quarta-feira, 19 de junho de 2024

Paulo Kliass: Há diferenças entre Haddad e o Financismo?

A cada dia que passa reduzem-se as diferenças que eventualmente tenham existido em um passado distante entre o projeto estratégico da nata do financismo para o Brasil e as propostas do Ministro da Fazenda para resolver as questões que ele considera mais relevantes no campo da economia. Essa novela é longa e pode ter tido um ponto de virada importante no momento em que o Presidente recém eleito, ainda em 2022, anunciou no dia 9 de dezembro o seu preferido para o comando da economia em seu terceiro mandato.

A partir daquele instante tem início uma caminhada “solo” de Haddad, que sentiu contar com bastante autonomia para apontar um rumo em sentido contrário a quase tudo aquilo que o candidato vencedor do pleito prometera ao longo de sua campanha. Lembremos que Lula havia dito que pretendia realizar 40 anos em 4, inspirado no mote do ex Presidente Juscelino Kubitschek, que falava em fazer 50 anos em 5. Vale lembrar que, na década de 1950, o mandato presidencial era de um quinquênio. Por outro lado, Lula prometera fazer mais e melhor do que ele mesmo havia realizado durante os seus dois primeiros mandatos, entre 2003 e 2010.

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Ora, bastariam apenas esses dois desejos, partindo daquele que subiria a rampa do Palácio do Planalto em 1 de janeiro, para se perceber que seria necessário levar em frente um programa de governo e uma estratégia de política econômica que significassem mudança. Na verdade, tratava-se de apontar para um novo padrão, uma virada significativa em relação ao liberalismo austericida que havia caracterizado os 6 anos do desastre perpetrado durante os mandatos de Temer e de Bolsonaro. Além de terem sido verbalizadas por Lula durante vários momentos ao longo da campanha, estas duas indicações faziam todo sentido do ponto de vista da retomada de um projeto de desenvolvimento social e econômico, cumprindo com as necessidades da grande maioria da população e também atendendo aos interesses dos setores ligados à economia real e produtiva. Só que não se empolgava muito com tal possibilidade era a nata do financismo em nossas terras.

·        Pouca coisa além da austeridade.

Dentre tantos aspectos que compõem o cardápio de instrumentos de política econômica, para o cumprimento de tais metas de governo ganham destaque a política fiscal e a política monetária. Reconstruir tudo aquilo que havia sido destruído em termos de instituições públicas e de suas capacidades estatais implicaria um programa de retomada de investimentos púbicos e de elevação dos níveis de despesas orçamentárias bastante expressivos. Isso significaria romper com a lógica da austeridade fiscal imposta pelo teto de gastos, ou seja, por meio da revogação pura e simples da Emenda Constitucional 95, tal como também prometido por Lula.

Do ponto de vista da política monetária, seria urgente também um redirecionamento do patamar da taxa oficial de juros. Ocorre que a lei complementar 179, cuja aprovação pelo Congresso Nacional em 2021 foi entusiasticamente apoiada por Bolsonaro e Paulo Guedes, estabeleceu uma quase independência ao Banco Central (BC). Os membros da diretoria do órgão passaram a contar com mandato fixo e Lula começa seu terceiro quadriênio tendo 9 bolsonaristas à frente do BC, liderados pelo Presidente Roberto Campos Neto. Como estes dirigentes são os próprios integrantes do Comitê de Política Monetária (COPOM), tem início uma estratégia de boicote a uma possível alteração dos rumos da economia sob Lula. A SELIC permaneceu na estratosfera de 13,75% anuais durante 10 meses e só depois sofreu um lento processo de redução cosmética e milimétrica.

