A vida de Maria Ivete dos santos amazônicos
Dona Maria Ivete Bastos dos Santos, 56 anos, está
jurada de morte.
Este terror a acompanha há mais de década. Dona
Ivete é uma camponesa paraense da Gleba de Lago Grande, em Santarém, um
assentamento agroextrativista onde há 144 comunidades tradicionais:
ribeirinhas, quilombolas, indígenas… Porém, os moradores ainda aguardam os
títulos coletivos de suas terras.
— Se você pesquisar, vai ver que é o maior
assentamento do planeta! — orgulha-se ela, abrindo um largo sorriso de covinhas
no rosto.
Ela tem um frondoso quintal produtivo onde cultiva
laranja, lima, limão, tangerina e hortaliças, também um pouco de pupunha, manga
e sapotilha, “que é uma fruta da nossa região”. Uma linda roça! Também cria
galinhas. Trabalha nas feiras. E é “um pouco artesã”: com palha de tucumã,
costura cestos; e, com as sementes, joias amazônicas.
É economia e pertencimento, garante. Modo de vida e
resistência. Para defender isso, ela arregaçou as mangas. Foi presidenta do
Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém – e sua luta
implacável em defesa dos povos amazônicos foi, em 2006, reconhecida pelo Prêmio
Mahatma Gandhi, em 2006. Hoje, ela é coordenadora da Associação de Mulheres Trabalhadoras
Rurais de Santarém.
Mas ser roceira hoje arranca mais suor que antes,
diz ela, com certa melancolia. Há uns dez anos, a enxada começava a roçar o
chão às seis da manhã. O trabalho ia até às onze horas. Agora, ninguém mais
suporta o sol escaldante, “parece que a gente está queimando vivo”. Até quando
chove é assim, relata. E há ainda a propagação de enfermidades: diversos tipos
de canceres flagelam as comunidades. É por causa do mercúrio e do agrotóxico,
explica, que “todo dia a gente está chorando por alguém”.
— Mudou tudo. O comportamento do rio, a nossa
saúde, a nossa cultura. Tudo, tudo!
E é com aperto no coração, olhos cintilantes de
naufraga, que ela narra o acosso que, hoje, sua comunidade enfrenta em várias
frentes. Nos últimos tempos, os sojeiros do sul brasileiro têm investido pesado
na região de Santarém – o que intensificou a truculência dos ruralistas, agora
com terras mais valorizadas. E, na esteira desse avanço, veio mais desmatamento
e a construção de redes portuárias no rio Tapajós – como o monumental Porto da
Cargill, edificado após uma série de irregularidades e desrespeitos ao processo
de licenciamento ambiental. E há também as violações de mineradoras como a
Alcoa, que opera na região de Juruti, oeste do Pará, sob um discurso de “mineração
sustentável” – e que agora está mirando o território onde vive Dona Maria
Ivete.
Mas ela não se aquieta. Tem vigor para enfrentar as
injustiças e violências da vida. E, por isso, está marcada pra morrer.
·
Camponesa marcada pra morrer
Há décadas ela incomoda muita gente graúda.
Latifundiários contrataram pistoleiros para calá-la. Grileiros, também. Diante
do risco iminente, ela foi para na lista da Justiça de defensores ameaçados – e
ficou sob proteção policial por dez anos: de 2007 a 2017. Foi duro; a gente
renuncia a todos os lazeres da vida, confessa. Os filhos ainda eram pequenos –
e o perigo era tal que ela não podia tê-lo por perto.
— Só de longe, só escondida, porque eu ameaçava a
vida deles também.
Ela desvia o olhar para baixo, onde parece contemplar
algum vazio. É uma história dolorida, afinal.
— O tanto que sofri quando as minhas companheiras
eram executadas… Eu ficava doente… Dava uma crise emocional muito grande…
Ficava olhando as coisas… Dava um tipo de alucinação… “Meu Deus, eles estão chegando?”…
“O que foi esse barulho?”… E a gente vê: pode passar dez, doze anos e
companheiras que estão marcadas para morrer acabam assassinadas…
As promessas do terror ruralista nunca expiram.
Jurada de morte está, até morrer – de morte morrida ou morte matada. E a
intranquilidade é perene. A camponesa precisa estar sempre ressabiada,
precavida. Com olho na nuca. Por isso, nunca alardeia quando precisa viajar. Só
vai à cidade acompanhada. Qualquer encarada – torta ou não – nas ruas faz
palpitar o seu coração. O reconforto, conta, é o de não guardar remorsos na
vida: nunca se corrompeu, nunca abaixou a cabeça.
Não sou de fugir da luta, garante ela, em frase
firme, rápida, que deve sempre repetir em conversas, debates, discursos e
entrevistas. Afinal, essas palavras são ela.
E conta que vive novo momento da vida, que a idade
avança – e as dificuldades físicas, também.
— Eu sinto medo, mas eu estou mais preparada hoje
do que antes — diz, ressaltando que vive novo momento de vida, em que a idade
avança; e, com ela, as dificuldades físicas.
