REPENSANDO AS DROGAS: Os limites do STJ e a atuação do Ministério
Público na política de drogas
Não há tema que cause mais polêmica nas discussões
entre promotores(as) de Justiça do que a atuação funcional nos crimes de
tráfico de drogas. A premissa de que as drogas são a principal causa da
existência dos crimes violentos é um dogma, cujo questionamento conduz àqueles
que ousam tal postura crítica serem questionados sobre estarem na carreira
certa (ironicamente sugestionando que a Defensoria seria o "certo")
ou apelidados com adjetivos irônicos como "promofofos(as)".
Outro dia numa audiência de custódia (atualmente
não tenho atribuição no crime comum e, regra geral, atuo em flagrantes de
crimes em sistema de plantão) ouvi do juiz plantonista o seguinte comentário:
"a senhora é mão leve, doutora". Sem pestanejar, respondi: "mão
constitucional, doutor".
O que gerou uma cara de espanto por parte do
magistrado, levando à breve reflexão sobre como é cômodo atuar como
"despachante criminal" ao invés de promotor(a) de Justiça com todas
as tensões jurídicas sociais complexas da terceira década do século 21.
Replicar o status quo que causa o super encarceramento brasileiro é mais cômodo
e confortável.
Anos atrás, num mundo antes da Covid-19, uma
atividade de educação à distância ofertada pela Escola Institucional do Ministério
Público de Minas Gerais com o tema "políticas alternativas no combate às
drogas", em que pese baseada em experiências científicas e direito
comparado, a promotora de Justiça que foi a tutora do curso foi hostilizada por
diversos colegas quase acusada de "pecado capital", ocasião em que
como aluna enviei uma mensagem a ela refletindo sobre como o conteúdo
desconstruía uma série de paradigmas equivocados que fomos doutrinados a
acreditar desde o início da carreira, não querendo justificar a reação violenta
dos colegas, mas para compreender eventuais causas para que profissionais
valorosos e muito dedicados ao Ministério Público como os que estavam naquela
atividade educacional, não fossem capazes de refletir criticamente sobre nossa
atuação profissional, sem desconstruir preconceitos que implicam encarar
conteúdos inconscientes sobre o "perigo do mundo das drogas".
Atualmente, um dos principais detonadores de
paradigmas dos promotores(as) de Justiça tem sido o STJ, em especial, o
ministro Rogério Schietti, oriundo da carreira do MP-DF (Ministério Público do
Distrito Federal) antes de assumir uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça,
o que lhe dá mais propriedade técnica para opinar sobre a atuação do MP
brasileiro, usou de ironia ao criticar a atuação do Parquet paulista na análise
de Habeas Corpus em crime de tráfico de drogas e fazer apelo "para que
seus membros deixem de atuar como meros despachantes criminais"
(disponível aqui).
O caso concreto é emblemático porque a discussão
central era justamente se a conduta praticada configurava o crime de tráfico de
drogas ou desclassificação para consumo pessoal, cuja diferença implica na
possibilidade ou não da privação da liberdade. Um trecho do voto do ministro
Schietti citado na reportagem desta ConJur indaga de maneira direta a atuação
do MP: "Será mesmo, em uma proposta de reflexão institucional, que se
considera acertado o caminho trilhado pelo representante ministerial e acatado
pela Corte estadual? É sustentável, no mundo atual — após uma frustrada guerra
cinquentenária ao comércio de drogas — impor-se uma pena de quase sete anos de
reclusão, em regime inicial fechado, a alguém flagrado com 1,54 grama de
cocaína?".
Propor essa reflexão institucional implica em
compreender que a titularidade da ação penal atribuída aos integrantes do
Ministério Público deve ser exercida tendo como norte a missão constitucional
atribuída à instituição e o seu papel como ombudsman da sociedade, sem olvidar
que o princípio da dignidade da pessoa humana é o alicerce dos direitos
humanos, sendo esses condição fundamental para a existência do Estado
democrático de Direito, expressamente consagrado no artigo 1º da Constituição
Federal de 1988.
Implica em compreender que há diretrizes
constitucionais que devem modular a atuação dos integrantes do MP porque a
contraprestação pelo serviço público prestado por eles está atrelada ao
exercício de suas atribuições dentro dos limites constitucionais, que
atualmente têm sido objeto de modulação por parte do STJ, em especial, no
tocante aos feitos envolvendo os crimes de tráfico de drogas e os limites
probatórios da atuação estatal policial.
