O retorno do Brasil ao desenvolvimento internacional sob Lula 3.0
A
participação do Presidente Lula na XV Cúpula dos BRICS em Joanesburgo nesses
dias de agosto, com ênfase na afirmação de que “o Brasil está de volta” como
parceiro dos países africanos, destacou até que ponto o compromisso renovado da
política externa do seu governo com o Sul Global coloca um foco importante nos
países africanos, além dos vizinhos latino-americanos.
O envolvimento do Brasil em blocos políticos
regionais e globais tem sido retomado nesses primeiros meses do terceiro
governo de Lula. Além dos BRICS e do G20, para os quais se espera maior
participação dos países latino-americanos, o Brasil voltou a se engajar com o
bloco regional da América Latina e Caribe, a CELAC, tentou revigorar a UNASUL e
trabalhou para fortalecer o bloco económico regional do Mercosul com vistas à
retoma das negociações comerciais com a União Europeia e às relações comerciais
da região com a China.
A África ocupa uma posição importante nesta nova
política externa brasileira. No plano da política interna, o fortalecimento das
relações Brasil-África é visto como uma forma de lidar com a própria identidade
e as questões sociais e raciais do Brasil, além de preservar a memória de suas
origens culturais e históricas. Como o próprio Lula disse durante um seminário
sobre a revitalização das parcerias Brasil-África realizado no Itamaraty em maio último, “O relançamento da relação
com a África é um reencontro do Brasil consigo mesmo”. Ao mesmo tempo, a
política externa brasileira para a África também tem sido tradicionalmente formulada
como um meio pragmático de diversificação de parcerias para superar
dependências econômicas estruturais, apoiar o desenvolvimento nacional e
assegurar uma posição autônoma no sistema internacional.
Alguns desses compromissos novos ou renovados refletem
as prioridades políticas específicas que Lula anunciou para seu governo,
incluindo ações internacionais para combater a fome e as mudanças climáticas, e
particularmente a necessidade de reduzir o desmatamento das florestas
tropicais.
A ênfase no combate à fome tem sido uma bandeira do
governo de Lula e deve ser anunciada na sua participação na Cúpula da
Comunidade das Nações de Língua Portuguesa (CPLP) na ilha de São Tomé e
Príncipe no próximo dia 27 de agosto – precedida do apoio oficial brasileiro à Reunião do
Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSAN) da Comunidade. Lula também declarou sua intenção de aproveitar a presidência
brasileira do G20 (com início previsto para dezembro de 2023) para pressionar
por uma Aliança
Global contra a Fome e a Insegurança Alimentar e Nutricional como forma de
enfrentar as desigualdades com responsabilidade climática.
·
Obstáculos no caminho de
Lula para a liderança global na luta contra as mudanças climáticas?
A Cúpula da
Amazônia realizada no início deste mês em Belém do
Pará, que é também o local proposto para a cúpula climática (COP30) em 2025,
foi um esforço para definir uma política comum para o desenvolvimento
sustentável da região como um todo. Embora tenha conseguido importantes
compromissos conjuntos dos oito países amazónicos, não conseguiu satisfazer as
expectativas sobre a Cúpula em diversas áreas.
Esperava-se que a cúpula enfatizasse a importância
da participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia,
cujos territórios têm sido estratégicos como contenção do desmatamento nos
últimos anos, apesar da violência intensificada a que foram submetidos durante
o governo Bolsonaro e da ameaça contínua de enfraquecer a base legal para o
reconhecimento dos seus direitos à terra por parte do lobby do agronegócio no
Congresso do Brasil (mais recentemente através do mecanismo conhecido como Marco Temporal. No entanto, os principais líderes indígenas (incluindo
o cacique Raoni) ficaram frustrados com a falta de oportunidades
para participarem diretamente na Cúpula dos presidentes. Além disso, o
calendário dos diálogos com a sociedade civil que precederam a cimeira tornou
impossível para os governos participantes aceitarem as recomendações dos mais
de 400 eventos paralelos organizadas por grupos da sociedade civil, uma vez que
no momento em que estas atividades tiveram lugar o conteúdo da Declaração
de Belém já havia sido negociado.
