'Máquina
de engolir terras': queda de Netanyahu não cessaria o avanço de Israel sobre a
Palestina
Em
entrevista à Sputnik Brasil, especialistas apontam que uma eventual queda do
primeiro-ministro israelense não pacificaria a questão palestina, pois "há
políticos ainda mais radicais do que ele" que visam completar a limpeza
étnica, iniciada durante a Nakba, em 1948.
Em
2011, o então ministro da Defesa israelense, Ehud Barak, deu um alerta
profético em relação a Israel, ao afirmar que se o país não mudasse sua
abordagem em relação à Palestina, avançando nas negociações de paz relativas à
solução de dois Estados, enfrentaria um tsunami diplomático que levaria ao
isolamento e à censura internacional.
Treze
anos depois, o país vivencia exatamente o cenário vislumbrado por Barak. A
maneira como o país responde ao ataque do grupo Hamas é tida como
desproporcional e apontada como uma punição coletiva a todos os palestinos por
vários países, incluindo o Brasil.
No
cenário interno, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, enfrenta
protestos populares que pedem sua deposição e seu próprio partido, o Likud, já
discute internamente alternativas ao primeiro-ministro.
A
onda de críticas alcançou inclusive os EUA, principal aliado de Israel.
Recentemente, o senador democrata Charles Schumer, um dos principais líderes da
comunidade judaica no Congresso dos EUA, apelou pela substituição de Netanyahu
no cargo. Apesar das críticas, Schumer foi um dos congressistas que assinaram
recentemente um convite a Netanyahu para discursar no Capitólio. Ele justificou
sua adesão ao convite afirmando que a relação de Washington com Israel "é
rígida e transcende qualquer primeiro-ministro ou presidente".
Em
entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam o que uma eventual
deposição de Netanyahu representaria para Israel e como ela poderia impactar no
Oriente Médio, pacificando ou acirrando a escalada de violência na região.
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Israel: um governo em 'crise existencial'
Para
Issam Rabih Menem, doutorando em estudos estratégicos internacionais pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Núcleo de Pesquisa sobre
as Relações Internacionais do Mundo Árabe (Nuprima), os ataques perpetrados
pelo Hamas em 7 de outubro de 2023 "proporcionaram uma janela de
oportunidade estratégica para que o projeto colonial israelense avançasse com o
processo de limpeza étnica, iniciado em 1948", durante a
"Nakba", termo em árabe que significa "catástrofe" ou
"desastre" e é usado para designar o êxodo de mais de 700 mil
palestinos expulsos de seus lares, após a primeira guerra árabe-israelense.
Segundo ele, esse processo ainda é "considerado incompleto por diversos
membros influentes do atual governo".
"Este
momento crítico permitiu que as políticas de deslocamento forçado e
reconfiguração demográfica, parte integrante da agenda sionista desde a criação
do Estado de Israel, fossem intensificadas sob o pretexto de segurança nacional
e resposta a supostas ameaças existenciais. Tal contexto reflete a continuidade
de um paradigma colonial que visa à consolidação territorial e, em especial, à
homogeneização populacional, reforçando as dinâmicas de poder e dominação que
caracterizam o conflito israelense-palestino."
Entretanto
ele aponta que a "mobilização global em favor dos palestinos desencadeou
uma crise existencial" na coalizão do governo Netanyahu, "levando à
uma radicalização das ações, a ponto de causar um desgaste significativo até
mesmo com seus aliados históricos".
"O
governo israelense não apenas intensifica o conflito, mas também coloca em
xeque a viabilidade das suas alianças internacionais tradicionais, destacando
as tensões entre as políticas internas de segurança e a pressão externa por uma
solução para o conflito. Este cenário evidencia a crescente influência da
opinião pública global e das organizações internacionais na dinâmica do
conflito israelense-palestino, sublinhando a importância do engajamento
internacional na defesa dos direitos humanos e na promoção da autodeterminação
dos povos", afirma.