Esse é o ponto central que pretendemos refletir: há
um sistema de pesos e contrapesos do Estado democrático de Direito da República
Federativa do Brasil em que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de
Justiça devem uniformizar a interpretação das normas constitucionais e das leis
federais. No entanto, tal como o exemplo citado, cotidianamente os ministérios
públicos e as cortes estaduais têm ignorado os entendimentos das cortes
superiores e continuam a encarcerar pessoas apreendidas em ações das forças
policiais que contrariam os direitos fundamentais e criminalizam a posse de
pequenas quantidades de drogas como sendo prática de tráfico de drogas nas
comunidades periféricas pobres e negras Brasil afora.
Triste perceber que o sistema judicial brasileiro
está programado para prender pessoas pobres e com pouca quantidade de drogas,
sendo que após o flagrante policial, regra geral realizado em alguma
"boca" ou "biqueira" na periferia sem testemunhas porque
têm medo, basta um parecer do representante do Ministério Público afirmar que o
tráfico de drogas representa um perigo para a sociedade como sendo um argumento
suficientemente válido para evidenciar o perigo à ordem pública e a necessidade
da prisão provisória, olvidando-se que não se pode considerar um perigo em
abstrato como requisito da prisão cautelar, como reiteradamente decidido pelo
STJ:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PRISÃO
PREVENTIVA. TRÁFICO DE DROGAS. PERICULUM LIBERTATIS JUSTIFICADO. SUFICIÊNCIA DE
CAUTELARES DO ART. 319 DO CP. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.
1. A prisão preventiva é compatível com a presunção
de não culpabilidade desde que não assuma caráter de antecipação da pena e não decorra,
automaticamente, da natureza do crime ou do ato processual praticado (art. 313,
§ 2º, CPP). Deve apoiar-se em motivos e fundamentos concretos, relativos a
fatos novos ou contemporâneos, dos quais se possa extrair o perigo que a
liberdade plena do investigado ou réu representa para os meios ou os fins do
processo penal (arts. 312 e 315 do CPP).
2. É preciso, ainda, ficar concretamente
evidenciado, na forma do art. 282, § 6º, do CPP, que, presentes os motivos que
autorizam a constrição provisória, não é satisfatória e adequada a sua
substituição por outras medidas cautelares menos invasivas à liberdade.
3. O Magistrado justificou a necessidade de
garantir a ordem pública, ante a periculosidade do agente, revelada por
passagens infracionais pretéritas e as circunstâncias de prática não ocasional
de tráfico de drogas.
4. Entretanto, em juízo de proporcionalidade,
sopesada a apreensão de quantidade não substancial de maconha e as condições
pessoais do suspeito (primariedade), a aplicação do art. 319 do CPP é mais
consentânea e razoável ao caso concreto.
5. Agravo regimental provido para, superada a
Súmula n. 691 do STF, substituir a prisão preventiva do paciente pelas medidas
do art. 319 do CPP descritas no voto.
(AgRg no HC n. 805.881/ES, relator Ministro Rogerio
Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 6/6/2023, DJe de 15/6/2023.)
Os integrantes do Ministério Público que buscam
aprimorar a técnica e utilizar os julgados do STJ nos pareceres para modular
constitucionalmente a atuação nos crimes de tráfico de drogas são prontamente
"rotulados" e passam a sofrer cotidianamente questionamentos sobre
sua conduta profissional estar "auxiliando" o crime.
Integrar o @repensandoaguerraasdrogas fortalece
nossa capacidade de atuação constitucional para resistência ao sistema de
"máquina de moer gente", como muitas vezes é denominado o sistema de
justiça brasileiro, aliando o exercício da atribuição criminal com a
observância do princípio da dignidade da pessoa humana. Para tanto, basta
analisar os casos que chegam cotidianamente sem endossar os indiciamentos de
pessoas pobres e pretas apreendidas com pequenas quantidades de drogas, em
especial, em situações que reiteradamente têm sido consideradas ilegais pelo
Superior Tribunal de Justiça.
A questão relativa à identificação da causa
concreta de perigo para a prisão provisória deveria ser tão básica no Estado
Democrático de Direito contemporâneo, quanto é o hábito de escovar os dentes
para evitar cáries, no entanto, quando se debate a atuação do Ministério
Público nos crimes de tráfico de drogas e se questiona quais os riscos reais
das substâncias que são proibidas se comparadas com as que não são, a discussão
não se sustenta sem argumentos imaginários quanto ao perigo construído no
imaginário social de traficantes fortemente armados ou usuários zumbis, que na
maioria das vezes não se verificam nos casos concretos dos que são encarcerados
nos flagrantes.
