'Nosso
relacionamento é um ato político', diz cadeirante que namora rapaz sem
deficiência
Numa
madrugada ociosa, a estudante de design gráfico Marina Melo, de 20 anos,
resolveu instalar um aplicativo de relacionamento para passar o tempo.
Depois
de deslizar o dedo incontáveis vezes para rejeitar perfis, eis que aparece um
rapaz que dizia cursar filosofia e usava uma fantasia de Homem Aranha.
"Eu
amo o Homem-Aranha e também sou um pouco filosófica, então aquele foi o motivo
de eu dar sim e aconteceu o match. Desde então, dia 29 de junho de 2023, eu não
fiquei um dia sem conversar com o Victor", conta ela em tom apaixonado em
entrevista à BBC News Brasil.
Marina
é cadeirante, foi diagnosticada aos 8 meses com atrofia muscular espinhal
(AME), tipo 2, e por isso conseguiu andar. Ela deixou essa condição de maneira
clara em seu perfil no aplicativo, onde publicou inclusive duas fotos em sua
cadeira motorizada.
Dez
dias depois da primeira conversa no aplicativo, Marina e Victor Martins
Rodrigues, de 23 anos, tiveram o primeiro encontro em um shopping no Rio de
Janeiro. O primeiro beijo, no entanto, só aconteceu na segunda vez que eles se
viram.
"Fui
até criticada pela minha mãe por não beijá-lo no primeiro encontro. Ela disse
que estatísticas mostram que beijar faz bem para a saúde", conta Marina
dando gargalhadas.
Ela
conta que chegou a ter dois relacionamentos curtos, aos 14 e 16 anos, mas só ao
lado de Victor se sentiu à vontade para ser autêntica e com mais autonomia. Ela
conta que,ao lado do namorado, tem mais autonomia e independência, parou de se
auto-sabotar e está muito mais feliz.
"Ele
fez eu entender que a minha deficiência é só uma característica. Fez eu
entender que, se eu tiver apoio, eu consigo fazer tudo. Foi com ele que eu
peguei metrô pela primeira vez. Eu nunca andei tanto na rua depois de conhecer
ele. Ele me ensinou que sem ela o mundo não é acessível, que as pessoas não. Eu
acho que esse é o maior ponto."
Victor,
que cursa o nono semestre de filosofia na Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) , afirma que curtiu o perfil da Marina no Tinder porque se
impressionou com a beleza dela e não se importou pelo fato dela estar em uma
cadeira de rodas.
"Eu
estava entediado, abri o aplicativo e comecei a passar para o lado. A primeira
coisa que pensei quando bati o olho foi: essa mulher é uma deusa grega! Nunca
tinha me relacionado como uma mulher com deficiência", conta.
Chantelle
Otten, especialista em relacionamento do aplicativo de encontros Bumble diz que
ter uma deficiência não significa que a pessoa precisa se afastar do mundo dos
encontros. E ressalta que atitudes como a de Marina, de deixar claro sua
condição, é a ideal.
Ser
honesta no início mostra que, embora ter uma deficiência seja parte de quem a
pessoa é, não é a única característica que a define como pessoa. Recomendamos
que ela fale sobre todos os hobbies e paixões interessantes que fazem parte de
suas experiências de vida”, diz.
Ela
conta que a pessoa também pode falar sobre as perspectivas exclusivas que
acompanham sua deficiência, como um profundo entendimento de empatia e
compaixão ou uma abordagem criativa para a solução de problemas.
"Isso
permite que os possíveis parceiros entendam que ter uma deficiência não limita
a vida, mas a expande", afirma Otten.
• Uma nova rotina
A
atrofia muscular espinhal tipo 2 é uma doença degenerativa que causa graves
restrições de mobilidade.
Pessoas
com AME 2 podem se sentar sem a necessidade de suporte, mas podem perder essa
habilidade com a progressão da doença. Alguns pacientes conseguem ficar em pé,
mas não conseguem andar de maneira independente. Muitos apresentam contraturas
e deformidades articulares, incluindo escoliose grave.
Pacientes
como Marina também têm dificuldades respiratórias e podem necessitar de suporte
para respirar no período durante o sono e manobras para remoção de secreção.
Victor
também já teve relacionamentos anteriores e diz que a experiência ao lado de
Marina traz diversas mudanças na rotina de uma pessoa acostumada a conviver com
pessoas típicas.
"Muda
muita coisa. Antes, eu costumava ficar até de madrugada na rua. Sair para ir a
um bar hoje é difícil porque não pode ser muito longe da casa dela, pois a rua
não é acessível e mudou a minha perspectiva do que é um relacionamento. Eu
entendi de verdade o que é gostar de alguém", diz.
