A palavra
como flecha – We’e’ena Tikuna
We’e’ena
Tikuna nasceu em 1988, em Umariaçu, área situada na periferia do município de
Tabatinga, no extremo noroeste do Amazonas. Umariaçu é considerada uma das
maiores comunidades indígenas Tikuna do Alto Solimões, por sua densidade
populacional composta por migrantes de várias localidades. Desde os anos 1970,
eles chegam da parte alta do rio, que faz divisa com Peru e Colômbia, e da
parte baixa, composta por comunidades próximas.
O
ano do nascimento de We’e’ena, nome que significa “a onça que nada para o outro
lado do rio”, foi marcado por dois eventos que exemplificam a complexidade das
disputas em torno das terras indígenas no Brasil. O primeiro, ligado
diretamente à luta pela ocupação das terras Tikuna, na área de São Leopoldo, em
Benjamin Constant, também na região do Alto Solimões. Episódio que ficou
conhecido como o massacre do Capacete, exemplo da violência dos conflitos que, há décadas, envolviam
posseiros e Tikunas. Massacre que provocou a morte de 12 indígenas, além de
deixar outros 21 feridos, entre homens, mulheres e crianças.
O
segundo evento foi um marco na história recente do Brasil, a promulgação
da Constituição Federal de 1988. Carta que trouxe duas disposições importantes em relação aos
direitos indígenas: o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam
e à diversidade étnica e cultural, previsto no art. 231 e
seus parágrafos; e o direito ao pleno exercício de sua capacidade processual
para defesa de seus interesses, inscrito no art. 232. No mesmo
ano, esses dois acontecimentos expressaram simultaneamente terror e esperança
na legitimação da vida indígena, sob ameaça há cinco séculos.
Hoje,
a disputa legal das demarcações, em diversas partes do país, está circunscrita
ao poder do Estado brasileiro, num périplo longo e tortuoso que abarca desde a
etapa de reconhecimento até a fase de regularização dos territórios. Se a
Constituição em vigor passou a garantir direitos e, sobretudo, eliminou a
tutela do Estado, ao romper a lógica que considerava os indígenas seres
incapazes para a vida civil e para o exercício de seus direitos, a realidade
mostra um fato: o poder de decisão continua nas mãos dos homens brancos. Eles
atacam a própria Carta, com emendas a favor dos interesses de corporações, de
políticos, de posseiros e de latifundiários do agronegócio.
As
três últimas décadas após a promulgação da Constituição, que coincidem com a
infância, juventude e formação de We’e’ena, expuseram esses avanços e
retrocessos em relação ao direito à terra, à saúde indígena, à educação e,
sobretudo, ao desafio intransponível de mover as estruturas coloniais do
Brasil. Pouca coisa se alterou na luta diária contra a violência marcada pela
invasão por seringueiros, madeireiros, comerciantes, pescadores, agricultores,
criadores de gado ou pelas barragens que comprometem modos de vida dos povos
originários e ecossistemas na Amazônia.
Mas
a jovem, cujo nome ´We’e’ena traz a imagem da onça que se move pelas águas do
rio, soube desde sempre dar conta de uma jornada singular para chegar na outra
margem desse sistema opressor. A travessia dessa correnteza foi promovida num
primeiro momento pela própria família, que buscou como alternativa a mudança
para Manaus.
·
Uma comunidade Tikuna
em plena capital
Quarta
filha de Totchimaüna, nome que significa “três araras voando”, com o Tikuna
Nutchametü rü Metchitücü, cujo nome quer dizer “onça com rosto redondo e
bonito”, We’e’ena chegou à capital do Amazonas aos doze anos de idade, junto
aos pais e aos cinco irmãos, com o objetivo de estudar o português. “Meus pais
sempre tiveram a consciência da importância de termos educação e aprendermos a
ler e escrever, a dominar a língua dos brancos para conhecer os nossos
direitos”.
Se
a primeira infância foi aldeada, vivendo na comunidade de Umariaçu, falando
apenas a língua Tikuna, a adolescência ficou marcada pela mudança para a
capital. Para lidar com a ameaça da perda de vínculo com a ancestralidade na
cidade grande, os pais de We’e’ena adotaram uma estratégia que garantiu a
mobilização de outras famílias Tikuna e a criação da primeira comunidade
indígena urbana, localizada na zona leste de Manaus, no bairro Cidade de Deus.
Hoje o grupo conta com 14 famílias residentes e com os estudantes Tikunas que
vivem temporariamente na capital para completar os estudos e defender a própria
comunidade, na região do Alto Solimões. “Meu pai e minha mãe sempre nos
conscientizaram sobre as minhas origens. Sempre tive orgulho da minha raiz e
identidade. Eu tenho todas as caraterísticas Tikuna, não tenho como me
esconder”.
O
choque da mudança para a capital foi inevitável e a pequena Tikuna sentiu na
pele as dificuldades de aprendizagem da língua portuguesa e, consequentemente,
de matemática, geografia e história. “Repeti duas ou três vezes o ano escolar.
