sexta-feira, 14 de junho de 2024

'Pec das Praias': entenda como outros países legislam sobre privatização de áreas costeiras

O debate sobre a concessão de praias e terrenos costeiros à iniciativa privada está em alta em vários pontos do globo, acompanhando o apetite de investidores pela exploração das normalmente valiosas áreas à beira-mar.

Ainda que a maior parte dos países da Europa não venda terrenos em suas praias, diferentes modelos de concessão de exploração são uma realidade no continente.

Com alguns dos destinos balneares mais badalados do verão europeu, a Itália tem grandes extensões de área concedidas a particulares. Pela lei italiana, os espaços costeiros são públicos, mas autoridades locais podem permitir que empresas e particulares operem serviços diversos, como bares, restaurantes, campings e clubes.

Normalmente, quem explora comercialmente esses locais precisa dar contrapartidas, como o pagamento de uma taxa anual e a instalação de infraestruturas higiênicas e de segurança, além do custeio de serviços de salva-vidas.

'PEC das Praias' não autoriza privatização da costa; lei federal assegura acesso público à orla Entenda a PEC que pode privatizar áreas da União no litoral brasileiro Moradores e turistas queixam-se de que, em algumas das principais praias do Mediterrâneo italiano, as faixas de área pública são cada vez mais estreitas.

Um relatório editado pela organização não governamental Legambiente, que compilou registros oficiais e imagens de satélites, estima que mais de 42,8% das áreas costeiras baixas estejam sob concessão no país. Na região de Emilia-Romagna, essa fatia é de quase 70%.

"Há tanto tempo essas concessões são renovadas quase que virou senso comum de que essas praias estavam privatizadas", disse à Folha de S.Paulo o responsável pela edição do documento, Gabriele Nanni, gerente de projetos do departamento científico da organização. Ele destaca que muitos dos negócios são comandados há vários anos pelas mesmas famílias.

Uma das principais queixas quanto a esse modelo é a falta de transparência nos processos de concessão. Nos últimos anos, o governo italiano entrou na mira da União Europeia justamente por conta disso: uma possível violação das regras de concorrência sobre a exploração de bens escassos.

"Diferentes governos foram adiando a mudança do sistema, prorrogando as concessões existentes", diz Nanni. Embora o governo de Giorgia Meloni tenha sido favorável às prorrogações, a Justiça italiana decidiu que as concessões expiraram em 31 de dezembro de 2023, devendo, portanto, haver novos processos de seleção.

Apesar disso, a maioria dos concessionários segue operando normalmente. "Como tudo na Itália, há diferenças entre os governos regionais", diz Nanni. Ele cita como bom exemplo a região do Vêneto, que já estaria com projetos em andamento para rever os arranjos em um concurso com transparência. Em outras zonas do país, há autoridades do locais insistindo nas tentativas de prorrogação.

"Essa é uma questão que sempre existiu, mas as pessoas estão mais atentas porque as áreas concedidas aumentaram muito nos últimos anos". Entre 2018 e 2021, dados mais recentes disponíveis, as concessões nas praias italianas cresceram 12,5%.

Organizações de proteção ambiental e muitos especialistas em ordenamento urbano não pedem o fim total do modelo de exploração privada, mas defendem o estabelecimento de limites às áreas ocupadas, maior transparência nos concursos de seleção e exigência de contrapartidas de proteção ecológicas nas áreas costeiras, altamente vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas.

O descontentamento popular, somado ao questionamento jurídico, têm levado a alguns protestos. Às vésperas do início do verão europeu, o grupo Mare Libre (mar livre, em tradução literal), tem realizado uma espécie de "toalhaço" nas praias.

Com o argumento de que as concessões estão expiradas e as praias são portanto públicas, os ativistas entram sem pagar e estendem suas toalhas entre espreguiçadeiras e guardas-sois de áreas concedidas à iniciativa privada, onde passar um dia à beira-mar pode ultrapassar os 100 euros (R$ 576) por pessoa.

Nos Estados Unidos, embora oficialmente todas as áreas costeiras devam ter pelo menos um espaço reservado para o uso público, a situação, como quase tudo no país, varia conforme o estado, com leis que podem ser complexas para a interpretação dos banhistas.

Em Rhode Island, por exemplo, o acesso do público nas areias é liberado até o limite de 3 metros acima da maré alta. As praias, contudo, como era de se esperar, não têm essas áreas demarcadas.

Em entrevista à revista The Atlantic, o professor de direito da Universidade da Carolina do Sul e estudioso das questões de acesso às praias nos EUA, Josh Eagle classificou o sistema americano "meio louco", devido à quantidade e às especificidades das regras locais.

