sábado, 15 de junho de 2024


 PL dos Estupradores: esse é nome que define projeto que equipara aborto a homicídio

Em meio a tantos retrocessos, a Câmara dos Deputados, numa votação relâmpago, aprovou a tramitação da urgência do PL 1904/2024, que prevê pena de homicídio para quem realizar um aborto após 22 semanas de gestação. Se essa proposta for aprovada pelos parlamentares, a mulher ou criança vítima de estupro que fizer um aborto poderá pegar uma pena de até 20 anos de prisão. Hoje a pena para um estuprador chega no máximo a 12 anos de reclusão.

Ou seja, esse PL 1904, de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), em conjunto com outros 33 deputados fundamentalistas (a maioria homem), quer criminalizar a vítima de violência sexual, quer, no fundo, punir a mulher. É misoginia pura. O Brasil tem índices alarmantes de estupro. Foram 74 mil casos em 2023, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, porém esse número é subnotificado porque muitas mulheres não denunciam o crime. A situação é ainda mais terrível quando falamos de crianças e adolescentes, mais da metade (56.820) foi de estupros de vulneráveis, ou seja, crimes contra menores de 14 anos. Nestes casos, o estuprador em geral é parente ou próximo à família.

A legislação brasileira permite à mulher ou criança vítima de estupro realizar o procedimento. Afinal, estuprador não é pai e é uma desumanidade sem tamanho obrigar alguém a gestar um feto fruto de uma violência. Mas a crueldade dessas pessoas não tem limites. Basta lembrar da juíza e promotora em Santa Catarina que se recusaram a cumprir o que diz a lei e quiseram manipular uma criança de 11 anos a não ter o seu direito garantido. Queriam acabar com a vida daquela menina que já tanto havia sofrido nas mãos de um pedófilo. Imagine que maravilha vai ser para esses pedófilos saber que agora as suas vítimas não mais vão procurar a Justiça para exercer o seu direito ao aborto, o que acaba por denunciá-los? Sim, porque muitas vezes até essas crianças se darem conta de que estão grávidas, já se passaram algumas semanas. Muitas vezes outra pessoa, a escola ou até a mãe, percebe que há algo errado com a criança, e descobrem anos de abuso sexual por meio da gestação.

Quem se lembra da menina de 10 anos em Recife que teve que fazer o procedimento em outra cidade, porque fundamentalistas foram à porta do hospital protestar contra o direito dela se livrar daquele feto indesejado e que não vai viver fora da barriga dela? Falam que querem defender a vida acabando com a vida de quem está vivo e precisa de ajuda e apoio para se livrar do trauma e marcas profundas que uma violência sexual traz à vítima.

A mulher ou criança vítima de um estupro leva tempo para lidar com a violência, descobrir a gestação, e aí precisa percorrer um longo caminho para conseguir ter seu direito ao procedimento seguro. Infelizmente, com um sistema de Justiça e atendimento médico-hospitalar que falham por colocar suas crenças pessoais acima do direito daquela vítima, a realização do procedimento pode, sim, ter que ser realizado com 23, 24 ou 25 semanas.

Portanto, o PL 1904/2024 não é um PL sobre o aborto, é sobre o estupro. É para facilitar a vida ainda mais dos estupradores e pedófilos. À mulher ou criança, caberá se calar ainda mais, aguentar as marcas profundas da violência sob o risco de ser presa por 20 anos.

Se esses parlamentares estão tão preocupados com a questão do aborto, por que não fazem um PL para colocar educação sexual nas escolas, com ensinamentos sobre como as crianças e adolescentes podem identificar abusadores? Que tal discutir a cultura do estupro, que leva a frases absurdas como “não estupro porque você não merece”, combate ao machismo e sobre métodos contraceptivos para adolescentes (meninas e meninos)?

A informação e conscientização levam à prevenção. O aborto é a última saída para quem realiza o procedimento. E o Estado deve garantir esse direito. Sem retrocessos. E já que defendem tanto a liberdade, é bom lembrar: você tem o direito de escolher, é livre para isso, ninguém é obrigado a fazer um aborto.

           O que é o PL do Estupro

O projeto de lei PL 1904/2024, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), equipara o aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio, até em casos de estupro. Atualmente, a legislação sobre o aborto permite a realização do procedimento em três situações: estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia do feto e não estabelece prazo máximo para o aborto legal.

