Marcos Del
Roio: ‘Nota sobre a democracia popular’
Não
é de agora que ocorre um debate muito equivocado no seio da esquerda brasileira
com o uso da categoria de democracia popular. Essa categoria tem uma história
centenária, a qual deve ser rapidamente resgatada para que se esclareça os
pontos de confusão que afetam a discussão.
Logo
em seguida à derrota da revolução socialista internacional, em 1921, a
Internacional Comunista teve que repensar a sua estratégia. Foi então concebida
a estratégia da frente única do proletariado. A palavra de ordem seria “Por um
Governo operário”, logo estendido logo depois para “governo operário-camponês”.
Esse propalado governo seria uma forma de aproximação da ditadura do
proletariado. A polêmica logo se estabeleceu entre os que entendiam essa forma
de governo como aproximação ou como sinônimo de ditadura do proletariado.
Uma
reflexão teoricamente mais bem elaborada apareceu com György Lukács, no segundo
semestre de 1928, quando escreveu o projeto de tese para o II Congresso do
Partido Comunista da Hungria. Para György Lukács, entre a ditadura
feudal-burguesa, que vigia, e a revolução socialista, deveria existir uma fase
denominada “ditadura democrática”, durante a qual a revolução burguesa
alcançaria os seus limites e haveria uma disputa aberta pelo poder entre
burguesia e proletariado.
Nessa
fase da luta de classes a vitória da burguesia redundaria numa ditadura
fascista e a vitória do proletariado redundaria na ditadura democrática do
proletariado. Seria então uma fase de disputa aberta pela hegemonia (categoria
que Lukács não usa). Esse documento foi descartado, pois nesse momento
predominou na Internacional Comunista a tese de que não haveria fases
intermediarias de aproximação entre a dominação burguesa e a revolução
proletária.
Com
o avanço do fascismo, a partir de 1934, há uma reorientação da política da
Internacional Comunista, que culmina com a formulação da Frente popular
antifascista. Em 1936, em plena guerra civil espanhola, Palmiro Togliatti
formula a tese da “democracia progressiva”. A revolução espanhola era ainda
burguesa, mas com o aprofundamento da democracia seria colocada a questão da
passagem ao socialismo. Essa tese foi retomada por Palmiro Togliatti em 1944
quando do seu retorno a Itália. Nesse momento, a expressão “democracia popular”
já havia preponderado, com formulação feita por Dimitrov e se espalhado por
todo o movimento comunista, tendo sido utilizada mesmo por György Lukács.
A
tese era que com a derrota do fascismo e do colonialismo daria origem a um
regime de “democracia popular”. O primeiro ponto a ser então retido é que a
democracia popular surge de uma ruptura histórica, não da evolução de alguma
eventual democracia burguesa. Outro ponto a ser retido é que na democracia
popular há uma disputa pela condução da vida social entre a burguesia, que
continua a existir, e o proletariado, que detém o poder político por meio do
partido revolucionário. Para ficar ainda mais claro, na democracia popular as
forças produtivas ainda não estão suficientemente avançadas e a correlação de
forças em relação à burguesia não é está definida de vez. Ademais há a presença
de um campesinato que oscila entre o capitalismo e o projeto socialista.
A
democracia popular tende a ser uma variante de capitalismo de Estado conduzido
pelo partido revolucionário. Com diferenças nas relações de força, essa foi a
situação na Europa oriental e na Asia oriental ao final da Segunda Guerra.
Alguns países se declararam socialistas de imediato, como Checoslováquia,
Iugoslávia, Vietnam e Cuba, mas não significa que não eram democracia
populares, mas apenas que privilegiavam o projeto histórico na sua
autoidentificação. Note-se que aqui se discute apenas a categoria teórica de
democracia popular e não o conteúdo das experiencias históricas desses países.
De
maneira retrospectiva, a URSS do período da NEP (1921-1928) seria uma
democracia popular, já que era um capitalismo de Estado sob condução do Partido
Comunista. Outra formulação sinônima de democracia popular foi a de Nova
Democracia, tal como elaborada por Mao Tsé-Tung, em 1940. Mais tarde, Mao
Tsé-Tung adotou também a categoria de democracia popular para identificar a
China.