Menem
afirma que uma eventual "deposição de Netanyahu, embora seja um evento
significativo, pode não ser suficiente para desmantelar a coalizão
fundamentalista que o sustenta".
"É
essencial analisar a resiliência dessa coalizão diante das próximas eleições,
pois ela pode continuar a influenciar a política israelense mesmo sem Netanyahu
no poder. No cenário internacional, a marginalização dos elementos
ultranacionalistas poderia ter um impacto positivo nas negociações de paz na
região. Com esses elementos fora de cena, pode haver mais espaço para o diálogo
e para o avanço das negociações de paz de forma significativa."
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Revisionismo sionista como cerne da
coalizão de Netanyahu
Bernardo
Kocher, professor do Departamento de História da Universidade Federal
Fluminense (UFF), se mostra cético quanto à possibilidade de uma eventual queda
de Netanyahu resultar em um arrefecimento da violência contra palestinos.
Ele
ressalta que a política que levou à situação atual da Palestina foi criada
tanto por trabalhistas, como Barak, como likudistas, como Netanyahu.
"Ambos
são responsáveis por esta situação dramática que ora vivemos. Os trabalhistas
foram responsáveis pela Nakba de 1948; as correntes de direita fazem
assentamentos na Cisjordânia desde 1967, ampliando o escopo da tomada das
terras palestinas. Sendo assim, ambos têm as mesmas práticas."
Kocher
afirma que "Netanyahu é defensor da política do 'Grande Israel', defendida
pelos sionistas ditos 'revisionistas'".
"Desde
o século XIX eles [revisionistas] miravam um país muito maior do que ele é
hoje. O Estado sionista foi fundado com as dimensões territoriais que tinha por
conta de pragmatismo, pois o Exército desse Estado em 1948 não possuía
condições suficientes de conquistar mais terras. Dessa forma, ampliaram ainda
em 1948, em 1967, e depois disso a expansão tem sido microscópica, cotidiana e
constante. O que está em desenvolvimento atualmente é uma forma de
paulatinamente ir na direção do mapa de um Estado muito maior do que é o de
hoje. É uma máquina de engolir terras, apoiado pela Europa Ocidental e pelos
EUA. Só assim esse sistema funciona, com financiamento internacional",
afirma Kocher.
Questionado
sobre se a declaração do senador Schumer poderia indicar o afrouxamento de
laços entre Israel e EUA, Kocher afirma que as críticas do congressista
refletem apenas preocupações eleitorais com a reeleição de democratas ao
Congresso e de Joe Biden à presidência dos EUA.
"O
que ocorre na Faixa de Gaza atualmente vai certamente retirar votos, fortemente
na comunidade árabe. Biden se elegeu com uma margem pequena de votos, e a
simples abstenção de qualquer setor insatisfeito favorece, em tese, o candidato
Donald Trump. Schumer possui a mesma limitação de Ehud Barak. Apoiou todo tipo
de apropriação de terras dos palestinos até os anos 1990; depois disso passou a
ter uma posição moderada, mas não faz nada de efetivo, apenas inculpando
Benjamin Netanyahu […]. O senador, como muitos opositores de Netanyahu, não são
contra a situação desvantajosa do povo palestino em sua terra, ele apenas
drenou um problema estrutural para uma questão eleitoral."
Ele
afirma ainda que "é um mito achar que o problema é o atual
primeiro-ministro", pois "há políticos ainda mais radicais do que
ele".
"Os
assentamentos na Cisjordânia, com 800 mil colonos, são uma base eleitoral fantástica
e se formaram em sua maioria nos governos do Likud mais partidos aliados. A
eventual derrota destes apenas retiraria a pressão da política interna e
internacional que se avolumou com as imagens da política social genocida […].
Se ele cair, passaríamos, de novo, a viver o 'sionismo normal' e não o
'sionismo radical' de Netanyahu e seus aliados."
·
Por que Netanyahu se permite dobrar a
aposta?
