Fiori: Novo BRICS sacode a geopolítica global
Mudança
não será brusca: virá em ondas sucessivas e crescentes. Expansão selada em
Joanesburgo consolida desafio político, econômico e simbólico à ordem
eurocêntrica. E, ao contrário do que quis a velha mídia, Brasil teve vitória
diplomática
LEIA A ENTREVISTA:
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Qual a importância história
dsa ampliação dos BRICS, com a entrada da Arábia Saudita, do Irã, da Argentina,
do Egito, dos Emirados Árabes e da Etiópia?
De forma muito curta e direta: a incorporação dos
seis novos membros do BRICS significa uma verdadeira “explosão sistêmica” da
ordem internacional construída e controlada pelos europeus e seus descendentes
diretos há pelos menos três séculos. Mas seus efeitos e consequências mais
importantes não serão imediatos, e irão se manifestando na forma de ondas
sucessivas, e cada vez mais fortes.
Exatamente porque o BRICS não é uma organização
militar do tipo OTAN, nem é uma organização econômica do tipo União Europeia.
Nasceu como um de ponto de encontro – quase informal – e um espaço de
convergência geopolítica e econômica, entre países situados fora do núcleo central
das grandes potencias tradicionais, concentradas sobre o eixo do Atlântico
Norte. Países que não são atrasados, nem, subdesenvolvidos, nem dependentes e
que já são, ou se propõem a ser grandes potências econômicas e políticas dentro
de seus respectivos tabuleiros regionais. Na verdade, o próprio grupo original
do BRICS já inclui três das cinco economias mais ricas do mundo, tomando em
conta o seu “poder de paridade de compras”.
Chamá-los de “sul global’ me parece ser uma forma
anódina e geográfica apenas, de renomear os antigos países do “terceiro mundo”,
na sua maioria ex-colônias europeias. Os números estão sendo amplamente
divulgados e todos já sabem que depois da incorporação dos seis novos sócios o
grupo do BRICS terá mais de 40% da população mundial e cerca de 40% do PIB
mundial, o que por si só já fala da importância deste grupo e de sua ampliação
decidida na reunião de Joanesburgo.
Agora bem ,apesar de que o BRICS tenha tido até
hoje uma postura muito mais propositiva do que contestaria, não há dúvida que
nos anos recentes, devido a belicosidade crescente entre os Estados Unidos e a
China, e devido sobretudo à guerra no território da Ucrânia entre os países da
OTAN e a Rússia, o BRICS acabou sofrendo uma mudança de natureza, tornando-se
uma organização de resistência, sobretudo, com relação às estruturas e
instituições econômicas e financeiras utilizadas pelos EUA e seus aliados
europeus e asiáticos, que operam como verdadeiras armas de guerra nos momentos
de intensificação da competição e de acirramento dos conflitos entre esses
países reunidos no G7 e os demais países que eles agora chamam de “sul global”,
apesar da incorreção geográfica da expressão uma vez que seu principal inimigo
neste momento, a Rússia, encontra-se ao norte de quase todos os países do G7.
Seja como for uma coisa é certa, depois de
Joanesburgo, o BRICS já é um ponto de referência incontornável dentro do
sistema internacional, e dependendo da reação dos Estados Unidos e dos
europeus, poderá se transformar nos próximo anos, num grupo de poder com
capacidade de estreitar cada vez mais o horizonte da dominação euroamericana do
mundo.
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Estão presentes nesse bloco
grandes países produtores de petróleo e alimentos, com populações enormes. O
que isso significa para a disputa global pela energia e pelas commodities
alimentíceas? É possível pensar em uma organização comercial entre esses
atores, a exemplo do que ocorreu, nos anos 1960, com a OPEP?
Não há dúvida que a partir de 2024 o BRICS+ estará
reunindo alguns dos países detentores das maiores reservas de petróleo e gás do
mundo, além de incluir alguns dos seus maiores produtores de grãos e alimentos.
