Paulo
Kliass: Há diferenças entre Haddad e o Financismo?
A
cada dia que passa reduzem-se as diferenças que eventualmente tenham existido
em um passado distante entre o projeto estratégico da nata do financismo para o
Brasil e as propostas do Ministro da Fazenda para resolver as questões que ele
considera mais relevantes no campo da economia. Essa novela é longa e pode ter
tido um ponto de virada importante no momento em que o Presidente recém eleito,
ainda em 2022, anunciou no dia 9 de dezembro o seu preferido para o comando da
economia em seu terceiro mandato.
A
partir daquele instante tem início uma caminhada “solo” de Haddad, que sentiu
contar com bastante autonomia para apontar um rumo em sentido contrário a quase
tudo aquilo que o candidato vencedor do pleito prometera ao longo de sua
campanha. Lembremos que Lula havia dito que pretendia realizar 40 anos em 4, inspirado no mote do ex Presidente Juscelino Kubitschek, que
falava em fazer 50 anos em 5. Vale lembrar que, na década de 1950, o mandato
presidencial era de um quinquênio. Por outro lado, Lula prometera fazer mais e melhor do que ele mesmo havia realizado durante os seus dois
primeiros mandatos, entre 2003 e 2010.
Ora,
bastariam apenas esses dois desejos, partindo daquele que subiria a rampa do
Palácio do Planalto em 1 de janeiro, para se perceber que seria necessário
levar em frente um programa de governo e uma estratégia de política econômica
que significassem mudança. Na verdade, tratava-se de apontar para um novo
padrão, uma virada significativa em relação ao liberalismo austericida que
havia caracterizado os 6 anos do desastre perpetrado durante os mandatos de
Temer e de Bolsonaro. Além de terem sido verbalizadas por Lula durante vários
momentos ao longo da campanha, estas duas indicações faziam todo sentido do
ponto de vista da retomada de um projeto de desenvolvimento social e econômico,
cumprindo com as necessidades da grande maioria da população e também atendendo
aos interesses dos setores ligados à economia real e produtiva. Só que não se
empolgava muito com tal possibilidade era a nata do financismo em nossas
terras.
·
Pouca coisa além da
austeridade.
Dentre
tantos aspectos que compõem o cardápio de instrumentos de política econômica,
para o cumprimento de tais metas de governo ganham destaque a política fiscal e
a política monetária. Reconstruir tudo aquilo que havia sido destruído em
termos de instituições públicas e de suas capacidades estatais implicaria um
programa de retomada de investimentos púbicos e de elevação dos níveis de
despesas orçamentárias bastante expressivos. Isso significaria romper com a
lógica da austeridade fiscal imposta pelo teto de gastos, ou seja, por meio da
revogação pura e simples da Emenda Constitucional 95, tal como também prometido
por Lula.
Do
ponto de vista da política monetária, seria urgente também um redirecionamento
do patamar da taxa oficial de juros. Ocorre que a lei complementar 179, cuja
aprovação pelo Congresso Nacional em 2021 foi entusiasticamente apoiada por
Bolsonaro e Paulo Guedes, estabeleceu uma quase independência ao Banco Central
(BC). Os membros da diretoria do órgão passaram a contar com mandato fixo e
Lula começa seu terceiro quadriênio tendo 9 bolsonaristas à frente do BC,
liderados pelo Presidente Roberto Campos Neto. Como estes dirigentes são os
próprios integrantes do Comitê de Política Monetária (COPOM), tem início uma
estratégia de boicote a uma possível alteração dos rumos da economia sob Lula.
A SELIC permaneceu na estratosfera de 13,75% anuais durante 10 meses e só
depois sofreu um lento processo de redução cosmética e milimétrica.
Ora,
frente a esse quadro complexo, como se comportou o então novo Ministro da
Fazenda? Para surpresa de todos que apostavam na mudança, ele simplesmente
adotou o discurso dos setores mais retrógrados da ortodoxia neoliberal,
assumindo como sua meta prioritária a continuidade da austeridade nas contas
públicas. Uma loucura! Assim, conseguiu convencer seu chefe a respeito da
importância de se colocar um Novo Arcabouço Fiscal no lugar no teto de gastos.
