Tarcísio,
a nova cara da ultradireita brasileira?
Governador
de SP sintetiza um dos possíveis futuros da ultradireita: implosão do Estado
social e truculência policial, legitimados pela religião. Com o avanço das
desigualdades, estes fatores serão cada vez mais necessários para proteger as
“ilhas de riqueza”.
Cena
1: alunos apanham da Polícia Militar durante sessão em que os deputados
paulistas aprovaram o projeto de lei que permite a criação da escola
cívico-militar em São Paulo. Em tempos normais, seriam imagens escandalosas,
mas apenas os integrantes das bolhas progressistas parecem chocados. Muitos
apoiam um projeto pedagógico militarizado, como se o aprendizado dependesse de
disciplina e de obediência.
Cena
2: o governo de São Paulo sabota o bem-sucedido programa de câmeras em
uniformes das PMs, que vinham reduzindo a letalidade da corporação. A decisão
ocorre depois de duas operações policiais matarem 74 pessoas na Baixada
Santista. A iniciativa do governo parece passar um recado claro: a violência
fardada não deve ser contestada nem controlada por ser capaz de eliminar ou
amedrontar os bandidos e assim produzir ordem e sujeição.
Não
adianta acusar a imoralidade ou a disfuncionalidade do método, que na história
recente vem contribuindo para fortalecer as facções e as milícias. Trinta e
dois anos atrás, o massacre do Carandiru, o mais letal da história paulista,
deixou 111 mortos. Em vez de intimidar o crime, a chacina estimulou reação e
revolta. Foi a semente do Primeiro Comando da Capital (PCC), a facção criminal
mais poderosa de São Paulo, criada no ano seguinte, com um discurso de união
dos presos como resposta à covardia do Estado. No Rio, a letalidade da polícia,
que sempre andou junto com a corrupção, originou as milícias.
Cena
3: lideranças da política, da economia e da sociedade civil passam a apontar o
nome de Tarcísio de Freitas como representante da direita para disputar a
eleição presidencial de 2026. Editorais de jornais tradicionais elogiam seus
planos vazios de ajustes de gastos, como se uma alegada racionalidade econômica
pudesse se sobrepor à barbárie das crenças políticas do governador forjadas no
bolsonarismo. Nesse período, o governador publicou um decreto liberando as
entidades religiosas da cobrança de ICMS sobre bens importados, desde que
destinados à “finalidade essencial” das igrejas.
Armas,
dinheiro, religião e poder. O projeto de futuro da extrema direita para o
Brasil segue popular, mesmo sem a presença histriônica de Jair Bolsonaro. Com
Tarcísio de Freitas, a lógica por trás desses planos fica mais clara, em
resposta a um novo ciclo político autoritário que atinge não apenas o Brasil,
mas diversos países do mundo.
Nesse
cenário, o otimismo em torno do papel do Estado como condutor do
desenvolvimento saiu do imaginário político. Alcançou seu auge no Pós-guerra,
perdeu força nos anos 1980 e se fragilizou com a derrocada dos regimes
socialistas. No Brasil, o papel do Estado na garantia dos direitos sociais e
civis, em uma sociedade de mercado, seguiu como referência importante nas
décadas de 1990 e 2000, tendo como inspiração as sociais-democracias europeias.
Essa
crença forjou as diretrizes ideológicas dos partidos progressistas da Nova
República. PT e PSDB se formaram depois da ditadura, a partir de nomes vindos
dos movimentos sociais, sindicatos e universidades. Seus líderes apostavam que
a retomada da democracia poderia criar mecanismos para que os pobres votassem
em políticos que representassem seus interesses de classe, criando, quem sabe,
uma sociedade menos desigual e mais justa. O liberalismo e a direita ficaram
sem discurso, diante do tamanho do passivo social. Restava aos seus
representantes se aliar ao governo da vez.
A
defesa da violência policial, contudo, se fazia presente na desfaçatez e
omissão dos governantes diante dos abusos das polícias. Era defendida de forma
explícita apenas por políticos nanicos, como Bolsonaro, que tinham votos, mas
não eram levados a sério e não disputavam cargos majoritários.
Esse
otimismo com o papel do Estado e da política se esvaiu ao longo dos anos. O
Estado não conseguiu produzir a justiça social almejada. Nas cidades, o valor
da vida se revelou proporcional a quanto se ganha. Sem dinheiro, não era
difícil perceber, não havia segurança, moradia, saúde, educação, higiene, e
muito menos respeito. O mercado e a capacidade de ganhar dinheiro se
consolidaram como a única solução viável para enfrentar a miséria. A luta se
tornou mais individual do que coletiva.