Divisões internas dentro do governo brasileiro
sobre propostas
de exploração de petróleo na foz do Amazonas também
deixaram Lula incapaz de se alinhar ao compromisso de acabar com a extração de
combustíveis fósseis na região proposto pelo presidente colombiano Gustavo
Petro, que fez o governo brasileiro ser alvo de críticas
dos especialistas em política climática.
Igualmente importante, essa Cúpula pode ter sido
uma oportunidade
perdida para explorar o nexo entre questões alimentares e ambientais, promovendo a concretização do direito humano à alimentação adequada
(DHAA) das comunidades amazónicas com acesso a alimentos saudáveis,
sustentáveis e culturalmente apropriados, como meio de proteger e, até mesmo,
de regenerar a biodiversidade florestal, e de salvaguardar a biodiversidade
tradicional. Tendo em vista a riqueza de experiências locais e inovações
políticas nestas questões, o Brasil poderia ter enfatizado esta temática como
um terreno fértil para novas propostas de Cooperação Sul-Sul (CSS). No entanto,
apesar da alta visibilidade política da agenda verde, as iniciativas ambientais
e climáticas ainda não ocupam um lugar de destaque no portfólio de CSS do
Brasil.
Finalmente, Lula não foi capaz de capitalizar o
notável sucesso do seu governo na redução do desmatamento nas regiões
amazônicas do Brasil – o que
também não foi feito no bioma Cerrado, que está seriamente ameaçado – para garantir um acordo em nível regional e alcançar o
desmatamento zero em toda a Amazônia. O compromisso conjunto de acabar com o
desmatamento até 2030 teve de ser retirado do comunicado final em razão
da discordância da Bolívia. Dado que combater o
desmatamento e preservar a biodiversidade das florestas tropicais é o objetivo
declarado de uma aliança
tripartite estabelecida por Brasil, Indonésia e República Democrática do Congo, será importante monitorar se essa dificuldade em garantir a unidade
entre os vizinhos amazônicos do Brasil reduzirá a credibilidade de Lula como
organizador da ação coletiva entre países com alta biodiversidade na África e
na Ásia.
·
Cooperação Sul-Sul para a
justiça alimentar: velhos desafios e novos compromissos?
A Segurança Alimentar e Nutricional ocupou um lugar
de destaque entre as prioridades setoriais da CSS brasileira entre 2003 e 2016,
durante o período anterior do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) de
Lula, e permaneceu
como tema importante na agenda do Brasil desde então, inclusive no governo
Bolsonaro. Além disso, a CSS em segurança alimentar e
nutricional tem cada vez mais dado ênfase em esforços conjuntos (tanto no
cenário internacional quanto nacional) para fortalecer um dos pilares da
estratégia brasileira do Fome Zero que é o alinhamento
da oferta e da demanda de alimentos para criar um ciclo virtuoso no combate à
fome e à pobreza.
Embora existam muitos fatores que favoreçam um novo
engajamento do Brasil na CSS – incluindo o potencial para aproveitar as agendas
políticas domésticas inovadoras do país sobre gênero e equidade
racial – existem vários gargalos que devem ser
enfrentados para atender às expectativas levantadas pelas promessas
presidenciais.
Alguns dos desafios atuais enfrentados pela CSS do
Brasil não coincidem com aqueles da sua “era de ouro” há mais de uma década. Em
particular, o contexto interno do país é muito menos favorável, porquanto é
marcado por restrições orçamentárias e grandes desafios sociais e econômicos, o
que é agravado por uma forte oposição do Congresso Nacional às propostas do
governo.
Outros desafios não são novos. Uma questão
importante de longa data é a ausência de um marco legal específico para a
cooperação internacional para o desenvolvimento, cuja ausência dificulta a
capacidade de a CSS brasileira ganhar coerência, escala e sustentabilidade. Um
projeto de lei para regulamentar as várias modalidades de cooperação
internacional brasileira está parado desde antes da eleição de Bolsonaro e
dependendo da aprovação do poder legislativo.
