Temos que ter o controle da IA antes que bandidos e governos
autoritários o façam, diz pioneiro da educação à distância
De chatbots e assistentes virtuais
a veículos autônomos, a Inteligência Artificial (IA) está aos poucos ganhando
espaço em nosso dia a dia. Para o americano Salman Khan, pioneiro do ensino à
distância e fundador da Khan Academy, a tecnologia já está tão robusta que não
há mais como fugir.
“A tecnologia já está aí e algumas pessoas podem
escolher ignorar, mas não acho que seja uma boa estratégia”, afirmou Khan em entrevista
à BBC News Brasil.
“Na verdade, ela será usada por pessoas com más
intenções, por bandidos para promover fraudes ou por governos autoritários para
vigiar as pessoas. E na minha opinião, depende daqueles que têm boas intenções
tomar o controle antes.”
Formado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts
(MIT) e em Harvard, nos Estados Unidos, Khan deixou uma carreira no mercado
financeiro para fundar a Khan Academy, a maior escola virtual do mundo. A
plataforma possui vídeos e exercícios traduzidos para mais de 36 idiomas que
ensinam, de forma gratuita, des aritmética básica até cálculo vetorial.
Agora, com o desenvolvimento de novas tecnologias
com Inteligência Artificial e a sua infiltração na educação, a Khan Academy
está desenvolvendo sua própria IA generativa. A ideia é que a ferramenta seja
usada como um tutor para os estudantes e um assistente para os professores.
Para Khan, a tecnologia é a saída para evitar o uso
indevido da IA na educação.
“Se usarmos bem a tecnologia, teremos menos salas de
aula onde as crianças se sentem perdidas ou entediadas e onde o professor fica
dando palestras para os alunos - que foi basicamente o que aconteceu em muitas
escolas durante a pandemia, com as aulas pelo Zoom”, diz.
Em relação aos questionamentos feitos por muitos
sobre o machine learning e a exibição de comportamentos
parciais ou preconceituosos, o empresário disse acreditar que eles podem ser
muitas vezes impossíveis de serem evitados, especialmente nas ciências humanas.
Mas diz que, com aulas online, é muito mais fácil
monitorar quaisquer irregularidades.
“Se uma IA generativa é flagrada dizendo algo
tendencioso, alguém pode facilmente tirar um print, colocar nas
redes sociais e desacreditar a organização que desenvolveu a tecnologia”, diz.
“Isso não podia ser feito em uma sala de aula tradicional. Se um educador diz
algo tendencioso, é mais difícil examinar minuciosamente e provar que aquilo
aconteceu.”
Leia a seguir os principais trechos da entrevista
de Salman Khan à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza:
·
Ainda podemos brecar o
avanço da tecnologia de IA na educação ou já passamos desse ponto?
Salman Khan - A
tecnologia já está aí e algumas pessoas podem escolher ignorar, mas não acho
que seja uma boa estratégia. Na verdade, ela será usada por pessoas com más
intenções, por bandidos para promover fraudes ou por governos autoritários para
vigiar as pessoas. E na minha opinião, depende daqueles que têm boas intenções
tomar o controle antes.
Toda tecnologia é apenas uma extensão da intenção
do usuário, não importa se estamos falando de IA, internet, energia nuclear ou
uma máquina a vapor. Se houver mais pessoas querendo utilizar a energia nuclear
para o mal do que para o bem, por exemplo, o efeito será negativo.
Na minha opinião, a melhor maneira de abordar a IA
neste momento é que pessoas com boas intenções a utilizem da forma correta,
pensem proativamente sobre novos meios de proteção e tentem minimizar os
riscos. Ou seja, não devemos nos esconder e sim nos envolver mais.
·
Muitos temem que as novas
ferramentas de IA que se tornaram populares nos últimos anos possam prejudicar
o processo de aprendizagem, ajudando alunos a colar e desvalorizando o papel
dos professores na educação. Mas o senhor tem uma perspectiva diferente, não?
Khan - Sim.
Acredito que temos que resolver alguns problemas, mas há muitas oportunidades a
serem exploradas.