Tal
como na Europa oriental, a concepção de democracia popular decorria de ampla
aliança de classes, que incluía o proletariado, o campesinato, a pequena
burguesia e até setores burgueses opostos ao fascismo e o colonialismo. Com
todas as idas e vindas, a China de hoje ainda se identifica como uma democracia
popular, um capitalismo de Estado, que carrega o projeto de construção
socialista, mas que a disputa com a burguesia ainda está presente.
No
Brasil, a categoria de democracia popular foi consagrada pelo PCB no IV
Congresso (1954-55). Antes havia já referências sobre uma frente de forças
populares, democráticas, progressistas, mas uma definição clara do que seria
uma democracia popular só foi elaborada nesse congresso. Defende-se então que a
democracia popular é uma fase entre a democracia burguesa e o socialismo, “um
poder de transição” composto pelas forças anti-imperialistas e antifeudais.
Teria
que ser assim, pois o país não contava ainda com forças produtivas suficientes
para o socialismo e tampouco havia uma correlação de forças sociais que
possibilitasse uma vitória incontestável do proletariado, que esse se
apresentasse como efetiva força hegemônica. A democracia popular, portanto,
como fase de transição seria a forma possível para completar as tarefas da
revolução burguesa, mas já em um passo adiante, com o proletariado compondo a
coalizão de forças que se contrapunha ao domínio imperialista e lutando pela
direção do processo.
Depois
da famosa “Declaração de março” de 1958, a expressão democracia popular
desaparece. O PCB passa a investir na possibilidade de formação de um governo
de coalizão nacionalista e democrática dentro da institucionalidade vigente,
que poderia ter seus aspectos democráticos ampliados. Seria esse o caminho para
uma revolução democrático burguesa de novo tipo, que, à rigor, mesmo sem usar a
expressão, estabeleceria uma democracia popular.
Na
análise que então faziam os comunistas, em um primeiro momento a hegemonia
burguesa parecia incontestável, mas a pressão das massas seria determinante no
avanço do processo democrático e das reformas sociais, na luta contra o
imperialismo e contra o latifúndio.
O
problema maior é que não aparece com clareza a questão essencial da ruptura,
pois sem essa não há mudança efetiva na vida social. O que também não aparece
com clareza na documentação é que a expectativa dos comunistas era que a
pequena burguesia democrática seria, de início, enquanto a classe operária não
tivesse ainda se organizado e educado suficientemente, a ponta de lança da
revolução. A pequena burguesia teria a sua força expressa na esquerda militar e
no movimento estudantil. Na verdade, era essa a perspectiva apontada já no III
Congresso do PCB de 1928/29: a pequena burguesia daria início ao processo
revolucionário e à disputa pela hegemonia entre proletariado e burguesia.
O
golpe militar mostrou como as classes dominantes e grande parte da pequena
burguesia, com largo respaldo do imperialismo estadunidense, podiam se unificar
contra a classe operária, o campesinato e a pequena burguesia democrática. A
diversificação / fragmentação da esquerda – iniciada no começo da década –
tendeu a se ampliar. Havia os que defendiam que a revolução brasileira era já
de natureza socialista, mas a maioria ainda defendia que a revolução era
nacional democrática, anti-imperialista e anti-latifundiária.
Não
é claro também o entendimento de que revolução nacional democrática seja
sinônimo de “democrático popular”. Se a questão for sobre que forças compõe a
nação, que forças compõe o povo, é evidente que essas expressões são sinônimas,
ainda que a noção de democracia popular estivesse sumida.
Entretanto,
em maio de 1976, uma publicação do PCdoB (partido surgido em 1962 de uma cisão
do PCB) não deixa margem a qualquer dúvida ao expor como objetivo do partido a
meta da instauração de uma democracia popular no Brasil. O entendimento é muito
semelhante ao antes dito no IV Congresso: esse seria um regime de transição
instaurado pelo conjunto de forças anti-imperialistas e anti-latifundiárias.