Esse
ceticismo abriu espaço para o fortalecimento da extrema direita, que cresceu
depois da crise política e econômica acirrada pela Lava Jato. As redes sociais
criaram as condições para a formação da tempestade perfeita. Suas bolhas
algorítmicas popularizaram os discursos de ódio em defesa da guerra contra os
inimigos da nação, fundamentais para a eleição de Bolsonaro. O desastre do
bolsonarismo na pandemia e o desmonte das políticas públicas no Governo Federal
não foram suficientes para reduzir os ânimos de seus apoiadores. Bolsonaro,
contudo, é carta fora do baralho nas eleições de 2026.
Com
Tarcísio de Freitas incensado, os contornos do projeto de futuro deste grupo
ficaram mais evidentes. Riqueza e progresso devem ser garantidos pelo mercado.
O Estado tem dois papéis principais. Primeiro, não atrapalhar a sanha
empreendedora dos que estão focados na busca pelo lucro. De preferência, dar um
empurrãozinho aos empresários aliados. Podem ser garimpeiros, grileiros,
armamentistas, incorporadores da orla nas praias, os donos dos planos de saúde,
líderes das igrejas, jogadores das bets, investidores do mercado
financeiro, organizadores de pirâmides, entregadores de aplicativo. Em segundo
lugar, cabe ao Estado armar suas polícias ou incentivar a formação de milícias
para travar uma guerra em defesa da propriedade privada.
A
religião tem um peso estratégico na legitimação dessa ideologia ultraliberal
entre as massas, porque sacraliza a prosperidade e demoniza a luta social e o
controle do mercado. O simbolismo sagrado ajuda a transformar a guerra dos
neoliberais numa luta do bem contra o mal, uma suposta defesa da tradição da
cultura judaico-cristã ocidental contra os comunistas e esquerdistas ateus.
Além
disso, a religião ajuda a criar entre as massas a confiança na própria
capacidade de ganhar dinheiro. Pobres e ricos dispostos a empreender, crentes
na força do mercado, acabam se juntando do mesmo lado da guerra, que passa a
transcender as diferenças entre as classes.
O
problema é que esse sistema não se sustenta. Com o avanço das novas tecnologias
e a crise da sociedade do emprego, o mercado vem se tornando mais restritivo. A
riqueza se concentra nas mãos de poucos, criando uma pressão cada vez maior
sobre as massas que ficam de fora. O protagonismo crescente dos militares é um
dos sintomas desse quadro. Eles serão cada vez mais necessários para proteger
os ricos em suas ilhas de prosperidade.
A
popularidade dos homens fardados nas escolas também dialoga com esse fatalismo
ultraliberal. Resta aos educadores formarem cidadãos disciplinados, obedientes,
que aceitem fazer parte do jogo e ganhar o suficiente para respirar. Melhor
esquecer o pensamento crítico, que repense a forma de viver no mundo, que
domestique o mercado, que busque maneiras de distribuir a riqueza altamente
concentrada entre poucos.
Diante
desse Estado policial fragilizado, sem projeto de futuro, em que poder passa a
ser sinônimo de dinheiro e fuzis, os grupos armados ganham cada vez mais
protagonismo político. Nas principais cidades brasileiras, tiranias que
controlam o cotidiano e impõem suas regras em benefício de seus negócios já
fazem parte da realidade. Alguns grupos são financiados pelo bilionário mercado
de drogas, altamente lucrativo por ser ilegal, com imensa capacidade de
corromper agentes públicos. Já as milícias estão dentro do sistema, dada sua
estreita ligação com a política.
Pode
parecer novidade, mas é algo antigo e presente na história brasileira. Durante
350 anos de colonialismo, a manutenção e a reprodução da sociedade escravista
misturavam dinheiro, violência armada e fé para defender os interesses de uma
minoria contra a maioria da população. Os séculos passam, mas a lógica continua
a mesma. Um poder que tenta se impor pela força, sem legitimidade para criar um
mundo viável para a maioria dos brasileiros. O projeto de futuro da extrema
direita se inspira nos piores traços de nosso passado.
Fonte:
Por Bruno Paes Manso, no Jornal da USP
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