Para não falar dos recursos minerais estratégicos que se concentram nesses
mesmos países, associados às velhas tecnologias nucleares e às novas tecnologia
associadas à computação quântica, à inteligência artificial e a robótica. Mas
não creio na possibilidade de que nasça daí nenhuma nova organização comercial,
até porque seria rebarbativo com relação à OPEP, no caso do petróleo e do gás.
Não creio que seja este o objetivo do grupo, nem
creio que seja necessário para que possam exercer de outras maneiras o seu
poder de influenciar os mercados globais destes produtos. Mas sim creio que o
maior poder e o maio golpe econômico desferido contra os interesses americanos
e do G7 virá por outro lado, e atingirá em cheio o poder monetário e financeiro
do dólar e dos Estados Unidos.
De fato, a reunião de Joanesburgo não criou uma
nova moeda nem discutiu abertamente a criação dessa moeda. Mas de forma discreta
antecipou a substituição do dólar nas transações energéticas entre os
países-membros do grupo e desses países com todas as suas “zonas de
influência”. E este talvez seja o maior golpe desferido até hoje contra a
hegemonia do dólar, desde os Acordos de Bretton Woods, em 1944, e
desde o grande acordo firmado entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, logo
depois da Segunda Guerra Mundial, quando ficou estabelecida e garantida a
intermediação do dólar, em todas as grandes operações do mercado mundial do
petróleo.
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Os BRICS, agora em ampliação
(com a possível adesão futura da Indonésia), serão capazes de fazer um
contraponto ao poder dos EUA e da Europa no mundo? Poderão atuar conjuntamente
também no terreno militar?
Acho que o Brics nunca se tornará uma organização
militar, nem jamais foi ou será este seu objetivo. Do ponto de vista militar, a
aliança estratégica da Rússia com a China, que se consolidou nos dois últimos
anos, já é por si mesma um contraponto ao poder miliar dos EUA e da Europa. E
não creio que China ou Rússia queiram ter qualquer tipo de compromisso com seus
novos parceiros, do ponto de vista de sua defesa mútua, como a Rússia tem, por
exemplo, com a Bielorrusia.
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É possível dizer que essa
articulação é uma derrota importante para os Estados Unidos como potência
hegemônica?
Sem dúvida nenhuma. Por isto mesmo tem aumentado a
cada dia que passa as pressões e promessas do Departamento de Estado,
exatamente em cima do Brasil, da Índia, e da África do Sul, três membros
fundadores do BRICS. Aliás, deste ponto e vista, tem sido patética a
peregrinação recorrente dos senhores Anthony Blinken e John Sullivan, e da
onipresente senhora Victoria Nuland, tentando convencer – sem muito sucesso –
os governos africanos, latino-americanos, ou mesmo asiáticos a apoiarem as
sanções econômicas aplicadas pelos Estados Unidos contra a Rússia, por conta da
guerra na Ucrânia.
Um sinal inequívoco de perda de liderança que se
repetiu agora mesmo no caso do golpe militar do Niger, ocasião em que nem os
Estados Unidos nem os europeus conseguiram, até agora pelo menos, convencer
algumas de sus ex-colônias africanas a invadirem o Niger, ou seja convencê-los
a fazer a mesma coisa que atribuem e criticam na Rússia, com relação à Ucrânia.
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Jornais brasileiros,
provavelmente ecoando a visão estadunidense, disseram que Lula perdeu com essa
ampliação. E que o presidente brasileiro ainda se submeteu aos interesses
chineses. O sr. concorda com essa análise?
Não há nada que sugira que Lula e o Brasil tenham
perdido poder ou influência com a ampliação do BRICS, nem tampouco que Lula
tenha feito algo com que estivesse em desacordo submetendo-se à China ou a quem
quer que seja. Pelo contrário, minha impressão é que ele conseguiu recuperar
pelo menos em parte o que o Brasil perdeu e se submeteu durante os governos de
Temer e Bolsonaro.
Uma coisa completamente diferente é compreender que
o Lula sozinho não tem como transformar o Brasil do dia para a noite numa
potência equivalente à China, ou mesmo à Índia, do ponto de via econômico e
tecnológico, ou mesmo à Rússia, do ponto de vista militar. Estes países lutaram
muitos anos para chegarem a ser potências com capacidade de projeção de sua
influência a escala global. O que esta reunião deixou claro é que o Brasil
precisará ainda de tempo para chegar onde eles chegaram.