Obviamente que o maior desafio é a possibilidade -
e a realidade, na verdade, já que isso já está acontecendo - do uso da IA
generativa para colar, escrever redações, resolver problemas matemáticos. Mas
acredito que há soluções para isso. O Chat GPT não foi criado para propósitos
educacionais e o que temos que fazer é desenvolver ferramentas específicas para
estudantes.
Na Khan Academy, criamos a Khanmigo, nossa própria
IA que funciona como um bom tutor socrático. Ele não dá respostas, mas
feedbacks e sugestões. A ideia é que a IA e os alunos trabalhem juntos para
escrever uma redação, por exemplo. Ou seja, o professor dá a tarefa pelo
Khanmigo e os alunos devem trabalhar nela ali mesmo. A tecnologia pode apontar
erros e sugerir que o estudante reformule frases e argumentos e, ao final, os
professores podem acessar a transcrição do chat. A IA também pode avaliar o
processo, informando quantas horas o aluno passou trabalhando naquele texto e
quais foram as principais dificuldades, além de sugerir uma nota para o texto
ao professor.
E, claro, algumas pessoas vão dizer: ‘mas o que
impede um estudante de usar o Chat GPT mesmo assim?’. Nesse mundo, se um aluno
usa uma IA para escrever a redação e só copia e cola o texto final no Khanmigo,
nossa IA vai dizer ao professor ‘não sei de onde veio essa redação, ela só
apareceu aqui de repente’.
E qualquer um que afirme ter desenvolvido
ferramentas que permitam detectar textos criados por uma IA generativa está
mentindo. É muito fácil escapar de tecnologias assim. Portanto, focar no
processo e não apenas no resultado é, na verdade, a principal forma de resolver
o problema da cola.
·
Em uma pesquisa recente, a
Unesco destaca a importância da interação social no processo de aprendizagem e
aponta que durante a pandemia muitos estudantes foram prejudicados pelo ensino
à distância. Um tutor de IA, em vez de um humano, não poderia repetir esse
padrão?
Khan - Para
deixar claro, não vejo a IA como um substituto para a interação humana. Na
verdade, a tecnologia deve ser usada para facilitar a interação humana ou
apoiar o aluno quando não há humanos disponíveis.
Todos nós lembramos da época em que éramos
estudantes e estávamos 11 horas da noite, antes de uma prova, tentando entender
um conceito, sem ninguém para ajudar. É aí que a tecnologia entra. Ou então
quando um aluno tem vergonha de tirar uma dúvida na frente de uma sala lotada,
ele pode perguntar para a IA - que, aliás, avisará ao professor sobre aquela
dúvida e todas as outras, sugerindo que, por exemplo, ele faça uma nova
explicação em sala de aula.
Se usarmos bem a tecnologia, teremos menos salas de
aula onde as crianças se sentem perdidas ou entediadas e onde o professor fica
dando palestras para os alunos - que foi basicamente o que aconteceu em muitas
escolas durante a pandemia, com as aulas pelo Zoom.
·
E os professores? No Brasil,
essa já é uma profissão muito desvalorizada. Usar IA não poderia piorar ainda
mais a situação?
Khan - Não acredito.
Nossa proposta é usar a IA também como um assistente de ensino para
professores, ajudando a desenvolver planos de aula, a escrever relatórios de
progresso e até a avaliar trabalhos. Os professores passam muito tempo fazendo
tarefas administrativas e, dessa forma, eles podem se dedicar mais a estar com
os alunos de fato.
Ter as ferramentas mais modernas em qualquer
profissão é um sinal de que essa profissão é valorizada. E há uma oportunidade
aqui para educadores começarem a aproveitar a IA generativa de maneiras
significativas muito antes de outras profissões, até mesmo engenheiros de
software, programadores ou cientistas.
Não se trata de substituir o que o professor faz,
mas permitir que eles atuem em um nível ainda mais elevado. Sabemos que os
professores não são tão valorizados e bem pagos como deveriam e, ao mesmo
tempo, estão quase sempre sobrecarregados. Portanto, se você puder tornar a
vida deles mais fácil, será como um presente.
·
Há uma grande discussão
sobre a capacidade da IA de se libertar de conceitos pré-concebidos, aprendidos
por meio das interações humanas. Como garantir que os alunos não tenham acesso
a conteúdos tendenciosos ou preconceituosos?