Ora, frente a esse quadro complexo, como se comportou o então novo Ministro da Fazenda? Para surpresa de todos que apostavam na mudança, ele simplesmente adotou o discurso dos setores mais retrógrados da ortodoxia neoliberal, assumindo como sua meta prioritária a continuidade da austeridade nas contas públicas. Uma loucura! Assim, conseguiu convencer seu chefe a respeito da importância de se colocar um Novo Arcabouço Fiscal no lugar no teto de gastos. Dessa forma, as diretrizes do novo modelo de austericídio passaram a fazer parte da Lei Complementar 200 e não mais de dispositivo constitucional. Haddad negociou os termos do projeto apenas com Roberto Campos Neto e com meia dúzia de presidentes de bancos e instituições financeiras privadas. A proposição manteve o foco no resultado a partir da lógica das contas primárias, excluindo do cálculo qualquer tipo de controle sobre as despesas financeiras. Por outro lado, se mantém a prioridade na busca de resultados fiscais por meio da compressão das despesas em relação ao crescimento das receitas. Nada poderia agradar mais à nata do financismo.

·        Política fiscal sequestrada pelo arcabouço.

Na sequência, Haddad mantém uma relação de condescendência civilizada com relação ao arrocho monetário perpetrado pelo COPOM. Além disso, toda a expectativa criada com a entrada dos novos diretores do BC indicados por ele a Lula caíram na mais completa frustração. Pouco a pouco chegou-se ao quadro dos quatro membros mais recentes atualmente integrando a diretoria. No entanto, em todas as reuniões do COPOM, a chamada “bancada do Haddad” votou com as propostas irrelevantes do presidente do órgão. Apenas na última, indicaram uma diferença microscópica de 0,25% no ritmo de redução da SELIC. Mas o fato é que acomodaram com a manutenção da segunda maior taxa real de juros do mundo. Assim, é de se indagar o que vai ocorrer, de fato, a partir do início do ano que vem, quando finalmente Lula vai ter indicado a maioria dos diretores e o próximo presidente da autarquia.

A obsessão do Ministro da Fazenda com o cumprimento de metas de superávit primário deveriam ser a vergonha alheia de um governo do Partido dos Trabalhadores. A conduta de Haddad deve fazer inveja a qualquer dirigente do financismo, tamanha é a sua disposição em impor tetos, estabelecer limites, cortar rubricas da área social e promover sobras para pagar juro da dívida pública. Não contente com a sua condução trágica do cotidiano das contas públicas na perspectiva do arrocho, ele avança em etapas estratégicas que nenhum ministro da direita ousou fazer. Ele anuncia a necessidade de retirar os pisos constitucionais de saúde e educação, além propor a desvinculação dos benefícios da previdência social em relação ao valor do salário mínimo. Um desvario completo!

·        Ponte para o Futuro sob Haddad.

Ora, nestas condições não existe mesmo praticamente nenhuma diferença significativa entre a conduta de Haddad e o financismo. Na verdade, o atual ministro parece ter se inspirado no diagnóstico e nas sugestões do documento “Ponte para o Futuro”, apresentado ainda em 2015 pela direção do PMDB, como tentativa de ampliar o apoio político do grande capital e do sistema financeiro para o projeto golpista de Michel Temer. O documento era uma carta de intenções do conservadorismo neoliberal e se transformou em plataforma de governo depois que o impeachment de Dilma foi aprovado pelo Congresso Nacional em 2016.

O que se pode perceber é que Haddad busca se apresentar como uma linha de continuidade entre o processo de aprofundamento do neoliberalismo e da redução dos espaços do Estado do período anterior e o legado que eventualmente vai ser deixado pelo terceiro mandato de Lula. Com exceção da venda de empresas estatais, cujo processo realmente foi sustado pelo novo Presidente da República, o restante da agenda conservadora ainda segue em curso. No entanto, apesar de todo o esforço de praticar o bom mocismo, o Ministro da Fazenda segue sendo observado com alguma desconfiança por parte de setores das elites. No momento mais recente, a estratégia de buscar aumento de receitas para cumprir com o superávit primário tem gerado críticas de toda ordem partindo do empresariado.