Apesar
da onda de críticas da comunidade internacional, Netanyahu insiste em manter a
ofensiva na Faixa de Gaza, adotando um tom que por vezes é apontado por
analistas como provocativo.
Natalia
Reis, professora de história contemporânea do Instituto de Estudos Estratégicos
(Inest), da UFF, afirma que isso ocorre porque Netanyahu sabe que a posição
estratégica que detém blinda seu país de punições.
"Se
formos avaliar que de 2011 a 2024 nada mudou em relação à postura de Israel
frente à Palestina e nada aconteceu a nível diplomático contra o Estado
israelense, penso que as lideranças israelenses não acreditam que possam sofrer
algum tipo de retaliação internacional, independentemente do que façam frente à
questão palestina. Há um forte lobby sionista nos EUA e em outras partes do
mundo, assim como interesses comerciais da indústria de armas, bem como Israel
vem garantindo o apoio norte-americano por ser um forte aliado geopolítico dos
EUA na região do Oriente Médio, o que cria a expectativa de não punição pelas
ações colocadas em prática há décadas contra a existência de um Estado
palestino."
Ela
enfatiza que os movimentos de Netanyahu antes dos ataques do Hamas de 7 de
outubro denotam que ele está "nas mãos dos extremistas" que integram
sua coalizão, o que faz da violência da ofensiva parte da equação de Netanyahu
para se manter no poder.
"Em
2022, ele [Netanyahu] trouxe para a sua coligação política forças de
extrema-direita para garantir apoio ao seu objetivo de se tornar
primeiro-ministro […]. Foram feitos acordos com os extremistas para se manter
no poder e evitar a punição por acusações de fraudes e subornos que Netanyahu
vem enfrentando. Ele por si só já representa a ala mais à direita em Israel,
mas a entrada no governo de elementos como Itamar Ben Gvir e Bezalel Smotrich
torna tudo muito mais dramático", explica.
Ela
acrescenta que Itamar Ben Gvir pertenceu, quando jovem, ao Moledet, um partido
que defendia a transferência de toda a população muçulmana para fora de Israel,
e posteriormente integrou movimentos ainda mais radicais, "que foram
considerados terroristas e foram proibidos por Israel".
"Ele
chegou a ser dispensado do serviço pelas Forças de Defesa de Israel [FDI] por
pertencer a organizações de extrema-direita quando era jovem. Seu histórico nos
anos 1990 é de atuação contra os Acordos de Oslo. Recebeu diversas acusações
por atividades de extrema-direita e foi condenado, em 2007, por incitação ao
racismo. Ben Gvir pressionou Netanyahu a fazer um ataque extenso em Rafah,
ameaçando retirar o apoio ao primeiro-ministro caso as ofensivas não
ocorressem", afirma.
Assim
como Kocher, Natalia Reis se mostra cética quanto às críticas do senador
Schumer, afirmando ser improvável um isolamento total de Israel "devido
aos fortes interesses econômicos e geopolíticos que Israel representa para os
EUA".
"A
tendência é haver uma pressão cada vez maior dos norte-americanos para que
Israel retroceda e negocie, como Biden já vem fazendo, mas um isolamento requer
sanções econômicas também. Fazer sanções comerciais e econômicas contra Cuba e
a Rússia é fácil, países tradicionalmente rivais geopolíticos dos EUA, mas
contra Israel? Eu pessoalmente não acredito."
A
especialista destaca que no cenário atual "fica parecendo que o
radicalismo de grupos palestinos ajuda a justificar as ações israelenses,
sempre noticiadas como de defesa, nunca de ataque, mesmo Israel sendo a força
de ocupação, ou seja, o algoz, não a vítima".
Segundo
ela, "talvez a queda de Netanyahu abra caminho para uma solução mais
pacífica da questão em Gaza, mas somente se houver interesse do próximo grupo
político que assumir o poder, e considerando também a pressão da comunidade
internacional".
