quarta-feira, 19 de junho de 2024

Em 2023, 39 propostas prepararam terreno para PL que equipara aborto a homicídio

O debate em torno do PL 1904/2024 para equiparar o aborto acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio é parte de um movimento contra os direitos das mulheres comandado pela extrema-direita no Brasil. A comoção causada pela proposta de penalizar mais a vítima do que o estuprador é coerente com o perfil do Congresso Nacional na atual legislatura, de maioria conservadora.

É o que mostraremos nessa reportagem, primeira da série análises da nova edição do Elas no Congresso com dados de 2023. Desde 2020, o projeto do Instituto AzMina acompanha a atividade legislativa sobre direitos das meninas, mulheres e pessoas LGBTQIAP+, discute os avanços e retrocessos, e mostra um ranking de atuação dos parlamentares e partidos em relação a estes temas de interesse.

Tentativas de penalizar o aborto, seguidas de propostas sobre gestação, parto e maternidade foram maioria entre os 94 projetos de lei relacionados a Direitos Sexuais e Reprodutivos protocolados na Câmara dos Deputados e no Senado em 2023, primeiro ano da atual legislatura. Se aprovadas, metade das propostas podem ajudar diferentes perfis de famílias, mas a outra ameaça direitos, inclusive os já conquistados.

A análise é resultado da nova edição do Elas no Congresso, projeto do Instituto AzMina que acompanha a movimentação legislativa federal sobre gênero. Dessa vez, a agenda esteve dividida principalmente entre avanços nos temas de maternidade e retrocessos na discussão sobre aborto.

OFENSIVA ANTIDIREITOS

As tentativas de influenciar a regulamentação — ou a criminalização — de qualquer tipo de interrupção da gravidez no Brasil se concentram em projetos considerados desfavoráveis aos direitos femininos. São 42 proposições sobre o assunto, mas só três carregam avanços para garantir um procedimento digno às pessoas gestantes.

Outros 39 atacam o direito ao aborto de forma variada, sendo protagonizados principalmente por homens — que são, também, quem detém o maior número de cadeiras no Legislativo federal. Somando Câmara e Senado, o Congresso Nacional tem hoje 488 homens e 106 mulheres.

A tendência conservadora verificada nas eleições de 2022 influenciou diretamente a agenda. Partidos com grandes bancadas protagonizaram o movimento pela retirada de direitos: PL, Republicanos, União Brasil e Podemos. Entre os parlamentares, o senador Eduardo Girão (NOVO-CE) foi quem mais participou de projetos sobre o tema – com seis coautorias -, seguido pelos senadores(as) Damares Alves (Republicanos-DF) e Carlos Viana (Podemos-MG), e pelos deputados(as) Helio Lopes (PL-RJ) e Christine Tonietto (PL-RJ), co-autores em 4 PLs cada um.

Clara Wardi, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), reforça o fortalecimento da extrema-direita no Congresso, apesar da vitória progressista no Executivo. "A agenda de Direitos Sexuais e Reprodutivos não tem sido prioridade desse governo [federal], apesar de, no começo, ter sido feito um aceno muito positivo — revogou algumas portarias que fragilizavam o direito ao aborto legal e saiu de convenções internacionais como o Consenso de Genebra, redirecionando o Brasil internacionalmente e se alinhando mais aos direitos humanos" analisa.

CRUZADA ANTIABORTO

Essa ofensiva se concentrou no segundo semestre de 2023, período de intensa discussão sobre o tema, catalisada pelo voto da então Ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, relatora da ADPF 442 pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. "A ação está parada e a gente teve uma série de reações no Congresso, com a extrema-direita pautando audiências públicas para propagar desinformação e fortalecer as ações que já existiam junto ao STF, acusando o Supremo de ativismo jurídico e tentando restringir o alcance dos ministros", lembra Wardi.

A professora Taysa Schiocchet complementa que, na época, a resposta social e política ao voto da relatora veio também na letra da lei. "Notamos grande capacidade de proliferação desses PLs anti-aborto, similar ao que já se viu em debates anteriores sobre a discussão de gênero. Eles são facilmente replicáveis e pode ser que eles utilizem o mesmo modelo de projeto, para facilitar a tramitação". Ela ressalta que a entrada do Judiciário no debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil é recente, e impôs desafios adicionais à militância.

Os movimentos sociais são demandados a incidir também no campo judicial, mas o parlamento segue sendo disputa, como evidenciam os dados do Elas no Congresso. No Legislativo, as bancadas conservadoras demonstram uma frente ampla anti-direitos, que inclui elaboração coletiva de matérias, promoção de audiências públicas e atuação nas comissões parlamentares, advogando pela penalização do procedimento que deveria ser um direito.

