MÃE BERNADETE E BINHO DO QUILOMBO LUTAVAM CONTRA EMPRESA DE FILHO DE
EX-GOVERNADOR DA BAHIA
CINCO ANOS, 11 MESES E 28
DIAS separam o assassinato de Mãe Bernadete Pacífico, ialorixá
e líder do quilombo Pitanga dos
Palmares, da execução do seu filho, Flávio Gabriel Pacífico, mais conhecido
como Binho do Quilombo – ambos foram mortos dentro do território onde viviam.
Antes, haviam se engajado em uma série de lutas contra especulação imobiliária,
grilagem de terra e, sobretudo, para impedir a instalação de um aterro de
resíduos de construção civil próximo ao quilombo, localizado em Simões Filho,
região metropolitana de Salvador.
Mãe Bernadete, 72 anos, estava em casa assistindo
televisão com seus três netos. Era noite do dia 17 de agosto deste ano, uma
quinta-feira. Dois homens chegaram em uma moto, trancaram os netos em um quarto
e a executaram com 22
tiros, sendo 12 no rosto. Durante toda a ação,
permaneceram de capacete para não serem identificados.
Na manhã do dia 19 de setembro de 2017, uma
terça-feira, Binho do Quilombo,
36 anos, estava em seu carro saindo de casa quando foi abordado por homens
armados. Eles dispararam
12 tiros contra ele e fugiram. O caso começou a ser
investigado pela Polícia Civil da Bahia e, em 2020, foi transferido para a
Polícia Federal.
Binho do Quilombo liderava uma luta contra a
empresa Naturalle, que
em 2016 havia recebido uma
licença municipal para ocupar o terreno de 163 hectares e construir o aterro. O
proprietário é o empresário Vitor Loureiro Souto – filho de Paulo Souto, do
União Brasil, ex-governador da Bahia por dois mandatos: de 1995 a 1998 e 2003 a
2007. Souto foi uma das principais figuras no grupo liderado pelo ex-senador
Antonio Carlos Magalhães, que comandou a política do estado por quase 40 anos,
até morrer em
2007.
Dezesseis dias antes de ser executado, Binho
participou de um evento na Universidade Federal da Bahia e denunciou os
problemas da instalação do aterro próximo ao território quilombola. O evento
foi organizado com o intuito de somar forças para embargar a obra.
“Vou chamar de lixão porque eles não tiveram a
ética de explicar o que era aterro para as comunidades, mas tiveram a soberania
e a esperteza de ir nas comunidades tentar jogar um contra o outro e dizer:
‘olha, vai ter 100 empregos’, porque estamos vulneráveis a empregos. Mas eu não
quero vender meu aipim fedendo a lixo, não. Perto de um lixão, não. Eu não
quero vender meu artesanato próximo a um lixão”, disse na ocasião, como é possível
ver em vídeo gravado à época.
“Não tenho nada contra a Naturalle, contra a tal
empresa, apenas o comportamento, que se vê que é um comportamento que não
enxerga ao povo que está ao seu redor. Ela errou nisso aí e eu tenho esse
consentimento, entendeu?”, completou o líder quilombola.
Em 2016, Binho foi candidato a vereador em Simões
Filho, pelo PSD. Fez uma campanha modesta – recebendo uma única doação de R$
77,59 – e até conquistou um resultado razoável: 451 votos. O vereador eleito
com menos votos na cidade obteve 745. A sua plataforma política foi baseada na
defesa do território para as populações tradicionais e na denúncia da
instalação do aterro de inertess na área.
Os moradores que integram o Vale do Itamboatá, onde
fica o quilombo Pitanga dos Palmares e outras comunidades tradicionais da
região, criaram o movimento ‘Nossas Águas, Nossa Terra, Nossa Gente’ para
impedir a instalação do empreendimento. Eles ingressaram em março de 2017 com
uma representação no Ministério Público Estadual e Federal – que,
conjuntamente, abriram um inquérito civil para apurar o caso. Nós pedimos
acesso a esse inquérito, o que não foi concedido nem pelo MP-BA e nem pelo MPF
. O movimento também criou um abaixo-assinado
virtual para colher assinaturas contra a instalação
do aterro.
·
Quilombo fica dentro de
área de proteção ambiental
O Vale do Itamboatá fica em uma Área de Proteção
Ambiental, a APA Joanes Ipitanga, que preserva uma área de Mata Atlântica. Em
um estudo técnico assinado por um biólogo contratado para medir os impactos
ambientais do empreendimento, somente na área do aterro, foram encontradas 30
famílias botânicas de 53 espécies diferentes. Lá, estão localizadas também
comunidades tradicionais, ribeirinhas e quilombolas, e também o aquífero São
Sebastião – uma importante bacia do Recôncavo Baiano que abastece Salvador,
cidades no entorno, além de ser aproveitado no uso industrial.
