Em 2023,
39 propostas prepararam terreno para PL que equipara aborto a homicídio
O
debate em torno do PL 1904/2024 para equiparar o aborto acima de 22 semanas de
gestação ao crime de homicídio é parte de um movimento contra os direitos das
mulheres comandado pela extrema-direita no Brasil. A comoção causada pela
proposta de penalizar mais a vítima do que o estuprador é coerente com o perfil
do Congresso Nacional na atual legislatura, de maioria conservadora.
É o
que mostraremos nessa reportagem, primeira da série análises da nova edição do
Elas no Congresso com dados de 2023. Desde 2020, o projeto do Instituto AzMina
acompanha a atividade legislativa sobre direitos das meninas, mulheres e
pessoas LGBTQIAP+, discute os avanços e retrocessos, e mostra um ranking de
atuação dos parlamentares e partidos em relação a estes temas de interesse.
Tentativas
de penalizar o aborto, seguidas de propostas sobre gestação, parto e
maternidade foram maioria entre os 94 projetos de lei relacionados a Direitos
Sexuais e Reprodutivos protocolados na Câmara dos Deputados e no Senado em
2023, primeiro ano da atual legislatura. Se aprovadas, metade das propostas
podem ajudar diferentes perfis de famílias, mas a outra ameaça direitos,
inclusive os já conquistados.
A
análise é resultado da nova edição do Elas no Congresso, projeto do Instituto
AzMina que acompanha a movimentação legislativa federal sobre gênero. Dessa
vez, a agenda esteve dividida principalmente entre avanços nos temas de
maternidade e retrocessos na discussão sobre aborto.
OFENSIVA
ANTIDIREITOS
As
tentativas de influenciar a regulamentação — ou a criminalização — de qualquer
tipo de interrupção da gravidez no Brasil se concentram em projetos
considerados desfavoráveis aos direitos femininos. São 42 proposições sobre o
assunto, mas só três carregam avanços para garantir um procedimento digno às
pessoas gestantes.
Outros
39 atacam o direito ao aborto de forma variada, sendo protagonizados
principalmente por homens — que são, também, quem detém o maior número de
cadeiras no Legislativo federal. Somando Câmara e Senado, o Congresso Nacional
tem hoje 488 homens e 106 mulheres.
A
tendência conservadora verificada nas eleições de 2022 influenciou diretamente
a agenda. Partidos com grandes bancadas protagonizaram o movimento pela
retirada de direitos: PL, Republicanos, União Brasil e Podemos. Entre os
parlamentares, o senador Eduardo Girão (NOVO-CE) foi quem mais participou de
projetos sobre o tema – com seis coautorias -, seguido pelos senadores(as)
Damares Alves (Republicanos-DF) e Carlos Viana (Podemos-MG), e pelos
deputados(as) Helio Lopes (PL-RJ) e Christine Tonietto (PL-RJ), co-autores em 4
PLs cada um.
Clara
Wardi, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA),
reforça o fortalecimento da extrema-direita no Congresso, apesar da vitória
progressista no Executivo. "A agenda de Direitos Sexuais e Reprodutivos
não tem sido prioridade desse governo [federal], apesar de, no começo, ter sido
feito um aceno muito positivo — revogou algumas portarias que fragilizavam o
direito ao aborto legal e saiu de convenções internacionais como o Consenso de
Genebra, redirecionando o Brasil internacionalmente e se alinhando mais aos
direitos humanos" analisa.
CRUZADA
ANTIABORTO
Essa
ofensiva se concentrou no segundo semestre de 2023, período de intensa
discussão sobre o tema, catalisada pelo voto da então Ministra do Supremo
Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, relatora da ADPF 442 pela descriminalização
do aborto até a 12ª semana de gestação. "A ação está parada e a gente teve
uma série de reações no Congresso, com a extrema-direita pautando audiências
públicas para propagar desinformação e fortalecer as ações que já existiam
junto ao STF, acusando o Supremo de ativismo jurídico e tentando restringir o
alcance dos ministros", lembra Wardi.
A
professora Taysa Schiocchet complementa que, na época, a resposta social e
política ao voto da relatora veio também na letra da lei. "Notamos grande
capacidade de proliferação desses PLs anti-aborto, similar ao que já se viu em
debates anteriores sobre a discussão de gênero. Eles são facilmente replicáveis
e pode ser que eles utilizem o mesmo modelo de projeto, para facilitar a
tramitação". Ela ressalta que a entrada do Judiciário no debate sobre a
descriminalização do aborto no Brasil é recente, e impôs desafios adicionais à
militância.
Os
movimentos sociais são demandados a incidir também no campo judicial, mas o
parlamento segue sendo disputa, como evidenciam os dados do Elas no Congresso.
No Legislativo, as bancadas conservadoras demonstram uma frente ampla
anti-direitos, que inclui elaboração coletiva de matérias, promoção de
audiências públicas e atuação nas comissões parlamentares, advogando pela
penalização do procedimento que deveria ser um direito.
OS
RISCOS DE RETROCESSO
Nos
países da América Latina onde o aborto foi descriminalizado nos últimos anos, a
mudança veio a partir de extensos programas de educação e desestigmatização do
procedimento. Contudo, no contexto brasileiro atual, segundo a professora
Taysa, a polarização e a desinformação criam ainda mais entraves para o debate.
"Hoje o cenário não é de estagnação, é de retrocesso. Além de não avançar,
a gente tem agendas que tentam limitar e dificultar mesmo os casos que já estão
previstos na legislação".