Os demais dão sinais inequívocos de que respeitam o
presidente brasileiro e sua liderança ética e carismática mundial, mas isto não
muda do dia para a noite a visão que o mundo construiu do Brasil ao ver sua
elite política e econômica entregar o seu país e o Estado brasileiro (como está
se vendo agora) nas mãos de uma quadrilha de pequenos escroques e ladrões de
carteira. E ainda mais, ao saber agora da participação que tiveram membros
destacados das FFAA brasileiras em toda a corrupção e em todas as tratativas
golpistas de um presidente que veio das suas próprias fileiras.
O que essa imprensa não consegue entender é que o
Brasil saiu da reunião de Joanesburgo do tamanho que tem hoje no mundo, o
tamanho com que ficou depois de seis anos de destruição do seu Estado e de sua
política externa, corrigido até onde foi possível, e até agora, pelo trabalho
incessante da política externa brasileira e pela liderança mundial conquistada
pelo presidente Lula.
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Outra crítica frequente é a
de que os novos integrantes do bloco são “ditaduras”. Qual sua visão sobre esse
ponto?
Esta separação e polarização entre países
democráticos e autoritários foi uma ideia da política externa do governo Biden
que não teve maior repercussão internacional. Basta olhar para as duas reuniões
que Joe Biden organizou com o objetivo de mobilizar a opinião pública mundial e
que foram um absoluto fracasso. Mas o mais importante aqui não é isto, é apenas
que o BRICS nunca se propôs a ser um grupo de países democráticos, nem muito
menos um grupo missionário pregador da fé na democracia. Trata-se de um grupo
pragmático e que tem por princípio a ideia chinesa do respeito absoluto pela
autonomia política e cultural de cada um de seus membros e dos seus povos.
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Há algum paralelo entre os
Brics e o Movimento dos Não Alinhados?
Acho que não. São propostas e organizações que
nasceram em momentos geopolíticos muito diferentes. O Movimento dos Não
Alinhados nasceu à sombra da Guerra Fria e da polarização mundial entre o mundo
socialista e os países capitalistas ocidentais. Foi um enfrentamento e uma
bipolarização com forte conotação ideológica e dimensão global. Já o BRICS
nasceu em um mundo que se fragmenta cada vez mais e que é cada vez mais
intolerante com relação a todo e qualquer tipo de polarização do sistema
mundial.
E agora está se expandindo no espaço aberto
justamente pela perda de liderança de liderança dos europeus e dos
norte-americanos, sobretudo depois do fracasso de sua tentativa de
universalizar suas sanções econômicas contra a Rússia. Afinal, alinharam-se com
os Estados Unidos e a Otan um grupo de apenas 30 ou 40 países, uma minoria
dentro do sistema das Nações Unidas. O objetivo das sanções era isolar e
enfraquecer economicamente a Rússia, mas acabou isolando o G7 e enfraquecendo
a\ economia europeia, que já foi ultrapassada em poder de compra pela própria
Rússia, apesar de que este país esteja sob o mais intenso ataque econômico
jamais desfechado contra qualquer outro país do mundo, em qualquer tempo da
história.
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Esse movimento dos Brics tem
impacto sobre a guerra na Ucrânia?
Eu acho que a ordem dos fatores é inversa. A
simples invasão e resistência russa dentro do território da Ucrânia, frente à
mobilização e intervenção direta dos Estados Unidos e de todos os países sócios
da OTAN, já rompeu com a “ordem mundial” estabelecida pelos Estados Unidos e
seus aliados depois do fim da Guerra Fria.
Além disso, a guerra na Ucrânia acelerou a formação
de uma aliança estratégica entre a Rússia e a China, que deu alguns passos
diplomáticos gigantescos à sombra da própria guerra, na direção do
estreitamento de suas relações econômicas e estratégicas e do alargamento de
sua influência sobre o Oriente Médio e a África. Incluindo esta expansão
recente e bem-sucedida do Brics.
