quinta-feira, 13 de junho de 2024

Luiz Marques: As finanças e as cidades

Nos Estados Unidos, há quem postule que a governabilidade resulta do pacto de diferentes elites, em situações de conflito e de compromisso, e que o pluralismo político anda junto com o pluralismo social. Essa “poliarquia” (governo de muitos) exprime ordenamentos sociais regados com eleições competitivas e inclusivas. Se não coincidem exatamente com uma soberania popular, ajuda na atmosfera colaborativa baseada no binômio “competição com negociação”.

Há ainda quem defenda a governabilidade orquestrada por uma “elite do poder” unitária, em um “complexo político-industrial-militar”, e queira transformar o Estado em uma comunidade real para aprofundar a democracia. A menção às elites e não às classes sociais, em ambas as prospecções, é uma sequela do macarthismo mais do que uma opção teórica ou metodológica.

Na América Latina e no Brasil, a discussão é menos sobre quem é o poder e mais sobre como se pratica o exercício do poder. Para o pensador marxista Fredric Jameson, em A cultura do dinheiro, “estamos prestando mais atenção aos investimentos e ao mercado de ações do que à produção industrial, que está prestes a desaparecer”. Como um barco que perdeu o leme.

A boa notícia é que, se a ideia de cortar impostos dos ricos (Ronald Reagan, Margaret Thatcher) marca uma inflexão neoliberal no mundo, nos anos 1980; na contracorrente das finanças, o presidente Lula e o ministro Fernando Haddad inscrevem na agenda contemporânea a tributação das grandes fortunas. A proposta solidária com o Estado de bem-estar chega ao G20 e ao Papa Francisco – o pólen germina.

•        Uma ditadura rentista

No princípio do século XX o dinheiro se concentrava nas urbes e as mudanças invadiam as cidades populosas. Atualmente o dinheiro dirige-se ao mercado de ações. O fim do estágio produtivo do capitalismo abre a porta aos lucros fáceis nas próprias transações financeiras, Dinheiro / Mercadoria / Dinheiro (DMD), pelo efeito bola de neve. Inverte-se a fórmula do comércio da venda de uma mercadoria para a compra de outra, para fazer circular a economia (MDM).

Surgem então os novos parasitas, onde antes se achava a aristocracia. A fuga de capitais para as geografias com taxas maiores de retorno do investimento ou mão de obra barata fica para trás. O dinheiro não vem do chão da fábrica, nicho de extração ou tecnologias com alta rentabilidade, mas das Bolsas de Valores. O capital financeiro separa o dinheiro do solo concreto, para voar feito borboleta após se metamorfosear na crisálida e agitar as asas na globalização.

A vida social vira refém do rentismo. A desindustrialização provoca a acelerada desocupação dos territórios da produção. Nos antigos centros históricos, pavilhões fabris, galpões e escritórios de importação e exportação de mercadorias tornam-se desertos. Prédios transparentes surgem em um cenário degradado, com o que foi denominado “urbanização corporativa”. A revitalização não traz de volta as atividades produtivas, somente depósitos e institutos neoliberais. Como em uma novela policial, de quinta categoria, o assassino sempre retorna ao local de seu crime.

Sobrenomes de megaconstrutoras (Melnick / Porto Alegre e Patriani / ABC paulista) singularizam o movimento de “destruição criativa” dos espaços urbanos. A especulação imobiliária descobre outras modalidades de lucro com a intervenção em Planos Diretores. Edifícios são construídos, não para as pessoas morarem nos apartamentos, senão investir e lucrar. A economia produtiva no Brasil afunda, enquanto a orquestra toca.

Levantamentos apontam que as famílias e as empresas pagam cerca de um trilhão de reais por ano, em juros e tarifas diversas por serviços financeiros improdutivos. Trata-se do pedágio hospedeiro sobre a economia real. A extrema direita tira proveito da contrarrevolução do nonsense. La bête humaine violenta, obscurantista e corrupta espreita a anomia.

•        A imaginação ao poder

O drama da crise climática no Rio Grande do Sul, fruto do negacionismo e da incúria evidente do governador do estado (PSDB) e do prefeito da capital (MDB), acionaram um alerta aos navegantes dessas águas turvas. O desgaste é menor do que seria razoável, perante a responsabilidade óbvia dos mandatários pela extensão do cataclismo. Da Guernica brasileira resta a imagem resiliente de um cavalo no telhado para escapar da enchente – e a urgência de uma reflexão sobre as circunstâncias da política, em nosso tempo. O século XXI cobra da esquerda a imaginação ao poder para formular sínteses entre a economia, a cultura e a natureza, antecipando vivências da utopia.

Em importantes municipalidades, as eleições de 2024 funcionarão como uma espécie de plebiscito sobre o modelo neoliberal de cidade. A alternativa racional passa pelas forças políticas progressistas em associação com o Partido dos Trabalhadores. O PT possui experiências exitosas paradigmáticas de administração municipal, em várias regiões do país. Institucionalizada em nível federal, a marca ideológica da participação social revela o caminho para a soberania popular. A dimensão libertária e igualitária da política deve ser exercida pelo povo, na condição de sujeito da história.