Dessa forma, as diretrizes do novo modelo de austericídio passaram a fazer
parte da Lei Complementar 200 e não mais de dispositivo constitucional. Haddad negociou os termos do projeto apenas com Roberto Campos
Neto e com meia dúzia de presidentes de bancos e instituições financeiras privadas. A proposição manteve o foco no resultado a
partir da lógica das contas primárias, excluindo do cálculo qualquer tipo de
controle sobre as despesas financeiras. Por outro lado, se mantém a prioridade
na busca de resultados fiscais por meio da compressão das despesas em relação
ao crescimento das receitas. Nada poderia agradar mais à nata do financismo.
·
Política fiscal
sequestrada pelo arcabouço.
Na
sequência, Haddad mantém uma relação de condescendência civilizada com relação
ao arrocho monetário perpetrado pelo COPOM. Além disso, toda a expectativa
criada com a entrada dos novos diretores do BC indicados por ele a Lula caíram
na mais completa frustração. Pouco a pouco chegou-se ao quadro dos quatro
membros mais recentes atualmente integrando a diretoria. No entanto, em todas
as reuniões do COPOM, a chamada “bancada do Haddad” votou com as propostas
irrelevantes do presidente do órgão. Apenas na última, indicaram uma diferença
microscópica de 0,25% no ritmo de redução da SELIC. Mas o fato é que acomodaram
com a manutenção da segunda maior taxa real de juros do mundo. Assim, é de se
indagar o que vai ocorrer, de fato, a partir do início do ano que vem, quando
finalmente Lula vai ter indicado a maioria dos diretores e o próximo presidente
da autarquia.
A
obsessão do Ministro da Fazenda com o cumprimento de metas de superávit
primário deveriam ser a vergonha alheia de um governo do Partido dos
Trabalhadores. A conduta de Haddad deve fazer inveja a qualquer dirigente do
financismo, tamanha é a sua disposição em impor tetos, estabelecer limites,
cortar rubricas da área social e promover sobras para pagar juro da dívida
pública. Não contente com a sua condução trágica do cotidiano das contas
públicas na perspectiva do arrocho, ele avança em etapas estratégicas que
nenhum ministro da direita ousou fazer. Ele anuncia a necessidade de retirar os
pisos constitucionais de saúde e educação, além propor a desvinculação dos
benefícios da previdência social em relação ao valor do salário mínimo. Um
desvario completo!
·
Ponte para o Futuro
sob Haddad.
Ora,
nestas condições não existe mesmo praticamente nenhuma diferença significativa
entre a conduta de Haddad e o financismo. Na verdade, o atual ministro parece
ter se inspirado no diagnóstico e nas sugestões do documento “Ponte para o Futuro”,
apresentado ainda em 2015 pela direção do PMDB, como tentativa de ampliar o
apoio político do grande capital e do sistema financeiro para o projeto
golpista de Michel Temer. O documento era uma carta de intenções do
conservadorismo neoliberal e se transformou em plataforma de governo depois que
o impeachment de Dilma foi aprovado pelo Congresso Nacional em
2016.
O
que se pode perceber é que Haddad busca se apresentar como uma linha de
continuidade entre o processo de aprofundamento do neoliberalismo e da redução
dos espaços do Estado do período anterior e o legado que eventualmente vai ser
deixado pelo terceiro mandato de Lula. Com exceção da venda de empresas
estatais, cujo processo realmente foi sustado pelo novo Presidente da
República, o restante da agenda conservadora ainda segue em curso. No entanto,
apesar de todo o esforço de praticar o bom mocismo, o Ministro da Fazenda segue
sendo observado com alguma desconfiança por parte de setores das elites. No
momento mais recente, a estratégia de buscar aumento de receitas para cumprir
com o superávit primário tem gerado críticas de toda ordem partindo do empresariado.