Não é raro em grupos de conversa instantânea de
carreiras do Ministério Público e da Magistratura ler comentários do tipo "o
STJ está acabando com o Brasil", em clara crítica aos recentes julgados
que buscam uniformizar a interpretação da Lei de Drogas aos parâmetros
constitucionais e legais, em assuntos complexos como a entrada no domicílio e a
abordagem de pessoas em local público.
Nessa discussão, há que se ter a clareza do
compromisso institucional com os objetivos fundamentais da República, o combate
ao racismo e "não basta dizer que não é racista, é preciso ser
antirracista", incorporando essa perspectiva nos pareceres e denúncias.
Regra geral, a atuação do Ministério Público tem sido "ratificar os APFDs
com os 'contos da Carochinha' pouco factíveis, mas com sentimento de
justiceiros porque estamos livrando a sociedade de mais um meliante",
esquecendo que assim agindo contrariamos garantias fundamentais.
Ser antirracista perpassa por assumirmos que as
digitais do MP estão no viés racista do atual encarceramento brasileiro, como
Michelle Alexander identifica em sua obra "Nova Segregação Racial": a
"segregação racial é feita pelos juristas". Basta fazer uma inspeção
em qualquer presídio brasileiro ou participar de audiência de custódia em
crimes de tráfico de drogas para constatar que a realidade descrita por ela e
pelo documentário "A 13ª Emenda" (disponível no Netflix) também
refletem a realidade penitenciária brasileira.
A negativa constante dos integrantes do sistema de
justiça de que o pretenso combate às drogas se realiza com claro viés racista e
classista impede a atuação constitucional destes agentes estatais e deve ser
criticada para constranger e tirar da inércia aqueles que ainda resistem a
compreender que o titular da ação penal deve exercer o poder encarcerador
considerando os limites que vêm sendo reiteradamente impostos nos casos
concretos pelo Superior Tribunal de Justiça.
Como
descriminalizar a maconha sem o Estado assumir a venda? Por Lenio Luiz Streck
Depois do juiz das garantias o assunto mais falado
é o da descriminalização da maconha, que está sendo julgada no do Recurso
Extraordinário nº 635659-SP.
O tema é espinhoso. Será tarefa do Supremo Tribunal
Federal decidir sobre a matéria? Trata-se de política pública. Logo...
Mas o tema é urgente. Claro que é. E entendo
(acreditem, muito) as críticas ao Parlamento por não enfrentar o tema.
Inclusive, essas críticas fazem parte da democracia. Só que aceitar o papel
institucional de cada um dos poderes também na democracia tem bônus. E tem
ônus. Tudo afinal se resolve no Judiciário? E se ele errar, para quem
recorremos? É uma questão importante para se ter mente.
Até o momento do pedido de vista do ministro André
Mendonça, temos que há cinco votos a favor da não criminalização do usuário, em
quantidade ainda em aberto.
É um avanço esse resultado dos votos do STF? Sim.
Concordo com a decisão. Porém, temos de reconhecer que se trata de um problema
complexo que pode estar recebendo uma resposta simples. Com efeito, permito-me
apresentar alguns pontos sobre o tema, para reflexão:
1. Inicialmente, para esclarecer o grande público,
a lei penal não fala em maconha; fala em substância entorpecente (artigo 28 da
Lei) e para isso tem a lista da Anvisa — portanto, não existe crime de porte de
maconha; consequentemente, não há descriminalização do uso da maconha, embora o
resultado seja esse;
2. A decisão — até aqui — diz que é inconstitucional
punir o usuário; mas apenas o usuário que compre ou possua até x gramas;
portanto, não é descriminalização total do uso;
3. Portanto, se a decisão é por
"descriminalizar" o porte e uso de de substância entorpecente
(maconha) até uma quantidade (algo em torno de 25 a 60 gramas – ainda será
definido), teremos de enfrentar o que denomino de Fator Jhering (da Luta pelo
Direito): "se tenho direito a uma servidão de passagem, como posso ser
proibido de deixar rastros?"
4. Isto é: se alguém pode possuir e usar, é porque
ele pode comprar; a maconha não é maná que cai do céu; tem de adquirir (ou
receber gratuitamente ou por escambo); se ele pode comprar, deve ser de alguém
que vende; se esse alguém vende algo cujo consumo não é mais criminalizado, por
que cometeria crime de venda de uma coisa que não é crime? Parece algo pueril,
mas qual o sentido de permitir o uso se para usar tem de comprar de alguém que
está proibido de vender — e se fizer a venda, cometerá crime hediondo? Isso é
importante.