O local fica próximo de duas importantes áreas
econômicas do estado: o Polo Petroquímico de Camaçari e a Refinaria de
Mataripe, que durante o governo Bolsonaro foi vendida
para o conglomerado árabe Mubadala. É também
cobiçado pela especulação imobiliária para construção de condomínios que possam
abrigar trabalhadores da indústria.
A Naturalle teve um interesse estratégico no aterro
de inertes. O projeto previu ainda uma área destinada para descarte de resíduos
domésticos e hospitalares para atender as cidades de Catu, Camaçari, Mata de
São João, Pojuca e Simões Filho. Ao todo, seriam descartados 482 toneladas de
resíduos domésticos por dia e sete toneladas de resíduos hospitalares. O lucro
estimado do aterro é de R$ 20 milhões por ano.
Em abril de 2018, após pressão do movimento ‘Nossas
Águas, Nossa Terra, Nossa Gente’ e pela comoção com a morte de Binho do
Quilombo, o Inema – órgão ambiental da Bahia – chegou
a negar a licença para instalação do aterro. A empresa entrou
com pedido de reconsideração e obteve, em 2019, a licença ambiental. Em
dezembro de 2020, veio a autorização, garantindo a instalação do
empreendimento.
O movimento social entrou com um mandado de
segurança para impedir a obra – que, por enquanto, segue funcionando.
Procurada, a Naturalle disse que se solidariza com
“os familiares e amigos de Flávio Gabriel e Dona Bernadete” e que nutre “a
esperança de que as autoridades policiais cumpram o seu papel e desvende esses
assassinatos”. A empresa também informou que não é mais proprietária do aterro
e que quem agora administra o espaço é a Recycle Waste Energy, segundo eles uma
empresa “especializada em aterros sanitários”. Apesar disso, o site da
Naturalle informa que a empresa “possui” um
aterro de inertes em Simões Filho.
·
Mãe Bernadete também
lutava contra o aterro
Depois da morte de Binho, Mãe Bernadete passou a
militar publicamente para tentar descobrir quem matou seu filho e assumiu a
bandeira contra a implantação do aterro. Em um vídeo gravado durante uma
audiência no Ministério Público Federal, em junho do ano passado, ela diz está
“enfrentando ameaças dia e noite” e que seu filho morreu lutando contra “aquele
maldito lixão da Naturalle”.
No vídeo, ela ainda cobra o MPF pela investigação
da Polícia Federal sobre o assassinato de Binho do Quilombo. “O assassinato do
meu filho foi federalizado e não temos resposta. É um absurdo isso, gente. Mas não
pense que estamos parados não, viu?… É uma grande vergonha. Meu filho lutou
pelo povo dele. Morreu lutando. Foi no dia que ele tava indo para resolver um
problema da Naturalle. Ele morreu lutando. E nós não temos resposta”,
disse.
Desde que o caso passou a ser investigado pela
Polícia Federal, há três anos, ainda não se chegou aos possíveis executores e
mandantes. Em dezembro de 2017, quando a Polícia Civil ainda acompanhava a
investigação, Leandro da
Silva Pereira foi detido preventivamente, mas depois solto
sem ser indiciado.
O Intercept obteve
imagens, vídeos e fotos de um carro, com identificação da placa, que teria sido
usado para levar os executores no dia da morte do líder quilombola. Há também
imagem de câmeras de segurança que ajudam a identificar o motorista, no momento
que ele foi pagar o pedágio na rodovia na saída do Vale do Itamboatá. Esse
material foi entregue para as Polícias Civil, três meses após o crime
acontecer. Posteriormente, também foi levado para a Polícia Federal.
Em julho deste ano, durante visita de Rosa Weber ao
quilombo Quingoma, na região metropolitana de Salvador, a ialorixá relatou à
presidente do STF que a comunidade vinha
sofrendo ameaças e que ela estava sendo vigiada. Weber diz ter
alertado o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, do PT, e pedido “cuidado
especial” com os quilombolas”. Após a morte da mãe de
santo, o STF prestou uma homenagem com um minuto de silêncio.
Pelas lutas travadas por mãe Bernardete, o advogado
da família classificou como “canalha”,
“violenta”e “precipitada” a fala do governador
da Bahia, Jerônimo Rodrigues, do PT, ao dar ênfase ao tráfico
de drogas como uma das principais teses que teriam motivado
o assassinato da liderança.
“Antes de se falar em ação de traficantes, a
polícia deveria investigar uma possível relação com um crime que não foi
solucionado”, disse o advogado Leandro Santos, em entrevista
ao O Globo.
Outra crítica feita pela família e pelos advogados
que acompanham o caso é a ineficiência do governo da Bahia em proteger Mãe
Bernadete. Dois anos antes de ser executada, ela entrou no programa
de proteção aos defensores de direitos humanos. Pelo programa, o governo federal transfere uma verba para cada
assistido, que deve ser administrado pelo governo estadual de forma a monitorar
possíveis riscos e oferecer escolta policial. No caso de Mãe Bernadete, sete
câmeras filmavam sua rotina em Pitanga dos Palmares, mas apenas
três estavam funcionando no momento do crime.