Ocorre
que todo o desgaste que ele tem provocado junto ao movimento social e aos
setores progressistas por conta do austericídio cria dificuldades de apoio em
tais circunstâncias. Afinal, a sua obstinação com cortes e a justificativa do
arrocho a todo o custo gera impaciência junto ao movimento social. E quem sai
em defesa de Haddad nesta hora? Ninguém mais, ninguém nem menos do que o alto
comando da banca privada. Haddad vai se encontrar com representantes do
financismo para angariar apoio, como ocorreu com as recentes declarações da
Federação dos Bancos (FENABRAN), que afirma que o Ministro “conta com apoio
institucional do setor bancário”.
·
Lula precisa corrigir
os rumos da economia.
Por
outro lado, ideólogos importantes do capital financeiro também buscam preservar
Haddad quando se lançam a criticar o governo Lula. Um caso emblemático é Armínio Fraga, que se aproximou do Ministro logo no início do governo e se
mostrou entusiasta da agenda da austeridade. Em entrevista à época, ele dizia
“vejo as medidas de Haddad com bons olhos. É o início de um trabalho difícil”.
E, de lá prá cá, o professor do Insper tem realmente realizado um grande
esforço para continuar agradando aos representantes do financismo.
Enquanto
ele se sentir prestigiado por Lula nessa sua cruzada em prol do capital
financeiro e da austeridade, nada vai detê-lo. Se o Presidente quiser mostrar
ao País que existe alguma diferença entre a estratégia de seu terceiro mandato
para economia e o projeto da banca privada ele vai precisar dar um freio de
arrumação nesse atalho neoliberal que Haddad tem procurado abrir. No próximo
dia 30 de junho completaremos um ano e meio do atual quadriênio. O tempo
passa rápido e a impaciência da população não costuma perdoar o não cumprimento
das expectativas geradas.
¨
A busca de um projeto
democrático de Nação. Por Luís Nassif
Há
uma discussão crescente sobre as características do novo mundo, que surge da
tecnologia digital. A revolução industrial trouxe a luta de classes, empregador
contra empregado, e a classe dos financistas, pairando sobre todos.
A
ultra financeirização das últimas décadas trouxe uma nova realidade, a do
precariado, em lugar do proletariado. E a do financista-rentista em lugar do
empreendedor – o que ergue empresas. Trata-se de uma discussão complexa, que
envolve os melhores economistas e cientistas políticos do mundo.
Vamos
nos debruçar sobre a realidade brasileira e tentar sistematizar os atores
envolvidos.
Grosso
modo, há uma grande divisão: o pessoal da produção e o pessoal das finanças. No
primeiro grupo estão os personagens com as seguintes características:
- São geradores de emprego e pagadores de impostos.
- São clientes do crédito oferecido pelas instituições
financeiras.
- Trabalham diretamente com a produção – como fabricantes ou
comerciantes.
Entram
nessa categoria, pequenos, médios e grandes empresários e – importante – seus
trabalhadores; mais as formas associativas de produção – as cooperativas, a
agricultura familiar em torno do MST -, e os pequenos empresários individuais.
Em
uma economia saudável, os financistas adiantam financiamento para seus clientes
– pessoas físicas ou jurídicas -, que adquirem bens de produção ou de consumo,
criando um mercado robusto.
No
caso brasileiro, a enormidade das taxas de juros cobradas faz com que a maior
parte da poupança brasileira seja esterilizada em distribuições de dividendos,
que vão apenas tornar os ricos mais ricos e exportar parte dos lucros para
fundos internacionais.
Tudo
passa a ser financeirizado. Para investir em uma empresa, o investidor vai analisar
a Taxa Interna de Retorno, uma forma de comparar com as taxas de juros dos
títulos públicos ou privados. E o piso é dado pela taxa básica de juros – no
caso brasileiro, a taxa Selic. Ele não analisa a empresa pelo que poderá se
tornar no futuro, mas pelo que rende em dividendos no imediato.