OS RISCOS DE RETROCESSO

Nos países da América Latina onde o aborto foi descriminalizado nos últimos anos, a mudança veio a partir de extensos programas de educação e desestigmatização do procedimento. Contudo, no contexto brasileiro atual, segundo a professora Taysa, a polarização e a desinformação criam ainda mais entraves para o debate. "Hoje o cenário não é de estagnação, é de retrocesso. Além de não avançar, a gente tem agendas que tentam limitar e dificultar mesmo os casos que já estão previstos na legislação".

E os ataques não param. Em abril de 2024, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução n.º 2.378/2024, para proibir médicos de realizar a assistolia fetal, passo necessário à interrupção da gravidez acima de 22 semanas em casos decorrentes de estupro. A medida foi derrubada pelo STF no dia 17 de maio.

Poucas semanas depois, em junho, a bancada conservadora da Câmara se articulou para votar em caráter de urgência o PL1904/2024, que equipara o aborto ao crime de homicídio e estabelece uma verdadeira caçada às pessoas que gestam no Brasil. "O Congresso elegeu a dita 'pauta moral' como agenda para mobilizar o eleitorado, pois inclui pautas que mobilizam muito os afetos e são estratégicas. Esse contexto faz com que o principal desafio seja a própria manutenção dos direitos já conquistados", completa Clara Wardi.

Para ler mais sobre o contexto do aborto legal no Brasil, acesse o site da Revista AzMina especializado sobre o tema, o Aborto no Brasil. Acompanhe também outros conteúdos sobre a atuação do Legislativo no site do Elas no Congresso.

TRABALHO DE CUIDADO E VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Entre os PLs, 47 versam sobre parto, gestação, maternidade, adoção e cuidados neonatais, 40 foram avaliados positivamente. Uma das principais preocupações dos(as) parlamentares foi com a licença-maternidade e a licença-paternidade. Foram 11 PLs sobre este assunto, com foco em aumentar o período de afastamento remunerado da pessoa gestante e do(a) companheiro (o) ou associar outros benefícios à licença.

Numa entrevista à Revista AzMina em 2023, a deputada Luísa Canziani (PSD-PR) explicou que o planejamento da bancada feminina no ano era se concentrar em temas onde havia mais consenso, como as licenças parentais.

Outros textos legislativos chamam a atenção no escopo dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, sugerindo, por exemplo, garantir a presença de doulas no parto e dar prioridade na assistência psicológica a mulheres que sofreram óbito perinatal, aborto espontâneo ou aborto legal voluntário.

Clara Wardi observa que, recentemente, a maternidade vem sendo tratada a partir de uma perspectiva de reconhecimento do cuidado enquanto um tipo de trabalho, ao menos por uma parte minoritária do Congresso Nacional. Ela comenta que o debate da violência obstétrica também foi abraçado por parlamentares em discursos e proposições legislativas, por parlamentares de esquerda, centro e direita, principalmente as mulheres e as feministas, que são a minoria nas duas casas.

"Todo o trabalho que os movimentos de mulheres, as feministas e as organizações da sociedade civil têm feito junto da área da saúde têm trazido frutos", afirma, lembrando ainda que a legislatura atual (2023-2026) marcou a criação da Comissão Especial de Violência Obstétrica e Morte Materna (CEVOMM), na Câmara dos Deputados. Apesar disso, parte dos deputados e senadores entrevistados em 2023 pela pesquisa Além do Plenário – parceria AzMina e Mulheres Negras Decidem – sequer conhecia a expressão violência obstétrica, como mostramos nessa reportagem.

CAVALOS DE TROIA LEGISLATIVOS

Dentro das proposições sobre maternidade, sete PLs foram classificados pelas organizações avaliadoras do Elas no Congresso como desfavoráveis aos direitos das mulheres. Destes, cinco propõem assistência a famílias, como o PL 3820, para criar um "plano especial para aquisição de veículos por quem adotar criança ou adolescente", e o PL 3040, que "concede benefício especial a adotante de criança maior de três anos". Embora à primeira vista pareçam bem intencionados, ambos têm potencial para estimular a adoção irresponsável e  colocar crianças e adolescentes em risco.

Outros dois projetos sobre maternidade promovem desinformação ou empecilhos ao aborto legal — o PL 2674 e o PL 3233. Este último propõe alterar a redação da Lei 14.598, sobre cuidados nos exames de pré-natal, e incorporar o conceito de nascituro. O texto sugere que, "constatada qualquer alteração que coloque em risco a gestação, o médico encaminhará a gestante e o nascituro para tratamento médico adequado a fim de salvaguardar suas vidas". Caso aprovada, a emenda poderia limitar o acesso ao aborto legal país.

