado está no Código Penal brasileiro e não tratado como
questão de saúde pública. Com isso, nem os casos previstos em lei têm acesso
garantido no país com poucos serviços nos estados que fazem o procedimento.
Um
escritório de advocacia de São Paulo está dedicado à defesa dessa jovem
de forma voluntária, e tenta conseguir, pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ),
o cancelamento do processo, além do habeas corpus – um mecanismo para combater
prisões ilegais. “Não se pode admitir que uma mulher seja processada e
condenada com base num processo em que a sua origem é completamente legal,”
analisa Luiza Oliver, integrante da
equipe que defende a jovem.
• Precisamos
de leis mais rígidas?
Não é necessária uma nova legislação para impedir
que o sigilo médico seja quebrado e mulheres não sejam mais denunciadas em
ambiente hospitalar, consideram especialistas entrevistados pela AzMina. Para o
médico Cristião, é preciso fazer valer as leis que já existem e tirar os
“‘porteiros’ que impedem o acesso ao aborto”.
Uma maneira disso é estabelecer o caminho oposto: o Estado tomando para
si a responsabilidade de advertir os profissionais de saúde – e não punindo
pessoas que gestam e abortam.
O cancelamento de todos os processos que se
originam a partir de denúncias médicas também seria uma forma de desestimular
esse tipo de postura. “Falta firmeza do Poder Judiciário e coragem política”,
completa a advogada Luiza.
A mudança precisa ser feita em todas as pontas.
Universidades, centros de formação em saúde e órgãos de classe devem ser
cobrados para disseminarem a informação sobre o segredo médico e a importância
de preservá-lo, bem como promover um debate de qualidade sobre direitos
humanos, sexuais e reprodutivos. “Na minha faculdade sequer falávamos do tema
aborto, o que dirá sobre sigilo médico nesses casos”, recorda a médica Ana
Teresa.
Fonte: Por Natália Sousa e Joana Suarez, na Revista
AzMina
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