O programa de IA que está ajudando a traduzir a Bíblia para línguas
raras
Provavelmente, nenhum livro no mundo foi tão
traduzido quanto a Bíblia. Mas, ainda assim, organizações cristãs consideram
que o número de línguas com acesso ao livro sagrado ainda é baixo.
Segundo a Aliança Global Wycliffe, que faz
levantamentos anuais do acesso à Bíblia no planeta, de um total de 7.388
línguas no mundo, 724 têm toda a Bíblia traduzida, e 1.617 têm apenas o Novo
Testamento. Os dados são de 2022.
Mirando essa lacuna, dois pesquisadores da área de
Engenharia e Ciência da Computação — e que são cristãos — uniram-se para
construir ferramentas de inteligência artificial (IA) que possam facilitar a
tradução da Bíblia.
Essas ferramentas são englobadas pelo projeto Greek
Room, fundado pelos pesquisadores Ulf Hermjakob e Joel Mathew, do Instituto de
Ciências da Informação da Universidade do Sul da Califórnia (USC), nos EUA.
O projeto visa línguas que recebem pouco
investimento — por exemplo, têm nenhum ou poucos dicionários, gramáticas e
estudos sobre elas.
Hermjakob é alemão e evangélico luterano; Mathew é
indiano e cresceu frequentando uma igreja evangélica pentecostal em seu país —
inclusive, acompanhando os esforços dos pais em fazer traduções da Bíblia para
línguas nativas faladas na Índia, atividade na qual a família se engajava.
Hermjakob e Mathew se conheceram na universidade —
e se reconheceram na fé.
Eles consideram que o Greek Room está na fase
piloto, sendo experimentado de forma colaborativa por agências de tradução ao
redor do mundo.
"Neste momento, estamos fornecendo [as
ferramentas de IA] para cerca de sete, oito línguas, a maioria delas asiáticas.
Mas queremos chegar a uma escala de 70 a 80 línguas no próximo ano", disse
Hermjakob, pesquisador sênior na USC, à BBC News Brasil.
"Antes, ficamos um ano no desenvolvimento do
Greek Room. Eu diria que ele está no estágio piloto, mas já está em uso e está
sendo considerado útil", comemora o pesquisador, há anos dedicado ao
processamento de linguagem natural e aprendizado de máquina.
Ele preferiu não compartilhar quais as línguas já
estão usando o Greek Room porque "em alguns lugares, cristãos, incluindo
tradutores da Bíblia, são perseguidos por governos e grupos militantes".
O projeto traz ferramentas como corretor de
ortografia, o rastreamento de caracteres e palavras que têm sinais de erro, o
destaque a palavras e trechos que pareçam estar faltando e a apresentação de
sugestões de palavras. A ideia é que ele seja integrado a outros programas de
tradução já existentes.
Os criadores do Greek Room recebem financiamento de
pesquisa de uma agência que faz parte da organização internacional Every Tribe
Every Nation (Eten) — a qual trabalha com metas para impulsionar, até 2033, o
acesso de todas as populações à Bíblias.
O desenvolvimento das ferramentas de IA fica a
cargo de Hermjakob e Mathew, mas eles têm colaboradores que fazem testes e
sugestões ao redor do mundo.
Joel Mathew afirma que o Greek Room tem como
princípio ser o mais aberto possível — começando pela gratuidade.
"Também definimos explicitamente que vamos
fazer nossas ferramentas com licença aberta e colocar todos os códigos [de
programação] no GitHub, que é um portal popular como repositório de códigos com
licença aberta", diz Mathew, mestre em ciência da computação pela USC.
• Papel
dos profissionais de tradução diante da IA
A dupla de pesquisadores está desenvolvendo as
ferramentas pensando principalmente em agências e pessoas da própria comunidade
cristã com experiência em tradução.
São pessoas que dominam bem uma língua que funciona
como uma "porta de entrada" e que irão traduzir a Bíblia a partir
desta para uma língua menor.
Por exemplo, o híndi seria uma "porta de
entrada" para uma Bíblia a ser traduzida para uma língua menor da Índia.
