BIG TECHS
PAGARAM POR ESTUDO QUE MINIMIZA IMPACTO DAS TELAS EM CRIANÇAS
NO
DIA 14 DE MAIO, a Comissão de Comunicação e Direito Digital do Senado realizou
uma audiência pública sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes
digitais. Um dos especialistas ouvidos foi Rafael Oliveira Leite. Ele
apresentou resultados do estudo “Muito Além do Tempo de Tela”.
Uma
das conclusões de sua pesquisa foi a de que a exposição às telas é “apenas um
entre 15 fatores que influenciam a saúde mental de crianças e adolescentes nas
redes sociais”.
Mas
o que Leite não falou durante seus nove minutos de apresentação é que o estudo
foi conduzido por uma organização chamada Conselho Digital, que é basicamente
bancada por big techs para fazer lobby. Entrei em contato com a organização e
não obtive retorno até o fechamento desta matéria.
O
Conselho Digital, que se define como entidade sem fins lucrativos ou afiliações
políticas que “coordena, estuda e representa o ecossistema dos aplicativos de
internet”, é o novo nome do Instituto Cidadania Digital, segundo o site da
organização.
Dentre
as associadas do Conselho estão Meta, Tik Tok, X, Google e Discord. Em um release publicado em
17 de maio, o CD diz que o estudo foi conduzido pela organização e ainda que
Leite é pesquisador associado. A organização apresentou o estudo em reunião
do grupo de trabalho para
a elaboração do “Guia para Uso Consciente de Telas e Dispositivos Digitais por
Crianças e Adolescentes”.
Até
o ano passado, o Instituto Cidadania Digital estava por trás da Frente Digital, uma
bancada criada em 2019 para discutir inovação e tecnologia no Congresso. Na
prática, o grupo representava os interesses das grandes empresas de tecnologia
nos corredores da Câmara e Senado, incidindo na aprovação de uma lei para
inteligência artificial favorável às empresas e, principalmente, para barrar a
votação do projeto de lei 2630, o chamado PL da Fake News.
·
Estudo das big techs minimiza efeito de
telas e contraria especialistas
O
estudo “Muito além do tempo de tela” é apresentado como uma revisão de mais de
1000 estudos nacionais e internacionais já publicados. A principal conclusão é
de que o efeito das redes sociais sobre a saúde mental de crianças e
adolescentes depende de outros 15 efeitos moderadores ou mediadores, como
frequência de uso ou ambiente familiar.
Leite,
o autor do estudo, não é nenhum especialista no assunto. Formado em
Administração Pública pela Faculdade Getúlio Vargas, ele se apresenta no LinkedIn como “consultor em gestão pública”. Atualmente, ocupa o
cargo de pesquisador no Instituto Millenium, uma organização hiperliberal
fundada por Paulo Guedes e Rodrigo Constantino, e no New South Institute,
sediado na África do Sul. Até o início do ano, trabalhou como assistente de
pesquisa no Banco Interamericano de Desenvolvimento.
A
pesquisa das big techs foi apresentada justamente no momento em que o mundo
está endurecendo regulações para controlar a exposição de crianças às telas.
Mas para o autor do estudo, as plataformas só precisam “divulgar melhor as
ferramentas para controle e supervisão parental”.
Nos
Estados Unidos, um projeto de lei no Senado que conta com apoio bipartidário
propõe exigir das empresas que elas exerçam o “dever de cuidado” para evitar
que seus produtos coloquem crianças em risco. Isso passaria, por exemplo, pela
implementação de controles mais rígidos para crianças mais jovens e por
mudanças no design das plataformas.
Ao
redor do mundo, não faltam alertas sobre o potencial danoso da exposição às
telas: a Organização Mundial da Saúde recomenda que bebês com menos de um ano
não sejam expostos a telas e que, para crianças de 1 a 4 anos, o uso seja
limitado a, no máximo, uma hora por dia.
Em
um relatório publicado em 2023, o
U.S. Surgeon General, autoridade ligada ao Departamento de Saúde dos Estados
Unidos, alertou que adolescentes que passam mais de três horas por dia nas
redes sociais estão duas vezes mais propensos a terem problemas de saúde
mental, incluindo sintomas de depressão e ansiedade.