A proposta do projeto é equiparar o aborto realizado em caso de estupro após 22 semanas ao crime de homicídio, alterando o Código Penal para que a pena imposta seja de 20 anos. A lei estabelece, hoje, pena de um a três anos quando provocado pela gestante ou com seu consentimento, e de três a dez anos, quando feito sem o consentimento da gestante. Caso seja aprovado, o PL vai criminalizar mulheres e crianças vítimas de abuso sexual.

           Maioria dos anúncios antiaborto é paga por deputados bolsonaristas

Nas últimas semanas, as plataformas da Meta, como o Facebook e o Instagram, registraram uma intensa atividade publicitária em português envolvendo a palavra-chave “aborto”. De acordo com dados da biblioteca de anúncios da empresa, aproximadamente 900 propagandas foram veiculadas na categoria “Temas, Eleições ou Política” há seis meses.

Essas campanhas têm como alvo principal mulheres e são frequentemente promovidas por parlamentares de orientação conservadora e/ou religiosa. Entre 17 de maio, quando o PL foi apresentado na Câmara dos Deputados, e 7 de junho, foram lançadas 220 dessas propagandas. Na primeira semana de junho, período em que surgiram especulações sobre a possibilidade de votação urgente do projeto no plenário, cerca de 86 anúncios foram publicados.

Entre os 220 anúncios veiculados desde 17 de maio, 218 apresentaram retórica conservadora e/ou religiosa, isto é, 99,09% dos conteúdos veiculados. O período de análise foi dividido em duas partes: de 1º de janeiro a 7 de junho e, posteriormente, de 17 de maio a 7 de junho.

 

           PL da Gravidez Infantil impede direito previsto em lei há 80 anos e impõe tortura a meninas e mulheres, diz advogada

A advogada Letícia Ueda Valle, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, falou sobre o assunto nesta quinta-feira (13) no jornal Central do Brasil. O projeto ficou conhecido como PL da Gravidez Infantil por atingir, principalmente, crianças vítimas de estupro, que podem ficar proibidas de realizar o aborto depois de 22 semanas de gestação.

Letícia expõe os diversos problemas para a infância caso o projeto avance e mude artigos do Código Penal. A proposta prevê que a pena para a vítima do estuprador que abortar pode ser maior que a prevista para um condenado pelo abuso sexual. O aborto igualado ao crime de homicídio simples, conforme o texto da proposta, prevê pena de 6 a 20 anos de prisão.

<><> Leia abaixo a entrevista na íntegra:

           Esse projeto de lei está sendo chamado por ativistas pelo direito ao Aborto Legal de 'PL da Gravidez Infantil'. Por quê?

Letícia Ueda Vella: É chamado de PL da Gravidez Infantil porque afeta, majoritariamente, crianças vítimas de violência sexual. Quando a gente fala sobre interrupção da gestação legalmente prevista em idades gestacionais acima de 22 semanas, a gente sabe que aconteceu alguma coisa na rota dessa pessoa para que ela não conseguisse acessar o procedimento em momento anterior. As meninas são majoritariamente afetadas por isso porque, por vezes, a identificação da prática da violência sexual não é tão simples. E não se imagina tão facilmente que uma criança vai estar grávida.

Os sintomas e até mesmo o crescimento um pouco da barriga nem sempre é avaliado pela família e pelo próprio desconhecimento da menina sobre o próprio corpo. Descobre-se tardiamente por conta dessa dificuldade de identificar e, então, caso o PL seja aprovado com o conteúdo que hoje ele tem, essa menina chega ao serviço de saúde e seria obrigada a prosseguir com a gestação.

A gente sabe que os efeitos de uma gestação na infância, de uma maternidade na infância, são extremamente nefastos. A gente fala verdadeiramente da perda dessas infâncias, porque existe um enorme impacto na saúde mental e no índice de evasão escolar. Existe uma verdadeira interrupção do sonho e da vida dessas meninas.

           Também chama a atenção o fato de as penas para a mulher que realizar o aborto poderem superar a pena dada para estuprador. O que isso revela sobre os direitos das mulheres no Brasil? Esse PL é uma forma de dificultar o aborto que já é previsto por lei?

Com certeza. Não há dúvida de que o PL foi editado justamente com o objetivo de estabelecer maiores barreiras a um direito que está previsto na legislação desde 1940. Então, veja, desde 1940, esse direito está garantido e agora o que se volta é o desejo de se impor barreiras de acesso a esse procedimento, que hoje no Brasil já é bastante dificultado.