5. Na teoria, o usuário já não poderia, há anos,
ser aprisionado por ser simplesmente usuário; o problema é que vem sendo preso
e confundido com traficante. Como assim, "confundido"? Se já
decidimos o resultado do carnaval com décimos de pontos, não temos ainda condições
de saber o que é "bagatela" e distinguir um usuário de um traficante?
Fracassamos a esse ponto? No futebol, até gol anulamos por off side de 2
centímetros (incrível, mas é isso!) e não sabemos a diferença entre usuário e
traficante? Não esqueçamos da "análise exauriente do delegado de polícia
para distinguir usuário de traficante"... Ou seja, ao fim e ao cabo, dá no
mesmo. É a polícia que dirá quem é usuário e quem é traficante: "sujeito
estava em ponto de tráfico e fugiu quando viu a polícia. Foi encontrado com 40
g" — é traficante, ainda que seja pouca a quantidade. Este é o Brasil.
O que estão ensinando nas faculdades? E o que estão
perguntando nos concursos? Portanto, quem garante que os "usuários"
pós-descriminalização de até x gramas não continuarão a ser confundidos com
traficantes? Trocaremos de polícia, MP e PJ? Como olhar o novo com os olhos do
velho?
Observemos o absurdo: um terço da população
carcerária (mais de 200 mil) são presos por tráfico. Isto quer dizer que temos
mais de 200 mil traficantes? Nunca ninguém estranhou esse número de
"traficantes"?
6. Há que se pensar seriamente em colocar à venda
essa substância (e/ou sementes para plantio); ou ainda — e aqui teremos um
grande impasse "lógico" (consumo lícito, venda proibida) — não
considerar crime a venda, o que acarretaria o problema da liberação total.
7. Sem que o Estado forneça a droga (e como isso
seria feito? Lojas oficiais, como em outros países?), o problema persistirá e
poderá até aumentar o “negócio” do tráfico. Explico: não dá para discutir a
despenalização do artigo 28 sem pensar na atividade da venda. Questão de
lógica. Questão conceitual até. Compra pressupõe venda. Pois do jeito que o
Supremo está julgando e vai terminar decidindo, o porte para consumo não será
crime, mas a venda continuará sendo (Fator Jhering). Ou seja, se o
"consumidor" tiver a sorte de comprar e não ser flagrado comprando,
ok, pode usar ou portar a sua substância. Agora se ele for pego em flagrante? O
comprador seria liberado enquanto o vendedor seria preso em flagrante por
tráfico — crime hediondo? Ou se o vendedor estiver vendendo apenas uma pequena
quantidade, como fica?
8. Outra medida para o usuário não depender do
traficante seria a liberação do plantio para uso recreativo. Aliás, a Lei de
Drogas, no art. 2.º, parágrafo único, faculta à União autorizar o uso e plantio
de maconha em determinadas circunstâncias. Permitir que cada consumidor
cultivasse para si, assim como pessoas tem em suas casas boldo, cidreira etc.
Mas teria que autorizar a compra da semente ou como já tem algumas ONGs que
fazem tratamento com cannabis para certas doenças, tal como ansiedade e
epilepsia. Estas poderiam fornecer. De forma controlada…, mas talvez isso
também caia no mesmo ciclo de causalidade (toda cadeia) já posta acima.
9. Em síntese, sem a entrada do Estado — Poder
Executivo no jogo — parece que ficaríamos nesse impasse "comprador
lícito-vendedor ilícito". Parece evidente que a liberação da maconha está
ligada à oficialização via Estado. Para ser para valer. Só assim se combate ao
tráfico.
10. Além de tudo isso, para que seja viável
transformar em não crime o ato de portar e usar substância entorpecente na
quantidade x ou y, teremos de discutir se em determinadas circunstâncias –
drogas pesadas - não se trata de saúde pública e não uma questão de direito
individual.
Eis os pontos para reflexão. Se quisermos liberar o
uso e evitar o massacre carcerário de hoje (e esse parece ser o ponto!), o
Poder Executivo tem de entrar em campo, junto com o Poder Legislativo.
Todo problema complexo que tem uma resposta simples
tem grande possibilidade de ter uma resposta errada.
Fonte: Por Daniela Campos de Abreu Serra, na Conjur
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