Ocorre que todo o desgaste que ele tem provocado junto ao movimento social e aos setores progressistas por conta do austericídio cria dificuldades de apoio em tais circunstâncias. Afinal, a sua obstinação com cortes e a justificativa do arrocho a todo o custo gera impaciência junto ao movimento social. E quem sai em defesa de Haddad nesta hora? Ninguém mais, ninguém nem menos do que o alto comando da banca privada. Haddad vai se encontrar com representantes do financismo para angariar apoio, como ocorreu com as recentes declarações da Federação dos Bancos (FENABRAN), que afirma que o Ministro “conta com apoio institucional do setor bancário”.

·        Lula precisa corrigir os rumos da economia.

Por outro lado, ideólogos importantes do capital financeiro também buscam preservar Haddad quando se lançam a criticar o governo Lula. Um caso emblemático é Armínio Fraga, que se aproximou do Ministro logo no início do governo e se mostrou entusiasta da agenda da austeridade. Em entrevista à época, ele dizia “vejo as medidas de Haddad com bons olhos. É o início de um trabalho difícil”. E, de lá prá cá, o professor do Insper tem realmente realizado um grande esforço para continuar agradando aos representantes do financismo.

Enquanto ele se sentir prestigiado por Lula nessa sua cruzada em prol do capital financeiro e da austeridade, nada vai detê-lo. Se o Presidente quiser mostrar ao País que existe alguma diferença entre a estratégia de seu terceiro mandato para economia e o projeto da banca privada ele vai precisar dar um freio de arrumação nesse atalho neoliberal que Haddad tem procurado abrir. No próximo dia 30 de junho completaremos um ano e meio do atual quadriênio.  O tempo passa rápido e a impaciência da população não costuma perdoar o não cumprimento das expectativas geradas.

 

¨      A busca de um projeto democrático de Nação. Por Luís Nassif

Há uma discussão crescente sobre as características do novo mundo, que surge da tecnologia digital. A revolução industrial trouxe a luta de classes, empregador contra empregado, e a classe dos financistas, pairando sobre todos.

A ultra financeirização das últimas décadas trouxe uma nova realidade, a do precariado, em lugar do proletariado. E a do financista-rentista em lugar do empreendedor – o que ergue empresas. Trata-se de uma discussão complexa, que envolve os melhores economistas e cientistas políticos do mundo.

Vamos nos debruçar sobre a realidade brasileira e tentar sistematizar os atores envolvidos.

Grosso modo, há uma grande divisão: o pessoal da produção e o pessoal das finanças. No primeiro grupo estão os personagens com as seguintes características:

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  1. São geradores de emprego e pagadores de impostos.
  2. São clientes do crédito oferecido pelas instituições financeiras.
  3. Trabalham diretamente com a produção – como fabricantes ou comerciantes.

Entram nessa categoria, pequenos, médios e grandes empresários e – importante – seus trabalhadores; mais as formas associativas de produção – as cooperativas, a agricultura familiar em torno do MST -, e os pequenos empresários individuais.

Em uma economia saudável, os financistas adiantam financiamento para seus clientes – pessoas físicas ou jurídicas -, que adquirem bens de produção ou de consumo, criando um mercado robusto.

No caso brasileiro, a enormidade das taxas de juros cobradas faz com que a maior parte da poupança brasileira seja esterilizada em distribuições de dividendos, que vão apenas tornar os ricos mais ricos e exportar parte dos lucros para fundos internacionais.

Tudo passa a ser financeirizado. Para investir em uma empresa, o investidor vai analisar a Taxa Interna de Retorno, uma forma de comparar com as taxas de juros dos títulos públicos ou privados. E o piso é dado pela taxa básica de juros – no caso brasileiro, a taxa Selic. Ele não analisa a empresa pelo que poderá se tornar no futuro, mas pelo que rende em dividendos no imediato.