Um
regime de transição que abriria a disputa aberta pela condução do processo, a
luta de classes aberta entre burguesia nacional e proletariado. Em 1983, no seu
VI Congresso, o PCdoB reafirma o objetivo de alcançar uma democracia popular
endereçada ao socialismo. Nesse documento a presença de setores burgueses na
coalisão democrática popular está apenas implícita.
Em
1995, a VIII conferencia nacional do PCdoB ofereceu um programa socialista a
ser realizado por uma “república dos trabalhadores”. Aqui se reconhece que a
burguesia não teria lugar nessa situação a ser instaurada. Não está claro se
essa nova denominação seria sinônima de democracia popular ou se esta estaria
descartada em favor da atualidade de uma revolução socialista, dada as novas
condições econômico sociais do País. De todo modo, essa formulação foi depois
abandonada pelo PCdoB, que passou a aceitar alianças táticas com setores
burgueses em nome do “desenvolvimento”.
Pode-se
dizer que a revolução burguesa no Brasil se concluiu entre 1978 e 1980. O país
já era então plenamente capitalista e havia alcançado esse patamar por um
caminho que poderia ser denominado de via prussiana (Lênin) ou então revolução
passiva (Gramsci), o qual se caracteriza pela máxima contenção do protagonismo
político das classes subalternas. Isso quer dizer que no Brasil nunca houve
qualquer tipo de ruptura democrática, que mesmo a democracia liberal burguesa
vigente tem um grande quê de farsesca.
Estabelecido
plenamente o capitalismo passa a ser lógico que a natureza da revolução
brasileira passa a ser socialista incontestavelmente. Se até os anos 1970, essa
era uma questão controversa, agora não deveria ser mais. Contudo, o PCB, no seu
VII Congresso (1982) ainda reafirmou que a revolução era democrática e nacional
e tinha no horizonte uma democracia burguesa com direitos sociais, que
permitiria a disputa pela hegemonia.
O
PT, organização que surgiu no bojo da conclusão da revolução burguesa, em 1981,
no seu V Encontro nacional, realizado em 1987 (o único em que as tendencias de
esquerda predominaram) defendeu que o PT lutava pelo socialismo, começando com
a proposta de uma alternativa democrático popular respaldada pelos
assalariados, camadas médias e trabalhadores do campo.
A
burguesia está explicitamente excluída dessa coalizão democrática, popular,
anti-imperialista. O governo dessa coalisão pode ser alcançado pela via
eleitoral e deve realizar tarefas anti-imperialista, anti monopolista e anti
latifundiária (tal como rezava o V Congresso do PCB, de 1960), tarefas da
revolução democrática burguesa, não concretizadas. Ao mesmo tempo já seria um
governo disposto a adotar medidas já próprias do socialismo.
Está
bastante claro que a proposta é que um governo de coalisão democrática e
popular contribuiria ou induziria a ruptura democrática, estabeleceria uma
democracia popular já vinculada à perspectiva socialista por ser desde logo
antiburguesa. Curioso que o documento explicita a compreensão (que pode ser
discutível) de que a ideia de uma revolução nacional implica a aliança com a
burguesia.
No
mínimo, pode-se dizer que depende da situação concreta e do que se entende por
questão nacional. De qualquer maneira, como se sabe, essa perspectiva logo
perdeu espaço no PT e logo foi esquecida em favor exatamente da aliança com a
burguesia, exatamente como ocorreu no PCdoB. O fato é que a imensa maioria da
esquerda brasileira simplesmente se homologou à ordem burguesa exatamente no
momento em que se ingressava na época neoliberal.
Experiências
de democracia popular na América Latina podem ser consideradas a Nicarágua, a
Venezuela e a Bolívia, com notáveis diferenças na correlação de forças entre
burguesia e proletariado. Em todos esses casos houve uma ruptura institucional
e o estabelecimento de um poder constituinte, que induziu a alteração nas
relações sociais, mesmo que ainda dentro dos marcos do capitalismo.
No
conjunto das experiencia históricas das democracias populares pode ser notada a
forte presença de formas de cesarismo progressivo (Gramsci), expressão
exatamente da imaturidade das condições para uma efetiva transição socialista.
O cesarismo pode se expressar numa liderança notável ou mesmo no partido
revolucionário como instituição.
O
Brasil poderia, em tese, ter seguido esse caminho até mesmo muito recentemente,
mas essa ocasião se perdeu em negociações palacianas mais do que em mobilização
e organização das massas. A outra possibilidade é a da construção do poder
popular desde os fundamentos da vida social, por meio da construção de uma
sociedade civil alternativa, que desde logo crie a via socialista, uma nova
hegemonia, um poder popular, por meio de longa “guerra de posição”, a qual
obriga lutar para desconstruir a ordem burguesa ocupando espaços no seu
interior.
¨
Pela democracia,
sempre. Por Rodrigo Craveiro
Democracia.
Não existe valor maior para uma sociedade que julgue ter pluralidade de ideias
e que trabalhe em prol do bem comum. Sem a democracia, estamos à mercê do
autoritarismo, do desmando, das violações dos direitos humanos, da tirania.
Escrevo este artigo em 4 de junho, no 35º aniversário do massacre da Praça da
Paz Celestial. Naquele dia, em 1989, estudantes e ativistas foram atropelados
por tanques de guerra do Exército de Libertação Popular chinês e assassinados,
apenas por reivindicarem uma abertura política. Mais de 10 mil morreram,
segundo documentos divulgados pelo governo do Reino Unido. O assunto tornou-se
tabu na China. Estive em Pequim, sete anos atrás, e visitei a Praça da Paz
Celestial. Pude imaginar os blindados investindo contra a multidão, sedenta de
democracia. Hoje, há quem diga que as inúmeras câmeras espalhadas pelo
coração da capital chinesa sirvam mais ao controle social do que à
segurança.
É
verdade que a democracia pressupõe liberdade de expressão e de associação.
Também a possibilidade de sair às ruas e de exigir que o governo honre sua
eleição e trabalhe em prol da população. Mas a democracia não deve legitimar
fake news. Disseminar mentiras a torto e a direito é imoral e antiético, ainda
que o nosso Congresso — vergonhosamente — não veja isso como crime. Inverdades
espalhadas pelas redes sociais têm o poder de manipular a opinião pública,
interferir no resultado das eleições, destruir a reputação alheia e, em casos
extremos, até mesmo matar. É uma vergonha que o Congresso Nacional tenha
mantido o veto de Jair Bolsonaro à criminalização das fake news. Legalizar o
ilegal, legitimar o ilegítimo, apenas para que determinada ala política tire
proveito do caos.
Em
exatamente cinco meses, os Estados Unidos realizarão uma das eleições mais
importantes — e tensas — da história. Imaginar o retorno à Casa Branca de um
ex-presidente responsável por violentar a democracia, ao fomentar a
invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021; "encalacrado" de
indiciamentos na Justiça; e descomprometido com a verdade chega a ser bizarro.
Ainda mais em uma nação que se gaba de ser uma espécie de farol da democracia.
A eventual recondução de Donald Trump ao poder é um atestado do fracasso moral
da sociedade norte-americana e da ascensão da extrema-direita. É uma faca no
pescoço das instituições do Estado. Quem pode garantir que uma horda de
trumpistas não repetirá o ataque ao Congresso?
É
dever de todos preservar a democracia, desprezar as fake news, valorizar o
papel do jornalismo como fonte de informação e fiscalizador do poder público.
Sobretudo, saber votar e escolher representantes comprometidos com a população
— não com o próprio ego, com a sanha de poder ou com valores ultraconservadores
e preconceituosos. É dever de todos combater o discurso de ódio, a polarização
política desgovernada, a retórica agressiva e irresponsável. Somente com
democracia é possível construir um futuro de paz e de harmonia.
Fonte:
A Terra é Redonda/Correio Braziliense
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