Pesquisa
relaciona avanço de energias renováveis à expulsão de comunidades tradicionais
Apontadas
como solução para o aquecimento global, as fontes de energia renováveis vêm
recebendo generosos incentivos públicos e privados. No Brasil, a capacidade
instalada de energia eólica saltou quase dez vezes em uma década, entre 2011 e
2021, passando de 1,2% para 11,4%. Na energia solar, o aumento foi de 26 vezes,
de 0,1% para 2,6%. Se os planos do governo federal se concretizarem, essa
expansão será ainda mais acelerada nas próximas décadas.
Mas
o baixo impacto na atmosfera contrasta com os efeitos gigantescos que parques eólicos e solares promovem ao
nível do chão. Há cerca de sete anos, pesquisadores
austríacos estudam a ação destes empreendimentos sobre os povos tradicionais,
especialmente da Caatinga, que de repente se vêem impedidos de acessar áreas
ocupadas há muitas gerações.
“Na
grande maioria, são comunidades tradicionais que ocupam terras públicas”,
explica Thomas Bauer, que atua na Bahia como representante da Comissão Pastoral
da Terra (CPT), referindo-se às comunidades de fundo de pasto,
que compartilham uma mesma terra onde criam animais e coletam frutos e raízes.
“Para estas pessoas, nunca foi importante ter documento da terra, mas como
comunidade tradicional eles têm o direito de usufruir daquela área, para onde
levam os animais para pastar, pegam madeira para a lenha, coletam raízes e
plantas medicinais”.
O
impacto dos parques eólicos e solares sobre o acesso à terra foi tema de
um artigo publicado em meados de maio na
revista Nature Sustainability. Cruzando dados fundiários e da
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), pesquisadores da Áustria e do
Reino Unido concluíram que 574 parques eólicos no Brasil ocupam um total de
2.148 km², especialmente no nordeste brasileiro (o equivalente a duas cidades
do Rio de Janeiro). No caso dos parques solares, a área ocupada é bem menor:
são 117 projetos ocupando 102 km².
Os
pesquisadores também observaram que 64% dos projetos eólicos estão sobre
propriedades privadas . No caso dos parques solares, esse número sobe para 96%.
Na maioria dos casos, a titulação ocorreu poucos anos antes ou depois dos
primeiros aportes dos investidores, o que segundo os pesquisadores indica “que
grande parte das privatizações está diretamente ligada ao desenvolvimento do
parque”.
Um
exemplo é o Parque Eólico Primavera, que ocupa uma área de 1.827 hectares no
município de Morro do Chapéu, na Bahia. Segundo o levantamento, o primeiro
aporte de investimentos ocorreu em 2012. Cerca de três anos depois, as áreas
que compõem o projeto começaram a ser privatizaadas.
“Esse
imperativo da mudança climática é bastante impactante porque legitima certos
modos de acesso e controle de terra pública”, afirma Michael Klingler, um dos
autores do artigo e pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Econômico
Sustentável da BOKU University, na Áustria.
Os
especialistas observam um modus operandi na forma como as
empresas se apropriam das terras públicas. Bauer, que produziu um
documentário sobre o impacto dos parques eólicos, explica que uma das táticas é o recrutamento de atores locais,
que apresentam documentos falsos para grilar a área e depois repassam o terreno
para as empresas. Outras vezes, é uma empresa laranja quem faz o serviço de
“limpeza”, garantindo a expulsão das comunidade e a titulação junto aos órgãos
públicos. “Depois a empresa [de energia eólica ou solar] que chega vai dizer
‘eu não tenho nada a ver com o que veio antes de mim, eu comprei a área
legalmente'”, explica Bauer.
As
empresas também enviam representantes para as comunidades para tentar cooptar
lideranças locais, prometendo empregos e poços artesianos. Contratos de
arrendamento da terra, com prazos de até 30 anos, também são parte da
estratégia.