Khan - Eu sempre digo
que é muito difícil que algo que seja completamente imparcial. Talvez a matemática
ou as ciências, mas nas humanidades é quase impossível. Por isso o padrão para
a IA deve ser aquilo que segue o status quo. No caso do Khanmigo,
tudo é ancorado em conteúdo e exercícios que já foram escritos previamente
pelos nossos professores e que seguem padrões altos.
Mas o que é interessante nisso tudo é que, se uma
IA generativa é flagrada dizendo algo tendencioso, alguém pode facilmente tirar
um print, colocar nas redes sociais e desacreditar a organização que
desenvolveu a tecnologia. Isso não podia ser feito em uma sala de aula
tradicional. Se um educador diz algo tendencioso, é mais difícil examinar
minuciosamente e provar que aquilo aconteceu. Ou seja, com a IA temos 10
milhões de pessoas escrutinando aquele ponto de vista.
·
Tratando agora do lado
prático: vivemos em um mundo muito desigual e essas soluções podem funcionar em
países mais desenvolvidos, mas e em outros locais? Elas não podem aprofundar as
desigualdades de oportunidades e de qualidade da educação entre os países mais
pobres e mais ricos?
Khan - Eu acho que, na
verdade, vai ajudar a diminuir a desigualdade. Talvez não agora, mas a longo
prazo.
Hoje uma pessoa que mora no Brasil e vem de uma
família rica, por exemplo, pode contratar um ótimo tutor para ajudar em seus
estudos, enquanto os alunos mais pobres não têm essa condição e precisam
estudar sozinhos e compreender toda a matéria em uma sala lotada, às vezes com
40 outros alunos. Mas ao longo dos anos, talvez em uns cinco anos mais ou
menos, creio que os tutores de IA podem estar disponíveis para cada vez mais
pessoas e a um custo bem mais acessível. Isso pode ajudar a preencher a lacuna
que existe entre as escolas particulares caras e as públicas ou mais baratas.
·
O setor de educação deve
deixar a regulamentação das tecnologias de IA nas mãos das empresas criadoras?
Khan - Os
educadores precisam garantir que tudo o que usam tem segurança e medidas de
privacidade aceitáveis. O Khanmigo não armazena os dados dos usuários para nada
a não ser melhorar a experiência dos alunos - e isso, na minha opinião, é uma
exigência. Deve-se garantir que os dados dos não sejam armazenados e
comercializados. Portanto, educadores, administradores de escolas e
legisladores devem estabelecer diretrizes regionais antes de escolherem quais
ferramentas querem usar.
·
O mesmo estudo da Unesco que
mencionei anteriormente observa que, na maioria dos países, são necessárias
muito mais autorizações e etapas para aprovar um novo livro escolar do que para
validar o uso de tecnologias de IA nas escolas e salas de aula. Isso em um
cenário em que menos de 10% das escolas e universidades em todo o mundo
desenvolveram políticas institucionais ou orientações formais relativas à
utilização da IA. Corremos o risco de abaixar os padrões da educação com a IA?
Khan - Não acredito.
Acho que a maior parte das pessoas razoáveis enxerga que há muita política
envolvida na burocracia para aprovar um livro didático. E no fim das contas, a
eficácia não tem nada a ver com o fato de o material A ou B ter sido escolhido.
Posso falar sobre os Estados Unidos: diferentes distritos elegem diferentes
livros didáticos, mas nos últimos 50 anos não houve qualquer evidência de que
um material fez mais diferença do que outro.
E se essas novas ferramentas, sejam elas
inteligências artificiais generativas ou a Khan Academy, têm produzido
evidências de que estão tendo um impacto significativo para os alunos, então
deve ser mais fácil mesmo analisá-las, testá-las e tomar uma decisão. Quanto
menos desgaste no processo, melhor.
Muitas escolas independentes ou particulares adotam
seu material didático de forma menos burocrática e mais rápida. Então se
queremos reduzir a desigualdade não podemos aumentar a burocracia, mas sim
permitir que a tomada de decisões aconteça de forma mais rápida e por pessoas que
conhecem os alunos, pessoas de dentro das escolas.
Fonte: BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário