Peculato,
corrupção, prevaricação: entenda a narrativa que atribui crimes a Moro,
Dallagnol e Hardt na Lava Jato
Uma
das maiores reviravoltas da história da Lava Jato pode estar em gestação neste
momento, tendo a última instância do Judiciário como forte candidata a palco
principal do futuro julgamento. Trata-se da possibilidade, talvez nunca antes
tão realizável, de que Sergio Moro, Deltan Dallagnol, Gabriela Hardt, entre
outros agentes lavajatistas, sejam investigados por atos que supostamente
configuram crimes comuns.
Ou
seja, pela primeira vez na história das grandes operações, os principais
expoentes da Lava Jato podem responder por terem lançado mão de experientes
possivelmente corruptos enquanto combatiam (seletivamente e com altas doses de
lawfare) a corrupção estatal, empresarial e política no País.
O
primeiro passo para isso acontecer já foi dado. Foi enviado ao Supremo Tribunal
Federal e à Procuradoria-Geral da República o relatório final da correição
extraordinária promovida nos gabinetes da Lava Jato em Curitiba, um documento
que narra como Moro ajudou Dallagnol a criar um esquema de “cash back” que
daria vida à famigerada Fundação Lava Jato, concretizada em um termo homologado
por Hardt. A empreitada só não saiu do papel porque foi abortada pelo Supremo.
O
encaminhamento do relatório foi feito pelo ministro responsável pela correição,
Luís Felipe Salomão, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no dia 12 de junho
de 2024, depois que a maioria do plenário do CNJ decidiu instaurar uma
investigação na esfera administrativa contra Hardt e juízes do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região. Moro ainda terá o pedido de abertura do processo
administrativo disciplinar (PAD) julgado pelo colegiado, mas a correição
extraordinária já antecipa algumas acusações que devem chegar também à esfera
penal:
“Em
período compreendido entre o ano de 2016 e o ano de 2019, na cidade de
Curitiba, Paraná, o então juiz federal SÉRGIO FERNANDO MORO, a juíza federal
substituta GABRIELA HARDT, da 13ª Vara Federal de Curitiba, o então procurador
da república coordenador da força-tarefa DELTAN MARTINAZZO DALLAGNOL e
procuradores da república da denominada força-tarefa da Lava Jato não
especificados atuaram para promover o desvio, por meio de um conjunto de atos
comissivos e omissivos e com auxílio de agentes públicos americanos e dos
gerentes da PETROBRAS TAÍSA OLIVEIRA MACIEL, CARLOS RAFAEL LIMA MACEDO e
representantes da PETROBRAS não especificados, de R$ 2.567.756.592,009 (dois
bilhões, quinhentos e sessenta e sete milhões, setecentos e cinquenta e seis
mil, quinhentos e noventa e dois reais) destinados originalmente ao Estado
brasileiro, para criação de uma fundação voltada ao atendimento a interesses
privados, não conseguindo finalizar esse intento por motivos alheios à vontade
dos atores.”
Ex-procurador
da República, Dallagnol foi citado no relatório final da correição, mas nem ele
nem outros procuradores de Curitiba estão na mira do CNJ. Apesar disso, a
Polícia Federal afirma que a atuação dos membros e ex-membros do Ministério
Público Federal (MPF) no suposto esquema investigado precisa ser apurada:
“Um
vazio que merece aprofundamento tem relação com a participação de outros
membros da força-tarefa, cujas atuações não se inseriram no escopo do trabalho
correcional, mas que são indissociavelmente relacionadas à autoria ou à
participação em alguns fatos, diante da afirmação de DELTAN DALLAGNOL de que
“até assinava em conjunto algumas petições, mas não estava na parte
operacional” da Lava Jato e do fato de que a quase totalidade das petições do
MPF traz nomes de diversos procuradores sem que haja necessariamente as
correspondentes assinaturas.”
Parte
substancial da correição, desenvolvida pela Polícia Federal, levanta a bola
para que as autoridades competentes apurem se Moro e Hardt incorreram no crime
de peculato na modalidade desvio de dinheiro público. Deltan é citado como
“interessado” no esquema, já que ele esteve à frente da cooperação
internacional com os EUA – que resultou no acordo bilionário para que a
Petrobras não fosse levada a julgamento em Nova York – e depois foi quem
idealizou e agiu para criar a Fundação Lava Jato. O dinheiro para a fundação
privada viria do retorno parcial da multa bilionária paga pela Petrobras aos
EUA, quitada em 2021.
Além
de cooperar com os americanos com empréstimo de provas e delatores, Dallagnol
também se envolveu em negociações ocultas com o Departamento de Justiça para
recuperar os 80% do valor da multa, que deveria ter sido creditado às
“autoridades brasileiras”. Mas para impedir que a União colocasse as mãos nos
recursos, os procuradores pressionaram Hardt a homologar um segundo termo entre
MPF e Petrobras, permitindo que pelo menos metade da restituição fosse injetada
na fundação privada que ficaria sob a batuta da própria Lava Jato.
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A síntese geral dos fatos: o papel de Dallagnol
O
relatório apresenta uma espécie de linha do tempo dos fatos que circundam o
esquema de “cash back” da Lava Jato. O primeiro ato foi marcado pelo
conhecimento, por parte de Dallagnol e seus colegas de Procuradoria, a respeito
do interesse dos americanos em construir uma denúncia contra a Petrobras usando
dos mesmos delatores e provas levantados pela Lava Jato. Isso teria ocorrido
entre o final de 2014 e início de 2015, de forma informal. Somente em setembro
de 2015, a Lava Jato teria comunicado oficialmente a PGR a respeito da
investigação estrangeira.
Há
indícios robustos de que a força-tarefa colaborou com americanos, inclusive
informalmente, com reuniões secretas, conforme narrado com exclusividade ao GGN
pelo advogado André de Almeida, que presenciou os encontros.
Por
anos, críticos da Lava Jato questionaram também a interpretação do papel
completamente ambíguo pelos procuradores: no Brasil, tratavam a Petrobras como
“vítima” de corrupção e até devolviam, com anuência e ajuda de Moro, recursos
apreendidos à petroleira; já nos EUA, deixaram que ela fosse tratada como
“culpada”, a ponto de ter de pagar a multa bilionária para não ir a julgamento.
Com
o trabalho da correição extraordinária, revelou-se que essa ambiguidade
possivelmente escondia o interesse financeiro dos agentes da Lava Jato no
retorno de 80% da multa. Embora ele negue participação, há depoimentos e
documentos oficiais provando que Dallagnol envolveu-se pessoalmente nas
tratativas com os americanos para reaver a fortuna. Os próprios advogados da
Petrobras disseram que Dallagnol liderava as negociações sem a presença da
petroleira.
“Nos
foi dito, pelo próprio DELTAN, que eles teriam acertado com o departamento
americano que, como as provas que eles obtiveram foram o Ministério Público que
forneceu, o trabalho era todo do MP, que eles [americanos] concordavam que
parte do dinheiro que a PETROBRAS viesse a ser condenada ou fizesse acordo,
seria revertido para o Brasil, voltaria para o Brasil… aí ele não explicou
como”, disse o advogado Carlos Rafael Lima Macedo, defensor da Petrobras.
Quando
a negociação tinha já tinha mais corpo, o ex-procurador notificou a Secretaria
de Cooperação Internacional, em abril de 2016. Outro procurador que pode ser
investigado junto com Dallagnol é Paulo Roberto Galvão, conforme extrai-se do
trecho abaixo:
“Há
um detalhe nesse primeiro processo de cooperação EUA e Brasil: diferentemente
das demais petições protocolizadas pelo MPF perante o juízo da 13ª Vara – que
têm como padrão trazer a relação de vários integrantes da força-tarefa como
signatários do documento –, a petição inicial do processo de cooperação com os
EUA e a quase totalidade de manifestações nesses autos é da lavra exclusiva de
DELTAN DALLAGNOL. Apenas no evento 64, em outubro de 2018, há documento com
indicação de DELTAN DALLAGNOL e PAULO ROBERTO GALVÃO DE CARVALHO como
signatários, assinado pelo último, situação que corrobora informações trazidas
pelos advogados da PETROBRAS de que os dois procuradores eram os interlocutores
em assuntos relacionados à apuração americana.“
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A contribuição de Sergio Moro para o esquema
Apenas
um mês depois da SCI ser informada a respeito da cooperação com os EUA, Moro
decidiu abrir um procedimento ultra secreto – acessado apenas pela força-tarefa
e Petrobras – para concentrar os recursos estratosféricos oriundos de acordos
de leniência e delação premiada que seriam, em grande parte, devolvidos à
Petrobras.