Mas o vigor de uma mulher como Maria Ivete não
desaparece tão fácil.
• Novas
roupas da intimidação
Um senhor bem-vestido bateu à porta do Sindicato
onde Maria Ivete atua. Levava uma mala cheia de dinheiro, como vemos em filmes.
Representava algum poderoso, que a camponesa furtou-se a nomear, e queria
“conversar”. Ela mandou ele chispar dali. Com delicadeza corporativa, ele
chispou; mas antes advertiu: quando o diálogo não funciona, vem a reação…
— Isso foi recente. Com um novo momento, vem novas
ameaça. O capitalismo é assim, sempre se reconfigurando… — analisa ela.
Então, ela descreve a roupagem moderna do capital
para acossar os povos da floresta. A primeira tentativa é a de comprar
lideranças. Se não dá certo, ele come pelas beiradas, instigando desavenças
entre elas para fomentar a discórdia e a canibalização dos movimentos
populares. Outra opção é cooptar setores de partidos políticos nos quais essas
lideranças atuam; e assim pressioná-las. Se tudo isso fracassa, tentam iludir a
base de sindicatos, presenteando famílias, bancando festas nas comunidades,
prometendo mais empregos e melhores salários, fornecendo antenas parabólicas,
patrocinando motores de geração de luz…
— Onde o governo não chega para atender as
necessidades básicas do povo, lá estão eles!
Se tudo fracassa, vem a estratégia clássica:
promessas de assassinato, pistolagem, casas incendiadas…
Mas dona Maria Ivete tem um antídoto para mitigar
essa truculência: políticas públicas para os povos das florestas.
Ela aponta a importância do Bolsa Verde em sua
comunidade, auxílio este criado em 2011, no governo Dilma, que concedia R$ 300
a cada três meses para famílias que vivem dentro de reservas e assentamentos
extrativistas – mas foi interrompido por Bolsonaro.
—Era uma segurança para a gente.
Neste mês, Marina Silva, ministra do Meio Ambiente
e Mudança Climática, anunciou a retomada do programa, dobrando o benefício para
R$ 600.
Maria Ivete também denuncia a irracionalidade de
projetos de infraestrutura na Amazônia servirem apenas “os grandes”. “E a
gente, como fica?”, revolta-se ela. E que a assistência técnica para a
agricultura familiar, que deveriam ser ofertada pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e pela Embrapa, está desmantela
no país, o que gera muitas dificuldades para que agroextrativistas como ela
participarem de programas como o de Aquisição de Alimentos (PAA), no qual o
governo adquire e doa alimentos da agricultura familiar, e do de Alimentação
Escolar (PNAE), para o fornecimento de comida nutritiva e saudável na educação
básica pública.
• Santos
amazônicos
Maria do Espírito Santo da Silva, 51 anos,
liderança agroextrativista. Baleada com seu esposo José Cláudio Ribeiro da
Silva, 52 anos, em uma emboscada no dia 24 de maio de 2011, no assentamento
Maçaranduba, oeste do Pará.
Irmã Dorothy Stang, 73 anos, defensora dos direitos
humanos na Amazônia. Recebeu seis tiros, um deles na cabeça, no dia 12 de
fevereiro de 2005, em Anapu, sudoeste do Pará.
Chico Mendes, 44 anos, liderança dos seringueiros
da Bacia Amazônica. Foi baleado no peito a tiros de escopeta quando saia de sua
casa para tomar banho, em 22 de dezembro de 1988, em Xapuri, interior do Acre.
Ao narrar labutas, ideias e enfrentamentos, dona
Ivete evoca estes ativistas tragicamente assassinados, por vezes cerrando os
olhos em ato de fé. Ela poderia (e ainda pode) ser eles. “Como a situação
vivida por Maria do Espírito Santo”… “Muitos como a irmã Dorothy”… “E Zé
Cláudio”… “É preciso lembrar de Chico Mendes, dos que se foram”… É quase uma
oração. Soa como um pedido de benção para dar-lhe forças e coragem para
perseverar na luta, não cair na resignação e ajudar a livrar os povos da
floresta dos males do capital, amém.
Seriam estes alguns das santas e santos amazônicos?
— Quando a gente está sofrendo muito, no sufoco, a
gente chama por eles — diz dona Ivete, surpresa com a pergunta. — Quando
estamos precisando, eles dão força para nós, iluminam nossas cabeças. É muito
conflito… e todos da luta passam por isso. Eles se foram, mas ainda são muito
importantes para nós. E todos nós temos um sentimento… um sentimento de amor
que não tem explicação com a terra, com a floresta, com o rio, com os
encantados que estão por ali…
Eu só tenho o quintal de casa, lembra ela.
Portanto, o único patrimônio que poderá deixar são os laços criados para as
lutas que se seguirão – como os de Chico Mendes, de Maria do Espírito Santo, de
Zé Cláudio, de irmã Dorothy…
— A gente vive porque acredita.
Fonte: Por Rôney Rodrigues, em Outras Palavras
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