Os eleitores se confrontarão com duas visões para viver. Uma remete à financeirização especulativa da esfera pública, em que a convivialidade dos comuns é descartada: “a sociedade não existe”. Por limitação cognitiva e déficit humano, a urbanidade é interpretada a partir de sua majestade, o carro, e de condomínios fechados. A alteridade configura o inimigo, e arma preconceitos atrás dos muros coloniais. A liberdade individual entra em contradição frontal com a felicidade coletiva. “Enquanto gira inteira a noite / sobre a pátria desigual”, para evocar os versos de Ferreira Gullar.

A visão alternativa defende a valorização da diversidade e da solidariedade em contexto multicolor, protegido pela presença dos jovens e lidas culturais, esportivas e de lazer. Sem o que a democracia republicana converte-se na monstruosa caricatura de si mesma. Mas para vencer há que juntar lutas econômicas pela redistribuição na sociedade às pautas por reconhecimento identitário. O voto já não se explica unicamente pela economia. Se fosse assim, a aprovação nas pesquisas do governo federal bateria recordes, com o saldo positivo do PIB. As questões de gênero, orientação sexual, etnia, meio ambiente e religião incidem também nos corações e nas urnas. O momento exige muita criatividade, coragem e ousadia. O novo deve mostrar a sua cara, sem nenhum medo de ser feliz.

 

•        O livre mercado fracassou. Chegou a hora do Leviatã Climático? Por Sandro Ari Andrade de Miranda

O discurso neoliberal e a sua defesa intransigente do livre mercado como solução de todos os problemas, encontrou, desde o final da década de 1970, amplo espaço para a sua reprodução na esfera pública política, em especial nos grandes meios de comunicação.

Apesar da incompetência do setor privado na implementação de políticas de energia, saneamento e transporte, o que redundou na reestatização destes serviços em países como França, Reino Unido, Alemanha e até nos EUA, o dogmatismo ideológico de alguns dirigentes nacionais ainda insiste na privatização, mesmo que as experiências mais recentes no Brasil tenham sido um completo fracasso, como nos casos da ENEL, em São Paulo, e da Equatorial, no Rio Grande do Sul.

Não surpreende, portanto, que o discurso da privatização tenha saído do campo dos serviços públicos e esteja ameaçando bens ambientais, como rios, florestas, parques e praias, exatamente quando fica evidente a relevância desse patrimônio para evitar o alargamento da crise climática.

Embora existam regras específicas definindo a proteção de cada um destes bens na Constituição Federal de 1988, o art. 225 da referida Lei Fundamental é peremptório ao estabelecer que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem público de uso comum, sendo a sua proteção um dever de todos e obrigação do poder público.

Todavia, apesar de o meio ambiente ser um bem público de uso comum, há pelo menos dois séculos ele vem sendo privatizado por meio da sistemática externalização dos danos à natureza. Neste tipo de prática, o ambiente é tratado como local de descarte de tudo aquilo que não pode ser apropriado pelo capital, com a poluição das chaminés, rejeitos e resíduos sólidos contaminantes. O resultado é um crescimento sem precedentes no nível de dióxido de carbono na atmosfera, o que foi intensificado neste “século de privatizações”.

Em apenas 12 anos, de 2001 e 2013, o nível de CO2 na atmosfera cresceu 38 ppm (partículas por milhão), praticamente o mesmo índice alcançado em 200 anos da revolução industrial, entre 1760 e 1960. Se Somarmos as emissões de 1960 a 2013, o crescimento chegou a 92 ppm. Isto significa que o nível de dióxido de carbono na atmosfera quase dobrou em pouco mais de 200 anos.

Mas além de aumentar as emissões, o mercado desregulado também pressiona países para aumentar reservas monetárias por meio de exportações, o que acaba sendo obtido, contraditoriamente, por meio de incentivos fiscais a produtos de exportação altamente poluidores como as monoculturas do agronegócio e da mineração, resultando na retroalimentação entre o mercado desregulado, a degradação ambiental e as mudanças do clima.

Por meio dessa privatização do clima e do meio ambiente, estes deixam de ser bens públicos para se transformarem em depósito privado de rejeitos econômicos e isto resulta no descontrole climático. Logo, a crise climática global nada mais é do que uma crise gerada pela apropriação privada da atmosfera pelo grande capital poluidor.

Mas como enfrentar esse problema? A resposta mais adequada para esta questão começa pelo aumento da regulação dos mercados, ou seja, pelo crescimento da atividade reguladora do Estado para frear “a luta de todos contra todos” imposta pelo mercado, por meio da tributação progressiva do capital, da redistribuição de receitas, do redirecionamento das vantagens fiscais para setores que atuam na recuperação de áreas degradadas, conservação de bens ambientais, transição energética, dentre outras.

Portanto, há um conjunto complexo de tarefas que passa obrigatoriamente por uma mudança da cultura política, dentro de um processo definido pelos geógrafos estadunidenses Joel Wainwright e Geoff Mann, homenageando Thomas Hobbes, como a criação de um Leviatã Climático que, na prática, nada mais é do que um estado de bem-estar ecológico.

A viabilidade de um estado de bem-estar ecológico passa por uma série de estágios, como substituir o individualismo e o imediatismo das pautas isoladas, fomentados por tantos anos, por um pensamento mais solidário, o que hoje,, talvez, seja a nossa tarefa mais urgente.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Sul 21

 

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