As próprias sociedades europeias estão começando a
se dar conta e reagir frente ao fato de que os Estados Unidos estão se
comportando cada vez mais na defensiva, e atuando de forma completamente
reativa, frente à inciativa militar russa, e frente à iniciativa econômica
chinesa. Neste sentido, já se pode mesmo dizer que a guerra na Ucrânia apressou
o declínio da hegemonia cultural dos valores europeus, e vem encolhendo
significativamente o poder do império militar global dos Estados Unidos.
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E sobre a entrada da
Argentina no Brics. Quais as consequências e quais seus prognósticos?
Considero a entrada da Argentina no Brics uma
vitória diplomática do Brasil, e um passo extremamente importante na construção
de uma “zona de coprosperidade” na Bacia do Prata. Uma decisão e um passo cujos
efeitos, entretanto, deverão se dar ao longo do tempo, não de forma imediata.
Mas não há como enganar-se: este estreitamento da aliança entre o Brasil e a
Argentina, como prognosticou o geopolítico americano Nicholas Spykmen, já
em1944, será visto hoje como já foi no passado como uma “linha vermelha” para
os interesses dos EUA e de sua rede de apoios dentro do continente.
E muito mais ainda, neste caso, em que este
estreitamente ocorre dentro de uma organização liderada economicamente pela
China, e que conta ainda com a participação do grande “demônio do ocidente”
neste momento, que é a Rússia. Desse ponto de vista, é necessário olhar com
cuidado para o futuro imediato, porque se as próximas eleições presidenciais
argentinas não forem vencidas pelas forças de extrema-direita contrárias à
participação da Argentina no Brics, não é impossível que a Argentina entre na
linha tiro das chamadas “guerras híbridas” que vão mudando governos e regimes
ao redor do mundo que são considerados inimigos ou obstáculo para o projeto de
poder global euroamericano.
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Essa expansão do Brics
assinala um passo importante na conquista chinesa de uma liderança global?
Tudo indica que a China não se propõe a substituir
os Estados Unidos e seus aliados europeus como centro hegemônico do sistema
mundial, pelo menos na primeira metade do século XXI. Nem tampouco a Rússia tem
possibilidade de alcançar este objetivo. Mesmo assim, a aliança entre a força
militar russa e o extraordinário sucesso tecnológico e econômico da China deve
ter um impacto “exemplar” sobre o resto do mundo. Muito mais agora em que a
China assumiu de forma explicita e declara a liderança de um projeto
“desenvolvimentista global” (ocupada pelos EUA depois da II GM), propondo a
construção de um “mundo inclusivo” e de soma positiva entre todos os povos do
universo, sem exclusão do Atlântico Norte.
Como se pode observar na própria estratégia de
expansão do Brics, já agora trazendo para dentro da organização representantes
de todas as grandes civilizações que dominaram o mundo até o século XVII, e que
depois disto foram deslocadas, derrotadas ou submetidas pela expansão vitoriosa
do colonialismo europeu, que na segunda metade do século XX foi substituído
pelo império militar e financeiro global dos Estados Unidos. Como já dissemos,
esse império está se enfrentando com seus limites, esses limites estão
aumentando, mas isto não significa automaticamente que a China vá substituir de
imediato esta posição de liderança global.
Ø Brics expandido, e agora? Novos desafios para a política externa
brasileira. Por Ana Garcia e Pablo Ibañez
A primeira cúpula presencial de chefes de Estado
dos Brics após a pandemia teve lugar na capital sul-africana neste agosto de
2023, com a marcante ausência de Vladmir Putin, indiciado pelo Tribunal Penal Internacional. Este fato reforça a dimensão
geopolítica do agrupamento Brics, que ficou ainda mais evidente depois da
eclosão da Guerra da Ucrânia. A agenda prioritária comum já não é mais apenas a
de reforma das instituições financeiras multilaterais, mas sim a de construir
novas alianças e criar novas instituições que possam resultar em um mundo
“multipolar”, conforme os discursos recorrentes de seus líderes.