Esta
semana, o Copom (Comitê de Política Monetária) reune-se para definir a nova
Selic. Desde ontem, instaurou-se um terrorismo no mercado, com o dólar subindo,
as taxas longas subindo, em um claro movimento de cartelização. Taxas elevadas
derrubam o valor das empresas, enxugam o dinheiro que iria para consumo e jogam
a economia em uma semi-estagnação – situação em que se encontra o mundo e,
particularmente o Brasil, há muito tempo.
Com
o valor das empresas despencando, com o torniquete dos juros comprimindo seu
capital de giro, perdem os empresários e os empregados. Não se trata mais de
disputar a mais valia, porque ela já não há. Em outros países, leves movimentos
de taxas de juros são utilizados para reduzir as demandas salariais por
reajustes e, por aí, segurar os movimentos do câmbio e da inflação. Por aqui, é
veneno na veia, deixando a economia entorpecida.
Sem
perspectivas de lucrar com a atividade real, quais as alternativas dos
rentistas:
- Chupar o sangue do Estado com a Selic nas nuvens.
- Adquirir empresas estatais na bacia das almas.
- Adquirir empresas em dificuldade para normalizar seu caixa
e vender com lucro.
Tem-se
aí – no extraordinário nível dos juros – o ponto central para um pacto entre o
Estado e a produção. Aqueles setores com maior poder político conseguem
isenções fiscais e outras benesses, pressionando os gastos públicos, mas longe,
ainda, da grande conta dos juros da dívida pública.
Recentemente,
o professor Eugênio Bucci inverteu uma frase clássica e criou seu oposto:
“desinformação é poder”. Há um insistente trabalho de criação de bodes
expiatórios para o déficit. Não se trata dos R$ 7 trilhões da dívida pública,
80% dos quais em função dos juros sobre juros; nem as isenções para o
agronegócio, para a distribuição de combustíveis, para a Zona Franca de Manaus.
Os culpados são os gastos com Educação, Saúde, pesquisas, enfim, tudo aquilo
que é central para a construção de uma Nação.
É
uma mixórdia invencível de notícias falsas sobre o déficit, repetida por
papagaios das mais diferentes formações.
Não
tenho a menor ideia sobre o que virá pela frente. Nos anos 20, a mistura de
excessos da financeirização, decadência do padrão ouro – e do Banco da
Inglaterra como maestro dos bancos centrais de países emergentes –
desmoralizaram a democracia, dando início a outros modelos de gestão, do
comunismo ao nazismo.
E
agora? A China dá o exemplo, muito inspirada no modelo brasileiro dos anos 50 –
quando o Estado entrava com as grandes empresas de infraestrutura, pavimentando
o caminho para o setor privado. O mercado de energia eólica da China, por
exemplo, é fruto da parceria do Estado – que montou uma gigantesca empresa de
equipamentos eólicos – e centenas de empresas privadas, usando os equipamentos
para a geração de energia.
Mas
a China tem duas condições essenciais, que faltam ao Brasil: um governo forte e
esclarecido. No Brasil, há uma pulverização partidária, a infiltração da
religião por todos os poros da política, um presidencialismo enfraquecido. De
onde surgirá, então, a solução?
Enquanto
não se desenha um projeto de Nação, há que se investir em um dos grandes ativos
nacionais: o associativismo, na forma de cooperativas e de movimentos sociais,
nos arranjos produtivos, nos consórcios. E, a partir daí, firmar o grande pacto
com a produção. Lula tem que usar sua retórica objetiva – que conquistou
ovações nas reuniões da Organização Internacional do Trabalho e no G-20 – para
convencer industriais, comerciantes, proletariado e precariado, poder público,
que todos somos parceiros da grande bandeira de reconstrução nacional: o
desenvolvimento. E o grande desafio é derrubar juros e spreads bancários, para
induzir o enorme capital financeiro, acumulado em décadas de bonança, a
investir no setor real, na infraestrutura, na indústria de base, nos
estaleiros, nos consórcios de empresas.
Sem
dispor de um projeto democrático de Nação, Lula continuará brilhando no
exterior. E sendo alvo de uma campanha negativa diuturna da mídia.
Fonte:
Jornal GGN
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