"Já
vimos governos de tendências diversas serem alçados ao poder em Israel, mas
nunca a questão palestina foi solucionada, pela absoluta falta de intenção de
Israel em aceitar de fato um Estado palestino em suas fronteiras. Será que o
espetáculo do genocídio televisionado será suficiente para alertar aos
envolvidos que não há como ter segurança em um Estado que genocida palestinos a
céu aberto? As possibilidades do pós-queda de Netanyahu são várias. Desde a
formação de uma coalizão política e internacional para lidar com os conflitos
no Oriente Médio envolvendo Israel e Palestina de forma mais razoável,
pacificando a questão, até mesmo a manutenção dos conflitos em menor extensão,
com cessar-fogo, mas sem a resolução da principal questão em aberto, o que eu
acho mais provável."
Desconfiança
e fundamentalismo entre os lados é obstáculo para a paz
Fernanda
Brandão Martins, coordenadora do curso de relações internacionais da Faculdade
Presbiteriana Mackenzie Rio, ressalta que no cenário interno de Israel há um
constante medo de que o país "seja novamente atacado por todas as
fronteiras, como já aconteceu na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e o medo do
terrorismo vinculado ao fundamentalismo islâmico e da presença de grupos
terroristas, como o Hamas e o Hezbollah, em suas fronteiras".
"A
questão da integridade territorial e o histórico de conflito na região é um dos
elementos que contribuem para que uma postura mais moderada seja mais difícil
de ser alcançada. Porém há um entendimento bastante amplo na comunidade
internacional de que a integridade territorial de Israel depende, em alguma
medida, do reconhecimento do Estado palestino, retirando parte dos elementos
que motivam a violência contra judeus e israelenses. Porém alguns segmentos
políticos dentro do país, principalmente associados a movimentos religiosos
mais extremistas, não concordam com essa postura e temem que o reconhecimento
do Estado palestino aumente o risco para o Estado israelense."
Ela
aponta que a postura menos moderada de Netanyahu é resultado de sua base
política, que reúne segmentos políticos que têm uma visão mais radical e
fundamentalista em termos religiosos e para quem é inconcebível qualquer
postura mais moderada em relação à Palestina.
"São
grupos que inclusive compõem a maior parte dos colonos presentes em áreas de
ocupação israelense em território palestino tanto ao sul quanto ao norte do
país. Hoje o governo Netanyahu se encontra em uma posição política muito
delicada e depende da continuidade do apoio desses grupos para poder se manter
no poder. Além disso, a perpetuação do conflito hoje acaba perpetuando a
continuidade do primeiro-ministro do poder, o que lhe é de grande interesse uma
vez que este enfrenta uma série de processos por fraude e quebra de confiança,
o que poderia colocá-lo na prisão. Netanyahu também tem interesses pessoais, no
sentido que quer manter o cargo e evitar sua prisão."
Martins
diz não acreditar que os EUA vão abandonar Israel, uma vez que o país é
essencial na disputa com potências como Rússia e China por influência no
Oriente Médio.
"Não
acredito que os Estados Unidos irão abandonar Israel, mas que vão aumentar a
pressão sobre o governo de Benjamin Netanyahu para que as negociações para um
cessar-fogo sejam avançadas e haja uma delimitação mais clara de Israel quanto
a seus objetivos e quanto o emprego do uso da força militar na região [...]. O
que deve acontecer é os Estados Unidos aumentarem cada vez mais a pressão sobre
Israel."
Porém,
ela destaca que o fim completo da animosidade na região é dificultado pela
continuidade de reféns sob o controle do Hamas.
"Um
governo mais moderado poderia se encaminhar para estabelecer negociações para
que o cessar-fogo fosse alcançado e os reféns retornados e a busca de um novo
equilíbrio na região. Porém, enquanto grupos terroristas forem financiados por
governos extremistas e grupos religiosos fundamentalistas, a paz no Oriente
Médio sempre será instável."
Fonte:
Sputnik Brasil
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