“As rondas policiais eram pouco eficientes. Eles
iam lá uma vez por dia, perguntavam se estava tudo bem e iam embora. Não era
uma escolta ostensiva que alguém que estava ameaçado precisava. Quem estava
querendo matá-la certamente percebeu essas fragilidades e se aproveitou delas”,
disse ao Intercept David Mendez, outro advogado que representa a família.
·
Naturalle tem relações
com o poder público
As relações da Naturalle com o poder público vão
além do vínculo familiar direto entre o proprietário e o ex-governador Paulo
Souto. Criada em 2014, a empresa passou a administrar, em janeiro de 2017, a
limpeza urbana da cidade de Camaçari, na Bahia, em um contrato emergencial
com dispensa de licitação. Pelo contrato de 90 dias,
foram pagos R$ 17,4 milhões do município à empresa.
O prefeito recém-eleito era Elinaldo Araújo, do
União Brasil, mesmo partido de Paulo Souto – Vitor Souto, dono da Naturalle,
também se filiou à legenda em 2009. Outro filho do ex-governador, Fábio Souto, também é filiado ao União Brasil. Ele foi duas vezes deputado federal
e uma estadual na Bahia – em duas ocasiões representou a sigla. Em outra, foi
eleito pelo PFL, que justamente viria a se transformar no União.
Em Camaçari, além da limpeza urbana, a Naturalle
também mantém um aterro, que recebe por mês “400 toneladas de resíduos
não-perigosos e inertes e a mesma quantidade de resíduos classe II A
(não-perigosos e não-inertes)”, conforme o próprio
site da empresa.
Além da Naturalle, Vitor Souto possui outra empresa
de limpeza, a Ecolurb Engenharia, Conservação e Limpeza Urbana. Em reportagem
publicada pela Folha de S. Paulo, é descrito que essa organização assumiu a
coleta de lixo de importantes municípios baianos governados
por partidos aliados do União Brasil, como Valença,
Irecê, Espanada e São Sebastião do Passé. Em todos os casos, os contratos
firmados foram emergenciais – ou seja, sem licitação.
O sócio de Vitor Souto é o empresário Marcelo
Adoro Farias, que, em 2018, fez uma doação de
R$ 30 mil para a campanha do deputado federal Félix
Mendonça Júnior, cacique do PDT na Bahia. Em 2016, a legenda controlava 21
prefeituras no interior do estado – em uma destas, Entre
Rios, a Naturalle inaugurou em 2022 um aterro sanitário para atender 600 mil pessoas.
Nas eleições de 2014, quando a legislação eleitoral
ainda permitia que pessoas jurídicas fizessem doações, a Ecolurb também
repassou dinheiro para determinadas candidaturas. O site do TSE registra sete
ocorrências de repasses – o portal, no
entanto, não possibilita identificar quem foram os beneficiados e nem o valor
doado.
·
Representante da
Naturalle virou chefe de gabinete na prefeitura
Em Simões Filho, onde o quilombo lutou contra a
implantação do aterro, a Naturalle conseguiu emplacar seu engenheiro
representante como chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Urbano e Meio Ambiente da cidade.
O Intercept teve acesso a uma
procuração, de março de 2016, na qual Sebastião Araújo Reis
de Santana é citado como representante de Vitor Souto para representar a
empresa “junto aos órgãos
ambientais, para fins de atuação em processos de licenciamento,
podendo, para tanto, formular requerimentos, assinar documentos, obter cópias,
emitir guias de taxas referentes aos processos de licenciamento”.
No Diário Oficial, em fevereiro de 2017, o prefeito
Dinha, do MDB, indicou Santana para ocupar o cargo em Simões Filho, que é descrito com “poderes
para representar a secretaria para cada adiantamento realizado”, com devidos
poderes e atribuições para sua representação ativa. Em dezembro de 2017,
durante as férias do titular da pasta, Santana passou a responder interinamente
pelo cargo de secretário de Desenvolvimento Urbano e
Meio Ambiente de Simões Filho. Em setembro de 2019, “a pedido”, ele foi
exonerado do cargo.
O Intercept tentou falar com Diógenes Tolentino, o
Dinha, prefeito no segundo mandato em Simões Filho. Ele não foi localizado nem
no telefone pessoal e nem via assessoria para falar com a reportagem. Santana,
engenheiro que representou a Naturalle, não foi encontrado.
Sobre o vínculo com Santana, a empresa Naturalle
disse que o engenheiro prestou “prestou consultoria em projetos a serem
implantados, mas nunca foi funcionário” da empresa. A nota não respondeu à
pergunta dele já ter representado o proprietário Vitor Souto em uma procuração.
Fonte: Por André Uzeda, em The Intercept
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