Esta semana, o Copom (Comitê de Política Monetária) reune-se para definir a nova Selic. Desde ontem, instaurou-se um terrorismo no mercado, com o dólar subindo, as taxas longas subindo, em um claro movimento de cartelização. Taxas elevadas derrubam o valor das empresas, enxugam o dinheiro que iria para consumo e jogam a economia em uma semi-estagnação – situação em que se encontra o mundo e, particularmente o Brasil, há muito tempo.

Com o valor das empresas despencando, com o torniquete dos juros comprimindo seu capital de giro, perdem os empresários e os empregados. Não se trata mais de disputar a mais valia, porque ela já não há. Em outros países, leves movimentos de taxas de juros são utilizados para reduzir as demandas salariais por reajustes e, por aí, segurar os movimentos do câmbio e da inflação. Por aqui, é veneno na veia, deixando a economia entorpecida.

Sem perspectivas de lucrar com a atividade real, quais as alternativas dos rentistas:

  1. Chupar o sangue do Estado com a Selic nas nuvens.
  2. Adquirir empresas estatais na bacia das almas.
  3. Adquirir empresas em dificuldade para normalizar seu caixa e vender com lucro.

Tem-se aí – no extraordinário nível dos juros – o ponto central para um pacto entre o Estado e a produção. Aqueles setores com maior poder político conseguem isenções fiscais e outras benesses, pressionando os gastos públicos, mas longe, ainda, da grande conta dos juros da dívida pública.

Recentemente, o professor Eugênio Bucci inverteu uma frase clássica e criou seu oposto: “desinformação é poder”. Há um insistente trabalho de criação de bodes expiatórios para o déficit. Não se trata dos R$ 7 trilhões da dívida pública, 80% dos quais em função dos juros sobre juros; nem as isenções para o agronegócio, para a distribuição de combustíveis, para a Zona Franca de Manaus. Os culpados são os gastos com Educação, Saúde, pesquisas, enfim, tudo aquilo que é central para a construção de uma Nação.

É uma mixórdia invencível de notícias falsas sobre o déficit, repetida por papagaios das mais diferentes formações.

Não tenho a menor ideia sobre o que virá pela frente. Nos anos 20, a mistura de excessos da financeirização, decadência do padrão ouro – e do Banco da Inglaterra como maestro dos bancos centrais de países emergentes – desmoralizaram a democracia, dando início a outros modelos de gestão, do comunismo ao nazismo.

E agora? A China dá o exemplo, muito inspirada no modelo brasileiro dos anos 50 – quando o Estado entrava com as grandes empresas de infraestrutura, pavimentando o caminho para o setor privado. O mercado de energia eólica da China, por exemplo, é fruto da parceria do Estado – que montou uma gigantesca empresa de equipamentos eólicos – e centenas de empresas privadas, usando os equipamentos para a geração de energia.

Mas a China tem duas condições essenciais, que faltam ao Brasil: um governo forte e esclarecido. No Brasil, há uma pulverização partidária, a infiltração da religião por todos os poros da política, um presidencialismo enfraquecido. De onde surgirá, então, a solução?

Enquanto não se desenha um projeto de Nação, há que se investir em um dos grandes ativos nacionais: o associativismo, na forma de cooperativas e de movimentos sociais, nos arranjos produtivos, nos consórcios. E, a partir daí, firmar o grande pacto com a produção. Lula tem que usar sua retórica objetiva – que conquistou ovações nas reuniões da Organização Internacional do Trabalho e no G-20 – para convencer industriais, comerciantes, proletariado e precariado, poder público, que todos somos parceiros da grande bandeira de reconstrução nacional: o desenvolvimento. E o grande desafio é derrubar juros e spreads bancários, para induzir o enorme capital financeiro, acumulado em décadas de bonança, a investir no setor real, na infraestrutura, na indústria de base, nos estaleiros, nos consórcios de empresas.

Sem dispor de um projeto democrático de Nação, Lula continuará brilhando no exterior. E sendo alvo de uma campanha negativa diuturna da mídia.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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