A discussão sobre a diminuição da dependência
do dólar, a criação de mecanismos de comércio e crédito em
moedas locais e mesmo a proposta de uma possível moeda comum foram outro ponto
alto nessa discussão, porém sem avanços concretos. A declaração final se
limitou a encorajar transações financeiras e comerciais e reforçar redes
bancárias para descontar em moedas locais. Os bancos centrais e ministérios das
finanças ficam encarregados de considerar emissões e plataformas de pagamento
desdolarizadas e reportar de volta aos governos. Diante dos enfáticos discursos
de líderes que precederam a cúpula, os resultados imediatos ainda são tímidos.
Essa é uma questão técnica e política complexa que levará tempo e esforço para
avançar. Será necessário monitorar como se posicionam não apenas governos,
mas bancos
privados, empresas multinacionais e demais fundos
financeiros dos Brics, que operam e se beneficiam das transações em
dólar.
A declaração
final da cúpula terminou com o convite à entrada de
seis novos membros: Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos,
Etiópia e Irã. Foram incluídos, de um lado, um aliado histórico dos EUA no
Oriente Médico – a Arábia Saudita – e de outro, o Irã, que sofre sanções dos
americanos. Recentemente, sob mediação
da China, ambos retomaram relações diplomáticas. A
declaração final afirmou, ainda, que a efetivação desses países como membros
plenos deverá se realizar a partir de 1 de janeiro de 2024, dando, portanto,
seis meses para que o processo se complete. A expansão é, e sempre foi, uma
agenda chinesa: o país asiático promoveu a entrada da África do Sul em 2011,
sem restrições, naquele momento, dos outros membros. Em 2023, a agenda foi
bem-sucedida, afinal, atendia em grande medida também os interesses da Rússia.
A entrada de dois países africanos foi bem acolhida, sendo o Egito já membro do
Novo Banco de Desenvolvimento, e a Etiópia o país sede da União Africana, que,
em 2021, constituiu uma Área Continental de Livre Comércio (AfCFTA).
Índia e Brasil foram resistentes, até então, ao
processo de expansão, e buscavam ganhar tempo ao discutir critérios e
velocidade de escolha dos novos membros. Ambos claramente sucumbiram ao aumento
da proeminência chinesa e, em menor grau, russa no grupo. A posição da Índia
foi fortemente pressionada pela Arábia Saudita. É relevante ressaltar que o
país está envolvido em um jogo geopolítico complexo, uma vez que é parte
do Quadilateral Dialoge (QUAD), grupo que envolve os EUA e que
tem como objetivo conter a influência chinesa no Indo-Pacífico. A Índia é
parceira comercial relevante da Rússia, maior compradora de armas do
país.
No caso do Brasil, podemos observar clara diferença
nas posições: de um lado, os operadores da política externa – no Itamaraty e
outras agências federais – apontavam para dificuldades de chegar a consensos
diante de países tão díspares; de outro lado, as visões do embaixador Celso Amorim,
hoje secretário especial para assuntos internacionais, e do próprio presidente
Lula, indicavam vantagens para o Brasil, no longo prazo, em ter um BRICS forte
e expandido. Nessa negociação, o trade off seria a posição
mais assertiva da China e da Rússia para uma reforma do Conselho de Segurança
das Nações Unidas. Os EUA já haviam sinalizado positivamente para um diálogo
nesse sentido e, com uma possível aderência dos dois parceiros Brics, a busca
do Brasil por um assento no Conselho poderia ganhar mais força. Vale notar que
as discussões sobre a reforma do Conselho acontecem na Assembleia Geral da ONU,
que já está em andamento e poderá também beneficiar o pleito da Índia e do
Japão por um assento, o que não é de interesse da China. A declaração final da
Cúpula avançou no sentido desejado pela diplomacia brasileira: afirmou o apoio
à reforma abrangente das Nações Unidas para incluir representantes dos países
em desenvolvimento no Conselho de Segurança – Brasil, Índia e África do Sul.