Naquela época, os professores não eram capacitados para lidar com a minha
situação, não tinham paciência comigo. Eu chorava com meu pai, que foi o meu
verdadeiro professor, mesmo com o pouco conhecimento que ele tinha da cidade.
Ele foi meu professor analfabeto”. O esforço da família garantiu, também, a
conexão com a natureza e Umariaçu. Nas férias, todos voltavam para comunidade
e, assim, viviam entre aldeia e cidade.
·
Conhecer para se
defender
We’e’ena
conta que existem três tipos de indígena Tikuna: o aldeado sem contato com os
centros urbanos e sem conhecimento da língua portuguesa; o que está se
capacitando na cidade, na fase de assimilação da vida na metrópole; e o
indígena urbano, com o qual ela se identifica, aquele que já entende os
próprios direitos, conhece as leis, já viveu as violências da cidade e está a
par do mundo da política, da mídia e das redes sociais.
“Não
deixamos de ser indígenas porque nos conectamos com a tecnologia. Até nisso
sofremos preconceito”, diz. Ao lembrar o Massacre do Capacete, fica evidente
que o ocorrido determinou a necessidade de dominar o idioma do branco. Os
indígenas participavam de uma assembleia, organizada pelo próprio grupo, quando
foram abordados. Não sabiam falar o português, não sabiam argumentar para se
defender das pressões e das investidas no território. Sua mãe, ciente dessa
situação, sem nunca aprender a língua dos brancos, capacitou os filhos para não
repetirem a história.
Totchimaüna
Tikuna viveu a tradição do casamento arranjado entre as famílias Tikuna e, ao
contrário da filha, não se casou por amor. “Ela foi obrigada a se casar. As
famílias escolheram o relacionamento deles. Meu pai era conhecido como bom
pescador, um bom caçador”, relata. O casamento se deu dentro das condições
favoráveis para a criação de uma célula familiar estável. We‘e’ena pondera que
não foi por falta de alimento ou terra que a família mudou para Manaus. O
objetivo era o de ter a primeira geração Tikuna de estudantes formados na
universidade. “Hoje meu irmão mais velho é professor de português nas aldeias,
outro é formado em administração e gerencia a distribuição de energia para as
comunidades Tikuna e eu sou formada em nutrição. A formação que tivemos foi
muito importante”, avalia.
A
comunidade urbana criada pelos pais de We’e’ena se mantém ativa. O grupo
preserva a prática dos rituais, as assembleias gerais e a língua Tikuna como
idioma corrente, em plena Manaus. A experiência da cidade também tem o lado
positivo e conta com uma rede de solidariedade que se formou com a participação
de professores e voluntários. Uma série de iniciativas foram feitas para ajudar
na adaptação dos jovens estudantes Tikuna. Em 2013, foram doados computadores
para a comunidade, facilitando as aulas de informática. “Aprendemos a criar e
usar nossos e-mails e perfis nas redes sociais”, afirma.
Esse
processo adaptativo expõe desafios que vão muito além do domínio do português e
que tem a ver com a distância que se impõem entre a cosmogonia indígena – como
produtora de um conjunto de ideias, sistema de valores e percepção de mundo – e
a educação no Brasil ocidental. A pedagogia da escola brasileira se dá numa
lógica muito distinta da experiência de conhecimento indígena e tudo se agrava
com o racismo. Sem um acompanhamento adequado, pode-se produzir um choque
cultural capaz de gerar um rechaço do aluno recém-chegado da comunidade
originária. “Dentro da escola a gente descobre o preconceito. As pessoas me
chamavam de índia. Até a adolescência, eu não conhecia essa palavra. Na
reserva, a gente não sabe o que é preconceito, a gente só vive isso quando pisa
na cidade e percebe as pessoas olhando diferente”.
Justificar
os fatos, criar teses, lidar com o conhecimento abstrato, oposto da forma
empírica como garantia de aprimoramento, foi muito difícil de assimilar.
“No mundo da academia é o título de doutor que valida a veracidade, que valida
o saber. Eu não sabia falar português, mas sabia desenhar, sabia pintar os
grafismos Tikuna. O indígena nasce artista. A matéria que me salvou na escola
foi artes. O jeito foi me capacitar e aprender a falar da mesma forma que se
fala na universidade”, reflete.
Proteger
o legado, a comunidade e, ao mesmo tempo, ocupar o espaço institucional
brasileiro demanda uma movimentação surpreendente. A estratégia é oposta a dos
que creem que a legitimidade do protagonismo indígena deva se restringir aos
territórios originários, como uma medida de autenticidade e representação. “Por
que temos as nossas características e falamos o português como segunda língua,
sempre ouvi críticas de como falo errado. Até hoje eu estou aprendendo o
português, mesmo vivendo na cidade. Até hoje não tivemos um resultado para
mostrar no Ministério dos Povos Indígenas, porque a nossa luta é árdua, com
muita coisa para fazer dentro e fora do nosso território. São parentes morrendo
de fome, muita violência de todo o tipo. Estamos no século XXI e são apenas
três mulheres nos representando: Joenia Wapichana, presidente da Funai; Celia
Xakriabá, deputada federal indígena; e Sonia Guajajara, ministra dos Povos
Indígenas. Elas também sofrem racismo e preconceito dentro do próprio trabalho.