Também
no ano passado, a Unesco alertou que
a mera proximidade de um telefone celular no ambiente escolar distrai e tem um
impacto negativo no processo de aprendizagem de crianças e adolescentes.
Aqui
no Brasil, a deputada estadual Marina Helou, da Rede de São Paulo, chegou a
protocolar no fim de abril um projeto de lei para proibir o uso de dispositivos
eletrônicos nas escolas de São Paulo.
As
tentativas de regulação vão contra os interesses das empresas. Os Facebook Papers,
documentos internos da Meta trazidos à tona em 2021 pela delatora Frances
Haugen, revelaram que um dos objetivos da empresa era justamente a aumentar o
uso de tela por crianças.
Em
2017, por exemplo, o Facebook lançou o “Messenger Kids”, uma versão kids da
sua ferramenta de mensagens. Ao ver que a nova ferramenta estava sendo usada
apenas para comunicação, o Facebook não se deu por satisfeito e buscou maneiras
de fazer com que o Messenger Kids se tornasse prioridade em momentos de lazer
infantis.
O
documentos também mostraram que o Facebook sabia o quanto o Instagram era
nocivo para a saúde mental: pesquisas internas revelaram que o Instagram
piorava pensamentos de suicídio e automutilação em 13,5% das meninas jovens.
Para 17%, a rede social afetava negativamente os transtornos alimentares. E,
para uma a cada três, piorava a autoestima.
·
‘Combinação explosiva de vulnerabilidades’
Uma
das conclusões do relatório do Conselho Digital é de que faltam evidências que
confirmem uma causalidade entre uso de redes sociais e declínio na saúde mental
de crianças e adolescentes.
Rodrigo
Nejm, doutor em Psicologia Social e especialista em Educação Digital do
Instituto Alana, afirma que esses dados não existem justamente porque as
empresas de tecnologia não os abrem para pesquisadores.
Mesmo
se houvesse, ele disse, não se pode esperar ter evidências científicas para
agir. “Nunca existirá um momento onde teremos evidências científicas sólidas o
suficiente para termos uma decisão final porque a tecnologia é mutante, ela
muda muito rápido e sua apropriação muda muito rápido”.
Para
ele, o relatório feito pelo Conselho Digital parte de uma interpretação parcial
dos estudos resumidos que ignora as vulnerabilidades do contexto brasileiro,
como baixa renda, exposição à violência e falta de acesso a equipamentos
públicos de lazer.
“Você
tem uma combinação explosiva de vulnerabilidades, o que justifica maior
necessidade e urgência de regulação, de medidas de políticas públicas para
proteger essas crianças hiper vulneráveis”, disse o pesquisador.
O
Brasil tem uma das populações mais conectadas do mundo – entre crianças e
adolescentes de 9 a 17 anos, 95% usam a internet, segundo a pesquisa TIC Kids
Online, de 2023.
Mas,
ao contrário do que o relatório apresentado pelo CD tenta argumentar, essa
conexão não se traduz, necessariamente, em oportunidades e benefícios.
Um estudo publicado mês passado pelo
Comitê Gestor da Internet mostrou que apenas 33% da população tem uma
conectividade significativa, em que há condições mínimas de conectividade,
regularidade e habilidades digitais.
Em
2021, a Organização das Nações Unidas adotou o comentário 25, que trata dos
direitos das crianças no ambiente digital, ampliando o escopo da Convenção
sobre os Direitos da Criança. No documento, a ONU prevê responsabilidades e
deveres das empresas e sugere caminhos de implementação.
As
recomendações foram, em parte, acatadas por legislações na Europa, no Digital
Services Act,, no Reino Unido, com o Online Safety Act, e na Austrália. Mas
esses direitos não foram estendidos a crianças e adolescentes em outras
regiões, particularmente no Sul Global.
“Não
é justo crianças e adolescentes no Brasil terem menos direitos à proteção nas
mesmas plataformas só porque elas estão no Brasil, da mesma forma as crianças
estão em Gana, ou na Etiópia”, disse Nejm, do Instituto
Alana.
Fonte:
The Intercept
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