Essa
iniciativa teria sido precedida, ainda, de um encontro com um agente americano,
conforme o trecho do relatório:
“Outras
informações obtidas sobre essa interação [entre Curitiba e EUA] – extraídas de
outra reportagem, publicada em maio de 2016 – mencionam que PATRICK STOKES
teria passado quatro dias em Curitiba e que ‘conversou com o juiz SÉRGIO MORO e
membros da força-tarefa da Lava Jato‘. Embora não seja possível identificar
neste momento se a matéria tratou de outra vinda da mesma autoridade americana,
o que se extrai é que há uma proximidade temporal entre esses movimentos dos
órgãos dos EUA, anteriores à formalização dos pedidos formais de cooperação
perante o juízo da 13ª Vara, e a abertura, por iniciativa do então juiz, do
processo de destinação de dinheiro à PETROBRAS, bem como já havia, desde o
início, indicação de ciência dos reais objetivos americanos (investigação em
face da PETROBRAS) entre todos os atores.”
Com
anuência ou sugestão dos procuradores, o ex-juiz decidia o destino do dinheiro.
Somente de uma das contas judiciais movimentada por Moro, mais de R$ 2 bilhões
entraram nos cofres da Petrobras, ajudando a empresa a fazer frente à multa que
viria a pagar nos EUA e que grande parte retornaria ao Brasil e sofreria
tentativa de desvio pela turma de Curitiba. Para Salomão, esse foi o método
“cash-back” inventado pela Lava Jato para atender aos “interesses privados” de
seus agentes públicos.
A
correição não conseguiu identificar o volume total de dinheiro administrado
pela 13ª Vara ao longo dos anos, pois havia “gestão caótica” que precisa ser
investigada com mais profundidade. Hardt também foi implicada por dar
continuidade a esse método de Moro de administrar recursos.
O
relatório ainda aponta que a “destinação antecipada de valores – base para o
direcionamento inquestionado de dinheiro para a PETROBRAS – ocorreu porque se
entendia que as decisões que homologavam os acordos transitavam em julgado”.
“Não havendo recurso à homologação, vamos dizer, transitando em julgado esse
procedimento homologatório de jurisdição voluntária da homologação, se dava a
destinação cabível ao recurso. Esse era o entendimento de mérito”, disse
Dallagnol.
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As hipóteses criminais
O
relatório policial que compõe a correição extraordinária levantou a hipótese
criminal de peculato, na modalidade desvio de dinheiro. Mas as ações praticadas
pelos indivíduos, quando analisadas isoladamente pelas autoridades competentes,
podem incidir ainda nos tipos penais de prevaricação, corrupção privilegiada ou
corrupção passiva, “caso o fim especial de agir de cada ator e outras
circunstâncias dos eventos sob escrutínio sejam identificados por meio de novas
informações que venham a ingressar, no contexto de uma apuração criminal
tecnicamente conduzida dentro do devido processo legal.”
O
enredo fica ainda mais tenso quando a Polícia Federal aponta que Moro e
Dallagnol seriam, possivelmente, os principais beneficiários da natimorta
Fundação Lava Jato no âmbito político, já que o fundo seria utilizado para
investimentos em “ações sociais” e “formação de lideranças políticas” com
potencial de promover ainda mais a imagem dos lavajatistas.
“Os
objetivos da fundação que seria criada já indicavam que a constituição do ente
privado e a gestão dos recursos seriam mais um expediente dentro de um conjunto
de ações com foco no protagonismo pessoal, seja diretamente pelas repetidas
exposições de alguns dos atores, seja indiretamente pelo fortalecimento do
modelo de atuação da própria força-tarefa da Lava Jato, o que favorecia a
projeção individual inclusive no campo político, em convergência com o fim
primeiro da fundação que seria criada: a promoção da “formação de lideranças e
do aperfeiçoamento das práticas políticas”. A pessoalidade de todo esse esforço
foi posteriormente concretizada pela migração do então juiz SÉRGIO MORO e do
então procurador DELTAN DALLAGNOL para a atividade político-partidária.”
Caberá
à Procuradoria-Geral da República decidir o que fazer, na esfera penal, com as
denúncias apontadas pelo trabalho da correição extraordinária.
Correição
Extraordinária nº 0003537-28.2023.2.00.0000
Fonte:
Jornal GGN
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