Um outro desafio de longa data é a tendência
“isolacionista” do Itamaraty. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil há
muito busca seguir seu próprio caminho e resiste aos esforços para democratizar
a tomada de decisões em questões da agenda externa, incluindo as iniciativas de
CSS. Há sinais promissores de que o novo governo de Lula promova a participação
da sociedade civil na formulação de políticas, incluindo o recente
estabelecimento do Sistema e
Conselho de Participação Social com vários
mecanismos e espaços participativos importantes incluindo o Itamaraty. No
entanto, embora o Itamaraty tenha instituído sua Assessoria de Participação
Social, há poucos indícios concretos de que o ministério como um todo esteja
interessado em caminhar nessa direção e abandonar sua tradição insular, já que
essa participação
tem sido caracterizada como difusa, discricionária e baixo grau de formalização.
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O retorno do Brasil à
África? Da retórica à realidade
Com isso, fica claro que, embora haja renovação do
compromisso do Brasil com a Cooperação Sul-Sul em geral e do trabalho com as
nações africanas para combater a fome e as mudanças climáticas em particular
seja um desenvolvimento muito bem-vindo neste momento conturbado da crise do
multilateralismo, a CSS brasileira terá de enfrentar a alguns desafios se
quiser cumprir com sua promessa, tanto no nível nacional quanto
internacional.
Além de enfrentar os desafios internos acima
descritos, os tomadores de decisão brasileiros terão de mostrar que compreendem
que tanto o continente africano quanto o panorama da cooperação internacional
para o desenvolvimento mudaram muito desde que Lula esteve no palco mundial da
última vez.
O cenário contemporâneo do desenvolvimento
internacional está muito mais fraturado pela geopolítica do que era durante o
primeiro período de Lula no governo (2003 a 2010). Embora essa época tenha sido
marcada por um interesse crescente dos países da OCDE (Organização para a
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) em aliar a Cooperação Norte-Sul e a
Cooperação Sul-Sul, agora isso tem sido ofuscado pela polarização e suspeita
mútua entre a China, parceira do Brasil no BRICS e seu mais importante parceiro
comercial, e os EUA e a União Europeia. A invasão da Ucrânia pela Rússia, outro
país dos BRICS, intensificou as clivagens Norte-Sul e Leste-Oeste, e as tentativas
de mediação por parte do Brasil e da União Africana tiveram pouco
resultado.
Entretanto, a própria África mudou muito desde a
última vez que o Brasil se tornou visível como um interveniente significativo
no continente. Como Stephen Devereux destacou na sua contribuição para um workshop recente organizado pelo IDS,
Articulação Sul e Centro para o Desenvolvimento Sustentável da Universidade de
Brasília, a África demonstrou grande capacidade de inovação
em alguns campos-chave onde o Brasil perdeu dinamismo político ao longo da
última década, incluindo a proteção social. Isto significa que a CSS brasileira
terá de demonstrar que o seu compromisso com o princípio da aprendizagem mútua
é mais do que apenas falar da boca para fora, e que o país está genuinamente
interessado em aprender com as inovações nos países parceiros africanos, mesmo
em áreas onde tradicionalmente se vê como um país ‘exportador de
políticas’.
Os países africanos que têm um histórico de
cooperação com o Brasil – como Moçambique – também se tornaram muito mais
seletivos nas suas parcerias, em um contexto marcado por intensa competição de
influência entre Estados e corporações norte-americanos, europeus, chineses,
indianos e russos. Com a retirada de grandes empresas brasileiras, como a Vale,
de importante frentes de extração de minérios e combustíveis fósseis, como a
jazida carbonífera de Tete, em Moçambique, e a retração do financiamento do
BNDES para projetos de construção na África, o Brasil perdeu grande parte do
peso econômico que complementava sua capacidade de cooperação técnica e sua
credibilidade política como parceiro de cooperação para o desenvolvimento
durante os mandatos anteriores de Lula.
Se o Brasil será capaz de reconstruir essa
credibilidade técnica e política depende da sua capacidade de combinar
inovações em políticas públicas – inclusive em setores menos tradicionais, como
é o caso das mudanças climáticas – com a demonstração do sincero compromisso de
aprendizagem mútua com seus parceiros africanos. Ao mesmo tempo, a arquitetura
institucional da CSS brasileira – e em particular o seu órgão de coordenação, a
Agência Brasileira de Cooperação (ABC) – precisará desenvolver-se rapidamente
se quiser estar à altura do desafio de atender às altas expectativas que foram
levantadas pelo retorno de Lula ao cenário mundial.
Fonte: Por Alex Shankland, Melissa Pomeroy e Marina
Caixeta, no Le Monde
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