Segundo Taysa Schiocchet, há  tentativas recorrentes de camuflar elementos que poderiam impactar o direito ao aborto em emendas aparentemente  positivas. "Há uma sofisticação da linguagem e da técnica legislativa nestes projetos que tentam proibir o aborto. Hoje, os projetos não vão discutir o tema em termos religiosos, ainda que os fundamentos anteriores o sejam. Isso fica mais camuflado com linguagem jurídica e supostamente protetiva às mulheres".

 

•           Erika Hilton desmascara extrema direita que diz 'defender a vida': "Estuprador pode ser o deputado"

A deputada federal Erika Hiltion (PSOL-SP) voltou a criticar os apoiadores do Projeto de Lei 1904/2024, conhecido como "PL do Estupro", e expor os reais motivos que permeiam a defesa da proposta que equipara a interrupção de gestação acima de 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em casos de estupro.

Em entrevista ao programa "Papo de Segunda" no canal por assinatura GNT, na noite desta segunda-feira (17), Erika Hilton afirmou que o discurso de "defesa da vida" feito por deputados bolsonaristas e membros da bancada evangélica é utilizado, na verdade, para blindar um tipo de autodefesa desses parlamentares.

"Parem de fantasiar, de dizer que querem 'defender a vida'. Não, vocês não querem defender a vida. Vocês querem defender o status quo de vocês, querem defender os amigos de vocês e muitas vezes a si mesmo. Por que quem é o estuprador, o abusador dessa criança e dessa adolescente? Não é alguém que está lá na rua. É o pai, é o avô, é o tio, é o padrinho, é o padrasto. É sempre alguém que tem intimidade, que está dentro da própria casa e que pode ser o médico, o deputado, enfim, tantas pessoas 'comuns' na sociedade", disparou a deputada.

•           Petição para arquivar PL do Estupro já tem mais de 146 mil assinaturas

A petição que pressiona o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) a arquivar o PL 1904/2024, chamado de PL do Estupro, alcançou mais de 146.563 assinaturas até a tarde desta segunda-feira (17). Ele foi lançado pela deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) no sábado (15).

Intitulada "Arquiva, Lira", a petição reforça os perigos do PL que visa equiparar a pena para o aborto realizado após 22 semanas ao crime de homicídio, até mesmo em casos de estupro. Na prática, o projeto vai afetar, principalmente, crianças, que são a maioria das vítimas de abuso sexual e demoram a ter a gravidez identificada por diversos fatores, como aponta a petição: "menores de idade demoram mais a compreender e conseguir denunciar a violência sofrida, bem como reconhecer os sintomas de gravidez; por fundamentalismo ou receio de retaliação, profissionais de saúde impedem ou mesmo retardam o acesso a um direito garantido por lei; são pouquíssimos hospitais com serviço de aborto legal, num país de dimensões continentais".

No X (antigo Twitter), Sâmia publicou que "não há remendo" para o projeto, já que alguns deputados e Arthur Lira pretendem fazer alguns ajustes ao PL após pressão e colocar uma deputada para ser relatora, para que ele continue avançando. "Usar mulheres na relatoria para legitimar o ataque a outras mulheres é uma velha arma conhecida do patriarcado. Não caímos nessa. O jogo está virando. É hora de dobrar a pressão. Semana decisiva", afirmou a deputada.

•           Entenda o PL 1904/2024

O PL 1904/2024 foi apresentado na Câmara dos Deputados pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) com a assinatura de outros parlamentares. Ele foi protocolado em maio, logo após o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspender uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que restringia o acesso ao aborto legal em casos de estupro após 22 semanas de gestação.

De acordo com o texto do PL, ele equipara a pena do aborto ao crime de homicídio. "Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”, diz o primeiro parágrafo do projeto.

Essa proposta vale até mesmo para casos de abortos realizados em caso de estupro, que são permitidos pela legislação brasileira, que prevê três situações para a realização do aborto legal: estupro, risco de vida para a gestante e anencefalia do feto.

O PL foi alvo de diversas críticas porque criminaliza e revitimiza mulheres e, principalmente, crianças vítimas de estupro, além de aplicar uma pena a essas pessoas muito maior do que a do próprio estuprador.

Apesar disso, o projeto teve seu pedido de urgência aprovado por deputados bolsonaristas e da bancada evangélica em tempo recorde na Câmara na quarta-feira (12).

 

Fonte: AZ Mina/Fórum

 

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