Não conseguem abraçar todas as comunidades”.
·
Fama, o território
mais desafiador
Podemos
tomar emprestada a imagem de um rio amazônico para compreender a dimensão do
desafio que as mulheres indígenas enfrentam quando se inserem na cena nacional.
Com We’e’ena não foi diferente. As duas décadas que distanciam a vida de
aldeada no Alto Solimões da experiência nas cidades de Manaus, São Paulo e Rio
de Janeiro carregam altas doses de resiliência e superação. Da aluna com
muitas dificuldades e reprovações em série até o papel de criadora de uma
coleção para a Brasil Eco Fashion Week, em 2021, o que legitimou seu espaço foi
a própria capacidade e talento, em qualquer das atuações. E são várias: artista
plástica, cantora, palestrante, nutricionista, design de moda e ativista dos
direitos indígenas.
A
criatividade ganhou reconhecimento em múltiplos espaços, nas artes plásticas
com obras no acervo do Museu Histórico de Manaus, o prêmio de “melhor artista
plástica indígena do Brasil” pela Sociedade Brasileira de Educação e Integração
e o prêmio Quality Internacional do Mercosul. Na música, como compositora e
cantora, levou seu primeiro trabalho discográfico “We’e’ena-encanto indígena”
para a Festa Nacional da Música, em 2017, para a edição da FLIP 2019 e para a
abertura da Rio+20, entre vários outros eventos. Como ativista, palestrante e
profissional da saúde, se destacou como presidenta das mulheres brasileiras
indígenas na Liga das Mulheres Eleitoras do Brasil. Atualmente, realiza shows e
faz palestras sobre a cultura indígena e o meio ambiente pelo Instituto
Brasileiro de Defesa da Natureza (IBDN). Como nutricionista, trabalha a
reeducação alimentar com base da cultura Tikuna, com participação na coautoria
do livro “Isto não é um (apenas) um livro de receitas – é um jeito de mudar o
mundo”, publicado pelo Instituto Comida do Amanhã.
A
moda ganhou um lugar de destaque no seu trabalho com a primeira grife
contemporânea totalmente idealizada por uma indígena, no Brasil. A marca
We’e’ena Tikuna Arte Indígena trabalha exclusivamente com algodão e fibras de
tururi, madeira típica da Amazônia. Com tingimentos naturais de jenipapo,
urucum e babaçu, os tecidos ganham grafismos Tikuna presentes nos desenhos
corporais que expressam a cultura e tradição do seu povo. “A gente trabalha em
grupo. O tururi demanda uma técnica de coleta muito difícil. Quando vejo uma
peça minha na passarela, ali também está a mão da pessoa da comunidade que
trabalhou na chuva e no sol. O meu povo Tikuna ficou com o nome grande.
Criamos um tecido que nunca tinha sido utilizado num evento de moda. Foram
20 looks do primeiro desfile indígena numa passarela. Depois
de 2019, começaram a nascer várias marcas indígenas. Agora, somos muitos os
artistas empreendedores”.
Como
figura pública, teve que lidar com a superexposição em outra vereda muito mais
perigosa que a floresta, a internet. Distante das dinâmicas tradicionais dos
casamentos arranjados, que fazem com que uma Tikuna aldeada case muito cedo e
chegue a ser avó por volta dos 30 anos, We’e’ena vive um matrimônio interracial
com o músico espanhol Antón Carballo, violinista da Orquesta Sinfônica
Brasileira, com sede no Rio de Janeiro, cidade na qual o casal vive.
Em
2023, quando a filha do casal completou dois anos, ela reduziu a agenda como
influencer para dedicar mais tempo a I´étüna Tikuna, cujo nome significa “os
olhos pequenos da arara”. Quando a criança nasceu, o período de trabalho era
tão intenso que We’e’ena chegou a produzir conteúdos em vídeo até a primeira
semana depois do parto. A maternidade também serviu de inspiração para outra
mudança de padrão: a criação das bonecas We’e’ena Tikuna, uma oportunidade de
representação indígena também no universo infantil. Se, num primeiro momento, a
resistência da família ao casamento interracial foi manejada com diálogo e
tranquilidade, a arena da internet fez barulho com a notícia da sua união com
um homem branco europeu. “Eu sempre ouvi em casa para não ter vergonha de ser
quem eu sou. E quem poderia imaginar que daria palestras na Europa? A nossa
história mudou”, diz com um sorriso que expressa a alegria de uma mulher Tikuna
que se movimenta, sem medo do preconceito e do desconhecido.
Fonte:
Amazônia Real
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