Se a gente está falando de uma mulher, de uma menina que não consegue acessar o procedimento e chega num posto de saúde, chega na delegacia, depois da 22ª semana de gestação, a gente está falando de um sistema que não conseguiu acolher um caso de violência sexual antecipadamente. Então, a gente está falando de uma falha do Estado, de uma falha da nossa política pública.

E aí a gente pune essas meninas, pune essas mulheres e impõe a elas não só a impossibilidade de interromper a gestação. Para as meninas, interrompendo a infância delas. Para mulheres vítimas de violência sexual, também interrompendo seus futuros, impondo um sofrimento que, até por órgãos internacionais, já foi classificado como tortura e coloca, enfim, uma barreira adicional, verdadeiramente impedindo que esse procedimento seja realizado.

           O autor da proposta, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), afirmou que a bancada evangélica vê isso como um teste para ver se o presidente Lula vai vetar o projeto. Isso porque o presidente tinha declarado em campanha ser contra o aborto. É uma queda de braço entre governo e os evangélicos? Qual a força desse setor na aprovação dessa lei?

Evidentemente que a gente sabe por diversos motivos de que há uma disputa e uma queda de braço, não só entre Executivo e Legislativo, mas também entre poderes Judiciário e Legislativo. Tendo como um dos objetivos e pauta centrais a disputa sobre os direitos das mulheres, que estão sempre sendo negociados na mesa quando a gente está pensando sobre esse seu pensamento.

Então, eu vejo como uma espécie de queda de braço, avalio que o governo Lula vai se posicionar. E a gente espera enquanto movimento feminista, movimento de mulheres e pessoas que acreditam na garantia de defesa de direitos de mulheres e meninas, que [se posicione] na linha do que seus ministérios já se posicionaram: de que esse projeto de lei seria um verdadeiro absurdo e que, em realidade, ele só impediria um direito que está desde 1940 na lei, impondo e expondo mulheres e meninas à tortura.

É certo que a bancada evangélica tem um peso muito grande ao votar esses projetos, mas isso não significa que, necessariamente, toda e qualquer pessoa que exerce a religiosidade a partir desse lugar, é contrária à realização do procedimento ou tem posturas que são contrárias ao exercício de direitos das mulheres. A bem da verdade é que a gente tem uma bancada extremista que defende valores da extrema-direita e que ataca direitos das mulheres e, especialmente, o aborto como um ponto central.

           Existe também a preocupação de que esse projeto de lei prejudique mulheres que sofram aborto espontâneo depois das 22 semanas de gestação. Isso é uma possibilidade?

Certamente, o que a gente entende é que a criminalização do aborto tem enormes efeitos no reforço ao estigma. A gente diz que ela coloca a prática ou a realização do aborto ou, então, o próprio aborto espontâneo num lugar da ilegalidade. E isso impacta diretamente o acesso a um serviço público de saúde quando, na verdade, só acontece dentro de um caso espontâneo.

Quando a gente aumenta a pena, o receio desses profissionais que estão dentro dos serviços de saúde também se eleva de fazer um atendimento. A gente sabe que hoje a maior parte das mulheres que é processada pela realização de um aborto é denunciada por profissionais da saúde que rompem com o sigilo médico profissional: uma realidade em que o serviço de saúde já não é necessariamente e nem sempre é um lugar de acolhimento.

Com a elevação do estigma, isso vai se tornando cada vez mais difícil. Então, a gente sabe que o aborto, não só o aborto inseguro, mas uma das causas de mortalidade materna é também que as mulheres recebem atendimento tardio. E a gente tem um caso emblemático de falta de atendimento em saúde materna que já foi julgado até pelo Comitê da ONU, o Comitê de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres [Cedaw, na sigla em inglês], que é o caso Alyne Pimentel. Em que uma mulher busca, num caso de hemorragia, o sistema de saúde, não consegue atendimento e vai a óbito.

Essa não é uma realidade apenas da Alyne. A gente sabe que essa é uma realidade de milhares de mulheres no Brasil. Isso, com certeza, vai ser reforçado caso a gente eleve a pena, aumente o estigma e dificulte, coloque os profissionais de saúde cada vez mais amedrontados e as mulheres e meninas cada vez mais amedrontadas de buscarem ajuda. Com medo de serem criminalizadas por um aborto espontâneo que pode ser, inclusive, de uma gestação desejada. Ela pode estar em sofrimento por isso.

 

Fonte: Fórum/Brasil de Fato

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