“Na
comunidade Sumidouro, onde foi construído um dos primeiros parques eólicos da Bahia, a entrada do empreendimento causou a divisão da comunidade em
três, porque teve muita briga quando a empresa entrou”, conta Johannes Schmidt,
que também assina o artigo da Nature Sustainability. “As empresas
muitas vezes tentam fazer contratos individuais com as pessoas, e não com a
comunidade como um todo, que historicamente partilha terras em comum. Isso cria
conflitos.”
·
Selo verde e apoio
estatal
Apesar
de a maior parte dos projetos de energia solar e eólica pertencerem a empresas
brasileiras, a participação do capital estrangeiro chamou a atenção dos
pesquisadores. Atores internacionais, principalmente europeus, estão envolvidos
em 78% de todas as iniciativas eólicas e em 96% das solares, seja como donos
dos parques ou investidores. Destaque também para o protagonismo do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que atua como
investidor em 15% das áreas ocupadas pelos parques eólicos.
O
apoio do poder público encontra legitimidade no agenda climática, garantindo às
empresas uma série de incentivos e facilidades. No ano passado, por exemplo, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva zerou os impostos sobre as placas solares e anunciou investimentos de R$ 50 bilhões para
o que chamou de “o maior programa de transição energética do país”.
“São
novas políticas para promover a expansão de energias renováveis, que são
importantes”, afirma Klingler. “Ninguém está contra a expansão eólica e solar,
mas os métodos como estes projetos são implementados são bem problemáticos”.
Os
incentivos estatais também aumentam a desigualdade de forças entre as empresas
e as comunidades. Em 2020, por exemplo, o governo da Bahia publicou uma instrução normativa facilitando a privatização de áreas públicas para parques
eólicos. Enquanto isso, povos tradicionais lutam há anos para terem seus
territórios reconhecidos pelo poder público.”O acesso das empresas ao Estado,
em todos os níveis, é muito maior que o acesso das comunidades”, afirma
Schmidt, da BOKU University.
Para
Fábio Pitta, pesquisador das universidades de Harvard e de São Paulo (USP), a
sensação é de já ter assistido a esse filme antes. No início dos anos 2000, o
estímulo ao etanol pelo governo Lula e a alta do preço do açúcar no mercado
internacional provocaram a rápida expansão das lavouras de cana-de-açúcar pelo
país, com impacto direto sobre os pequenos produtores e trabalhadores rurais.
“Também
tinha toda essa propaganda de que era uma energia renovável. Em 2003 criaram os
carros flex e o BNDES pôs muito dinheiro nas usinas. Muitas petrolíferas
entraram no país e investiram na produção de etanol de forma parecida com o que
está acontecendo com as eólicas hoje, e o impacto foi brutal”, explica Pitta,
coordenador da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, que articula movimentos sociais na defesa do direito à terra.
Os
impactos dos megaprojetos vão muito além da restrição do ir e vir, como
evidencia um dossiê elaborado pelos pesquisadores
austríacos em parceria com as comunidades e organizações da sociedade civil.
Nos projetos solares, vastas áreas são desmatadas para abrir espaço para as
placas. Já nos parques eólicos o barulho constante das turbinas afugenta animais nativos e
atrapalha o sono e a qualidade vida dos moradores, aumentando casos de
depressão.
O
grupo também desenvolveu um mapa que
mostra todos os empreendimentos já instalados, em construção ou em planejamento
no estado da Bahia — em breve, o projeto vai ser expandido para todo o Brasil.
O objetivo é informar as comunidades sobre as ameaças aos seus territórios e
permitir que elas se articulem para defender seus modos de vida.
“Não
é porque uma energia parece renovável que não tem impacto”, diz Pitta. “Uma
coisa é dizer que a energia é limpa em termos da sua própria produção, em
comparação com combustível fóssil. Outra coisa é dizer que por isso não tem
consequências sociais”.
Fonte:
Mongabay
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