Por sua vez, a entrada da Argentina, apoiada pelo
Brasil, fortalece a América do Sul nos Brics. Vivendo uma crise econômica que
se arrasta por décadas, o país enfrenta um contexto eleitoral muito adverso. Na
contramão à adesão aos Brics, o candidato de extrema direta Javier Milei
ameaça afastar a
Argentina da China, além de dolarizar por completo sua economia,
precisamente no momento em que os Brics discutem formas de desdolarização. A
sinalização positiva para o país sul-americano aparece como uma tentativa
indireta de influenciar o cenário eleitoral e oferecer alternativas à
Argentina, que hoje tem fechado seu acesso aos mercados de crédito
internacional e voltou-se à China e, em menor grau, ao Brasil para ajudar a
alavancar sua economia. O Brasil ofereceu, ainda, um mecanismo de financiamento
do comércio com a Argentina por meio da moeda chinesa yuan, através do apoio à
exportação do Banco do Brasil, que usaria sua
subsidiária na praça financeira de Londres para compensar yuan por reais e
realizar a operação.
Podemos afirmar que, ao mesmo tempo em que os Brics
dão um importante passo geopolítico, buscando maior balanceamento de poder
internacional frente às potências tradicionais, aumentam também as contradições
sociais e ambientais dentro do bloco e, consequentemente, os desafios para a
política externa brasileira. No que tange aos esforços
para acelerar a transição energética no mundo,
agora o bloco se torna um “Brics fóssil”. Afinal, seus membros estão entre os
maiores produtores de fontes fósseis de energia, e parece pouco plausível que
projetos e ações nessa linha tenham centralidade nas propostas do
bloco.
Já os temas relacionados a direitos trabalhistas,
melhoria no tratamento das questões de gênero e lutas sociais devem ficar
enfraquecidos com a entrada de membros mais conservadores. São países que ainda
guardam grandes desigualdades sociais e de gênero, com elites políticas e
econômicas claramente contrárias a avanços nessa área. Vale lembrar que foi
durante a gestão Bolsonaro que o Brasil
votou, nas Nações Unidas, junto com países mulçumanos
conservadores contra direitos humanos e de gênero. Para o novo
governo Lula, que busca avançar uma agenda social e
democrática, isso poderá representar um grande desafio.
Enquanto os chefes de Estado dos Brics se reuniam a
portas fechadas em um retiro, com forte esquema de segurança em Joanesburgo,
cerca de 150 representantes de movimentos sociais de base, organizações não
governamentais e de comunidades atingidas se reuniam na Universidade de
Joanesburgo, no chamado “Brics from
below”. Apesar do caráter evidentemente africano do
encontro, quase não havia representantes de organizações sociais de outros
países-membros, o centro do debate transcendeu a região, incluindo as lutas por
justiça climática e contra os megaprojetos fósseis e extrativos nas áreas de
petróleo, mineração e metalurgia, com fortes impactos sociais e ambientais nos
territórios onde são implementados. Dois desses projetos tiveram destaque entre
os protestos, a Zona
Econômica Especial de Musina Makhado, liderada pelos
chineses, na província de Limpopo, na África do Sul, que está em vias de
implementação e aponta forte impacto socioambiental; e o Oleoduto de petróleo bruto da África Oriental, que atravessa Uganda e outros países
africanos, construído pela francesa Total em parceria com a CNOOC e
financiamento do Standard Bank. Representantes de comunidades locais atingidas
por esses empreendimentos estavam presentes e buscavam visibilidade para suas
lutas.
Sob forte especulação de esvaziamento e perda de
força dos Brics, o que ocorreu na África do Sul foi uma demonstração de força e
maior protagonismo chinês, além de uma expansão que certamente trará grandes
mudanças para o futuro do grupo. Três dos países-membros – Índia, Brasil e
África do Sul – sediarão os próximos encontros do G20, as vinte maiores
economias do mundo, em 2023, 2024 e 2025, respectivamente. Frente a um Brics
expandido, será a vez do Brasil, Índia e África do Sul retomarem o IBAS?
Será necessário o acompanhamento minucioso de seus desdobramentos futuros.
Fonte: Tutaméia/Le Monde
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