Victor
diz que, em seus relacionamentos anteriores, ele tinha uma relação menos
profunda.
Isso
ocorre porque, nos momentos em que está com Marina, Victor a ajuda em todas as
tarefas básicas do dia a dia, como tomar banho, trocar de roupa e beber água.
Ele conta que usa o humor para tornar essas atividades divertidas.
"Enquanto
eu lavo o rosto dela, fico fazendo palhaçada para ela rir. Então, essas coisas
naturais do dia a dia se tornam divertidas", conta.
• Beijos contra o preconceito
Marina
e Victor dizem que são constantemente observados com olhares de julgamento
quando saem às ruas. São pessoas que não chegam a falar, mas demonstram
incômodo pelo fato de uma pessoa típica namorar uma mulher cadeirante.
Após
conviver com a situação, o casal desenvolveu uma técnica para deixar fazer com
que essas pessoas fiquem constrangidas: dar um beijo.
"Todo
mundo olha uma pessoa com deficiência. Quando isso acontece, o Victor encara
muito feio essas pessoas e fica irritado. Ele pede para me dar um beijão para
deixar a pessoa bem desconfortável e a gente se diverte", conta.
Ela
disse que as reações quando isso acontece vão desde achar a cena “bonitinha” a
fazer uma nova expressão de surpresa e desconforto.
Mas
em algumas ocasiões as reações preconceituosas ultrapassam a barreira dos
olhares e se tornam verbais. Victor conta que, certa vez, um homem parou para
perguntar se ela era irmã dele. Outro perguntou a Marina se poderia rezar por
ela.
"Eu
fico possesso de raiva. Olhei para a cara dessas pessoas e peço para se
tocarem. A Marina sempre pede para eu me acalmar e não fazer nada. Algumas
vezes eu ainda xingo, mas vou embora", diz Victor.
• 'Um relacionamento político'
Ao
ser questionada o quanto esse comportamento preconceituoso a incomoda, Marina
responde que não o suficiente para que eles deixem de fazer demonstrações
públicas de afeto.
Além
disso, ela se tornou uma criadora de conteúdo e publica vídeos principalmente
no TikTok e Instagram sobre o seu dia a dia, dicas de maquiagem e, claro, sobre
seu relacionamento. Para ela, essas demonstrações têm a função de ajudar outras
pessoas com deficiência a se aceitarem.
"Eu
falei para o Victor que, a partir do momento que a gente tornasse o nosso
relacionamento público, ele se tornaria um relacionamento político. Ele é um
movimento político porque prova que pessoas com deficiência podem sim amar e
serem amadas", afirma Marina.
Victor
conta que já ouviu até mesmo de pessoas próximas que "é um guerreiro"
por namorar uma cadeirante. Ele relata que responde que não é guerreiro e está
com ela porque a ama sme se importar com sua condição.
Victor
concorda que o relacionamento deles é político e diz que espera que outras
pessoas vejam neles um exemplo de amor verdadeiro e sem barreiras.
"Quero
que outras pessoas olhem para a gente e vejam a possibilidade de amar. Não ter
vergonha de amar, não ter vergonha de gostar da pessoa que você ama mesmo
contra o que a sociedade pensa", diz.
Quase
um ano depois de se conhecer, o casal diz que se encontra com frequência, faz
passeios juntos e inclusive faz muitas viagens e planeja o futuro.
Marina
sonha em morar em São Paulo. "Eu tenho um amorzinho interno pela Vila
Olímpia (bairro da zona sul da capital paulista)", conta ela à reportagem.
Victor ainda não se acostumou muito com a ideia e diz que vai sugerir um meio
termo que ainda não pensou.
Ele
sonha em ser pai. Marina é fértil e poderia engravidar, mas neste ponto é ela
quem oferece mais resistência.
"Não
acho que é para mim. Ou talvez eu ainda tenha uma cabeça de menina jovem. Eu já
tenho muita restrição, mas ao mesmo tempo eu gostaria de ter o processo de
criar alguém para o mundo", diz ela que reconhece estar em dúvida sobre
maternidade.
Mas,
para ambas as questões, os dois dizem que não sentem pressa em respondê-las.
Marina hoje diz que vai focar seu conteúdo nas redes para dar voz a minorias e
que vai se preocupar com mudança de cidade e filhos daqui alguns anos.
"Nada
disso é para agora. Quem sabe em 2030."
Fonte:
BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário