Das amas de leite aos dias de hoje, os desafios da amamentação negra
O ato de amamentar é altamente histórico e social,
pois depende das circunstâncias que rodeiam a lactante: depende do acesso ao
trabalho formal com possibilidade de tirar licença-maternidade, da estrutura
familiar que dá suporte para que a lactante tenha tempo disponível, da saúde da
pessoa lactante… São muitos os fatores que envolvem a amamentação e a ausência
dela. Se falarmos de raça e amamentação, o cenário se torna ainda mais
complexo.
No Brasil, mulheres negras escravizadas eram
forçadas ao trabalho de amas de leite, que consistia basicamente em cuidar,
amamentar e acalentar o filho dos senhores escravocratas, às custas, muitas
vezes, da saúde de seus próprios filhos. Mães pretas para vender e alugar, como
anunciava o Jornal do Commercio, nas citações da tese de doutorado de Maria
Elizabeth Ribeiro Carneiro (UnB), sobre o que significava ser ama de leite no
Rio de Janeiro do século 19:
# Vende-se uma crioulla de 18 anos de idade, sem o
menor defeito, muito ellegante e propria para ama de leite por ter um filho
recemnascido: lava, engomma e cozinha perfeitamente, rua da Alfândega n. 251,
sobrado.
# Aluga-se para ama de leite, uma preta de 17 dias
de parto, com uma filha, muito carinhosa, garantindo-se a sua boa conducta, na
rua da Candelária n.27.
# Aluga-se uma parda escura, para ama de leite,
muito carinhosa, de bom comportamento, com leite de seis dias, em casa da
parteira Meirelles, travessa das partilhas n.10, sobrado.
A amamentação para pessoas negras carrega uma série
de significados e atravessamentos, muitos deles violentos. Para além do
empobrecimento da população negra, que gera uma série de agravamentos de saúde
para quem amamenta e para quem é amamentado, soma-se a carga histórica e
cultural racista de que mulheres negras são mais fortes do que outras, que
pessoas negras não sentem dor. Essas e muitas outras crenças fazem parte do que
chamamos de Racismo Obstétrico. Enquanto fenômeno estrutural que promove a
desigualdade em favor de pessoas brancas e em detrimento de pessoas negras ou
indígenas, o racismo começa antes da pessoa chegar ao mundo. Durante a
gestação, no pré-natal ou na falta de assistência, o racismo já está presente
limitando as possibilidades de quem ainda nem nasceu.
O Racismo Obstétrico se caracteriza como qualquer
ação referida a uma pessoa que configure numa violência, negligência ou
discriminação baseada em desigualdade de gênero ou raça. Os episódios de
violência podem ocorrer em diferentes situações durante as consultas do
pré-natal, no parto, no período do puerpério, durante a assistência na
amamentação ou na assistência ao aborto, segundo o Pequeno Manual de
Antirracismo Obstétrico, uma publicação realizada pela vereadora do Rio de
Janeiro Thais Ferreira e a equipe de sua MãeData. São exemplos de Racismo
Obstétrico negar a presença de acompanhante, não oferecer analgesia para
realizar procedimentos dolorosos, negligenciar queixas e informações trazidas
pela gestante, fazer comentários pejorativos sobre a cor, traços ou
características da gestante ou do bebê.
A amamentação negra tem especificidades e
necessidades diversas, muitas vezes invisíveis para quem está ao redor. O tema
surgiu como pauta pela primeira vez em 2012, nos Estados Unidos, a partir da
Black Breastfeeding Week (Semana de Amamentação Negra), criada por Kimberly
Seals Allers, Kiddada Green e Anayah Sangodele-Ayoka, três mulheres negras, com
o propósito tanto de incentivar e apoiar mães negras no processo de amamentação,
quanto de visibilizar a experiência nos serviços de saúde. Aqui no Brasil, a
Semana de Apoio à Amamentação Negra é realizada por Fernanda Lopes, psicóloga e
consultora em amamentação, e Tiacuã Fazendeiro, pediatra.
É necessário e importante que a discussão em torno
da amamentação aconteça no âmbito coletivo, com consciência sobre as
implicações dos processos sociais sobre o ato de amamentar. Tratar a
amamentação como algo ligado ao sentimento da mãe pelo bebê é individualizar
uma responsabilidade que é essencialmente coletiva.
Fonte: IstoÉ
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