Uma das queixas mais comuns entre os frequentadores americanos são as dificuldades de acesso às áreas públicas. Há ainda o desrespeito pelas já complexas leis sobre o tema. Em pontos valorizados do litoral de Nova York, é comum que proprietários de casas na orla tentem bloquear os acessos para quem vem de fora, eliminando as opções de estacionamento.

Em Nova Jersey, algumas áreas com concessões privadas cobram ingressos apenas para liberarem a passagem dos visitantes pelos pontos de entrada mais cômodos e perto das opções de transporte. Quem não quer gastar precisa dar a volta usar os pontos de acesso mais distantes.

Entre os americanos, porém, há um grande contingente de visitantes que procura áreas de praia congestionadas, sobretudo por conta de comodidades como banheiros, chuveiros e opções de lojas e restaurantes.

No país, também há praias públicas com cobrança de entrada aos visitantes. A prática é justificada como forma de financiamento dos custos elevados de manutenção das estruturas aos banhistas, incluindo limpeza e contratação de salva-vidas.

No Caribe, a privatização de grandes trechos costeiros, incluindo direitos de construção e de aproveitamento turístico das areias, é amplamente difundida. Com a economia local altamente dependente do turismo, muitos governos da região usam essas práticas para atrair investimento estrangeiro, com o objetivo declarado de gerar empregos.

Mesmo quando não há venda ou cessão formal de propriedades, os arranjos normalmente incluem a permissão de longos períodos --que podem ultrapassar 90 anos-- de exploração das áreas costeiras.

Nas Bahamas, alterações legislativas de 2018 permitiram arrendamentos de longuíssima duração a investidores privados.

Na Jamaica, apesar de protestos de moradores de que novos empreendimentos hoteleiros estariam restringindo o acesso público ao litoral, o governo tem dado sinal verde a esses investimentos.

Em artigo de opinião no Guardian, o analista de assuntos do Caribe Kenneth Mohammed criticou esse posicionamento. "Imóveis de alto valor, terras protegidas e recursos valiosos estão sendo entregues sem consideração pelas consequências a longo prazo. Isso levanta questões sobre se ainda prevalecem resquícios da mentalidade colonial nas ideologias políticas e na tomada de decisões."

 

•           Rio: Quando o “mercado” é o arquiteto da cidade

A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro colocou para votação nesta semana um pacote de emendas normativas que, no conjunto, desrespeita os parâmetros urbanísticos de construção na cidade, derruba a função social da propriedade e abre as portas para a mercantilização de praças, áreas verdes e jardins. Na ordem do dia, que começou nesta terça-feira (11 de junho), foram colocadas na pauta duas diretrizes que alteram, de forma alarmante, os parâmetros urbanísticos da cidade do Rio de Janeiro.

A primeira surge através de projeto de autoria do vereador Pedro Duarte (Novo), que altera concretamente o artigo 235 de Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, para deixar explicitamente a redação de que “as áreas verdes, praças, parques, jardins e unidades de conservação são patrimônio público inalienável, sendo permitida a concessão de serviços e de uso, desde que preservadas suas características originais”.

A nova redação não apenas elimina a versão original que proíbe a alienação destas áreas “bem como qualquer atividade ou empreendimento público ou privado que danifique ou altere suas características originais”, como claramente permite mercantilizar áreas ambientais, praças e parques, abrindo as comportas para modelos de Parceria Público-Privadas (PPP) com privatização dos espaços públicos.

Com efeito, diversos experimentos já estão sendo realizados nessa direção, mesmo antes da votação. A título de exemplo, o Jardim de Alah, parque tombado como patrimônio da cidade, cercando as águas do canal que conecta a Lagoa Rodrigo de Freitas à praia (divisa dos bairros Ipanema e Leblon) foi objeto de uma concessão de 35 anos para alteração e gestão por parte da iniciativa privada. O empreendimento concedido pela gestão de Eduardo Paes ao Consórcio Rio + Verde, integrado por quatro empresas, planeja construir no local um shopping a céu aberto, área lounge, praça de alimentação, palco para espetáculo e um estacionamento.

A concessão foi contestada de imediato pelo Ministério Público com o apoio de um movimento de moradores, mas todos os esforços para paralisar a concessão foram derrotados em duas instâncias. Mesmo com a luta na justiça, o Consórcio Rio + Verde assumiu a área e resolveu cercar o parque com tapumes desde começo de maio, decisão que motivou uma nova luta na justiça para a retirada do cercado. Frente a impossibilidade da Prefeitura derrubar o tombamento, o movimento na Câmara de Vereadores para mercantilizar parques e praças será uma pá de cal que daria espaço ao início das obras no Jardim de Alah sem nenhum constrangimento.

Como se não fosse suficiente, a segunda diretriz colocada na pauta desta semana é a Proposta de Lei Complementar (PLC) 163/2024, enviada pelo Poder Executivo para, segundo o texto, “regulamentar os instrumentos urbanísticos” para o licenciamento de construções e acréscimo das edificações na cidade. Contudo, como já demonstrado pela profunda análise do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), trata-se de um conjunto de diretrizes que burla abertamente as normas urbanísticas do próprio Plano Diretor (PD) recém-aprovado.

Através de 23 artigos, o PLC 163/2024 permite que parâmetros urbanísticos de construção sejam excedidos, inclusive contrariando as diretrizes já flexibilizadas do próprio PD, desde que sujeito ao pagamento de contrapartidas. As permissões para exceder de forma absurda e aberrante os parâmetros de construção, sem limites de nenhum tipo, são aplicadas a retrofit de edifícios já existentes (permitindo explicitamente as demolições dos mesmos), pavimentos de coberturas, jiraus e varandas, acréscimos horizontais, volumetria das unidades habitacionais, etc., desde que alguém pague por eles.

A própria seção das “Condições Gerais” do PLC 163/2024 institucionaliza a prática de “não há limites, desde que pagando” ao estabelecer explicitamente: “Na hipótese de utilização de parâmetros urbanísticos que excedam aqueles definidos pela legislação em vigor, incidente sobre o imóvel, será cobrada contrapartida”.

A prática da regularização de construções feitas sem licença existe, na cidade do Rio de Janeiro, desde 1946. No entanto, o seu sentido original era a punição do infrator, não permitindo em hipótese alguma a construção fora dos parâmetros estabelecidos pela legislação. No entanto, a Lei Complementar nº 31 de 1997 instituiu que “as obras de construção, modificação ou acréscimo, comprovadamente existentes até à data da publicação desta Lei Complementar, executadas sem o devido licenciamento, e que contrariem normas urbanísticas e edilícias vigentes, poderão ser legalizadas (…) com pagamento ao Município de uma contrapartida.”

Esse é o sentido atualmente vigente da famigerada mais valia, cujo âmbito foi ampliado pela Lei Complementar nº 192 de 18 de julho de 2018, que estabelece a possibilidade de que a transgressão da legislação seja antecipada, ou seja, o proprietário pode fazer um projeto fora da legislação desde que pague a contrapartida. É a extensão da mais valia ao “mais valerá”. Chegou-se ao ponto de o Governo Marcelo Crivella ter proposto e aprovado na Câmara de Vereadores, em 2020, um projeto de Lei Complementar em que a mais valia tinha claro sentido arrecadatório, razão pela qual foi posteriormente considerada inconstitucional e revogada. A consolidação dessa tendência faz com que parte expressiva das construções na cidade sejam feitas sem licença, contribuindo para a deslegitimação do planejamento.

Não é por acaso que, na atual gestão, a Secretaria de Urbanismo, existente desde a década de 1980, tenha sido relegada a mero departamento da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Inovação e que a Secretaria de Habitação, completamente fragilizada, tenha tido seis diferentes secretários nos últimos anos. A deslegitimação do planejamento ao mesmo tempo em que aumenta o poder discricionário dos legisladores e do prefeito, frequentemente a serviço de interesses escusos, ainda estabelece cada vez mais o “mercado” como princípio de organização da cidade, em detrimento das diretrizes estabelecidas pelo Estatuto da Cidade e pelo Plano Diretor: o desenvolvimento sustentável, a função social da cidade e da propriedade, a valorização, a proteção e o uso sustentável do meio ambiente.

O INCT Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro condena veementemente a inclusão desse pacote de normativas na pauta da Câmara Municipal. Observamos que está sendo prática rotineira do Estado o uso de instrumentos auxiliares como emendas, revisões e projetos de lei para sujeitar os interesses coletivos aos do mercado no processo de produção da cidade. Mercantiliza-se diretrizes de construção, normativas urbanas, áreas ambientais e espaços públicos, desde que existam agentes que paguem para usufruir. Consideramos esse pacote um desserviço ao já obstaculizado processo de deliberação sobre o Planejamento Urbano nas cidades.

Unimos nossas vozes às demandas de arquitetos e especialistas que exigem o arquivamento de ambas as iniciativas e a interrupção de sua tramitação. É urgente instaurar um espaço de diálogo com os atores da sociedade civil, parar de ignorar o Conselho Municipal de Política Urbana (COMPUR), como bem reclama o IAB-RJ, e deliberar sobre os processos de implementação do PD para a próxima década. Como temos reivindicado em diversas ocasiões, existe um enorme repertório de propostas e análise da sociedade civil que necessita ser levado em conta para a formação de uma cidade justa, sustentável e equitativa, sujeitando os interesses do mercado ao do coletivo.

 

Fonte: FolhaPress/Manifesto de Metrópoles das Cidades

 

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