Muitas dessas línguas que poderão ganhar traduções
da Bíblia têm poucos registros escritos ou gravados e, por isso, espera-se que
o Greek Room ajude também na preservação delas.
Enquanto isso, os criadores do Greek Room garante
que a ferramenta não vai a afastar o trabalho de tradutores profissionais,
porque ela não traduz um texto do zero.
"Nossa esperança é ajudá-los, não
substituí-los, de jeito nenhum", afirma Mathew.
Ele aponta que há duas etapas principais no enorme
trabalho de tradução da Bíblia: o rascunho e a verificação da qualidade.
"Há um esforço muito maior na verificação da
qualidade do que foi rascunhado. Então, estamos dando um apoio nesta etapa,
porque acreditamos que é aí que pode haver mais benefícios para os tradutores
da Bíblia, se o tempo diminuir e isso facilitar o trabalho deles", diz o
pesquisador indiano.
Bruno Murtinho, presidente da Associação Brasileira
de Tradutores e Intérpretes (Abrates), acredita que ferramentas como essa vieram
para ficar — e acrescenta que profissionais já estão usando programas baseados
em inteligência artificial para auxiliar no trabalho, como o MemoQ e o Trados.
"Todas as ferramentas podem ser úteis... Se
uma ferramenta é boa ou ruim, tudo depende de como ela vai ser utilizada. Não
adianta a gente dizer que não vai usar, e o mundo inteiro vai atropelar a gente
com o uso de Inteligência Artificial", diz o tradutor, intérprete e
legendador.
"O trabalho de tradução não passa só por pegar
uma palavra e transformar naquela palavra [em outra língua], consiste em você
entender todo o contexto, entender a ideia, ser capaz de transmitir aquela
ideia, buscar a melhor expressão, o melhor termo para transmitir o que foi dito
no outro idioma."
"Ainda mais no caso específico da Bíblia. Ela
é cheia de metáforas, cheia de questões que têm referência na época. Textos
religiosos são abstratos, filosóficos. A interpretação deles tem que ser muito
cuidadosa", aponta.
Murtinho destaca também que, no caso do Greek Room,
o foco está em línguas minoritárias, para as quais não há tantas referências —
o que exige ainda mais do trabalho do profissional humano.
• Trabalho
missionário
Murtinho lembra que a história da tradução e das
religiões é antiga. São Jerônimo, considerado o santo padroeiro dos tradutores,
foi um teólogo e sacerdote que, entre os séculos 4 e 5, traduziu textos
bíblicos em grego e hebraico para o latim.
Essa história conjunta também passa pelos trabalhos
missionários ao longo dos últimos séculos, como as missões católicas e
evangélicas encravadas na história do Brasil — e na trajetória de dominação dos
povos indígenas.
"Pastores com formação linguística eram
enviados para diferentes países para passarem 10 ou 20 anos aprendendo a língua
local, para depois fazerem uma tradução. Hoje em dia, o modelo é um pouco
diferente. Por isso, muitas vezes procuramos comunidades cristãs que já
existem, mas não têm a Bíblia disponível na sua língua", explica Ulf
Hermjakob.
Mathew reconhece que, embora o Greek Room tenha
objetivos mais técnicos, no pano de fundo há o objetivo de, com o projeto,
expandir a fé cristã.
"A ferramenta por si só não diz isso, mas
definitivamente está em nosso coração, como cristãos, compartilhar o evangelho,
para que mais pessoas conheçam Jesus. Porém, a ferramenta é focada em uma
tarefa, que é especificamente a tradução da Bíblia", diz o pesquisador.
Sobre a hipótese da ferramenta de IA ser usada pra
traduzir outros textos religiosos não cristãos, como o Alcorão (livro sagrado
do islamismo), Mathew também aponta que este não é o foco, mas não refuta
totalmente essa possibilidade.
"Nossas ferramentas certamente podem ser
usadas para outros tipos de textos. A tecnologia é independente, mas com o
nosso projeto, nós realmente buscamos apoiar principalmente a tradução da
Bíblia e talvez de outros textos cristãos."
Fonte: BBC News Mundo
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