E
os ataques não param. Em abril de 2024, o Conselho Federal de Medicina (CFM)
publicou a Resolução n.º 2.378/2024, para proibir médicos de realizar a
assistolia fetal, passo necessário à interrupção da gravidez acima de 22
semanas em casos decorrentes de estupro. A medida foi derrubada pelo STF no dia
17 de maio.
Poucas
semanas depois, em junho, a bancada conservadora da Câmara se articulou para
votar em caráter de urgência o PL1904/2024, que equipara o aborto ao crime de
homicídio e estabelece uma verdadeira caçada às pessoas que gestam no Brasil.
"O Congresso elegeu a dita 'pauta moral' como agenda para mobilizar o
eleitorado, pois inclui pautas que mobilizam muito os afetos e são
estratégicas. Esse contexto faz com que o principal desafio seja a própria
manutenção dos direitos já conquistados", completa Clara Wardi.
Para
ler mais sobre o contexto do aborto legal no Brasil, acesse o site da Revista
AzMina especializado sobre o tema, o Aborto no Brasil. Acompanhe também outros
conteúdos sobre a atuação do Legislativo no site do Elas no Congresso.
TRABALHO
DE CUIDADO E VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
Entre
os PLs, 47 versam sobre parto, gestação, maternidade, adoção e cuidados
neonatais, 40 foram avaliados positivamente. Uma das principais preocupações
dos(as) parlamentares foi com a licença-maternidade e a licença-paternidade.
Foram 11 PLs sobre este assunto, com foco em aumentar o período de afastamento
remunerado da pessoa gestante e do(a) companheiro (o) ou associar outros
benefícios à licença.
Numa
entrevista à Revista AzMina em 2023, a deputada Luísa Canziani (PSD-PR)
explicou que o planejamento da bancada feminina no ano era se concentrar em
temas onde havia mais consenso, como as licenças parentais.
Outros
textos legislativos chamam a atenção no escopo dos Direitos Sexuais e
Reprodutivos, sugerindo, por exemplo, garantir a presença de doulas no parto e
dar prioridade na assistência psicológica a mulheres que sofreram óbito
perinatal, aborto espontâneo ou aborto legal voluntário.
Clara
Wardi observa que, recentemente, a maternidade vem sendo tratada a partir de
uma perspectiva de reconhecimento do cuidado enquanto um tipo de trabalho, ao
menos por uma parte minoritária do Congresso Nacional. Ela comenta que o debate
da violência obstétrica também foi abraçado por parlamentares em discursos e
proposições legislativas, por parlamentares de esquerda, centro e direita,
principalmente as mulheres e as feministas, que são a minoria nas duas casas.
"Todo
o trabalho que os movimentos de mulheres, as feministas e as organizações da
sociedade civil têm feito junto da área da saúde têm trazido frutos",
afirma, lembrando ainda que a legislatura atual (2023-2026) marcou a criação da
Comissão Especial de Violência Obstétrica e Morte Materna (CEVOMM), na Câmara
dos Deputados. Apesar disso, parte dos deputados e senadores entrevistados em
2023 pela pesquisa Além do Plenário – parceria AzMina e Mulheres Negras Decidem
– sequer conhecia a expressão violência obstétrica, como mostramos nessa
reportagem.
CAVALOS
DE TROIA LEGISLATIVOS
Dentro
das proposições sobre maternidade, sete PLs foram classificados pelas
organizações avaliadoras do Elas no Congresso como desfavoráveis aos direitos
das mulheres. Destes, cinco propõem assistência a famílias, como o PL 3820,
para criar um "plano especial para aquisição de veículos por quem adotar
criança ou adolescente", e o PL 3040, que "concede benefício especial
a adotante de criança maior de três anos". Embora à primeira vista pareçam
bem intencionados, ambos têm potencial para estimular a adoção irresponsável
e colocar crianças e adolescentes em
risco.
Outros
dois projetos sobre maternidade promovem desinformação ou empecilhos ao aborto
legal — o PL 2674 e o PL 3233. Este último propõe alterar a redação da Lei
14.598, sobre cuidados nos exames de pré-natal, e incorporar o conceito de
nascituro. O texto sugere que, "constatada qualquer alteração que coloque
em risco a gestação, o médico encaminhará a gestante e o nascituro para
tratamento médico adequado a fim de salvaguardar suas vidas". Caso
aprovada, a emenda poderia limitar o acesso ao aborto legal país.
Segundo
Taysa Schiocchet, há tentativas
recorrentes de camuflar elementos que poderiam impactar o direito ao aborto em
emendas aparentemente positivas.
"Há uma sofisticação da linguagem e da técnica legislativa nestes projetos
que tentam proibir o aborto. Hoje, os projetos não vão discutir o tema em
termos religiosos, ainda que os fundamentos anteriores o sejam. Isso fica mais
camuflado com linguagem jurídica e supostamente protetiva às mulheres".
• Erika Hilton desmascara extrema
direita que diz 'defender a vida': "Estuprador pode ser o deputado"
A
deputada federal Erika Hiltion (PSOL-SP) voltou a criticar os apoiadores do
Projeto de Lei 1904/2024, conhecido como "PL do Estupro", e expor os
reais motivos que permeiam a defesa da proposta que equipara a interrupção de
gestação acima de 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em casos de estupro.
Em
entrevista ao programa "Papo de Segunda" no canal por assinatura GNT,
na noite desta segunda-feira (17), Erika Hilton afirmou que o discurso de
"defesa da vida" feito por deputados bolsonaristas e membros da
bancada evangélica é utilizado, na verdade, para blindar um tipo de autodefesa
desses parlamentares.
"Parem
de fantasiar, de dizer que querem 'defender a vida'. Não, vocês não querem
defender a vida. Vocês querem defender o status quo de vocês, querem defender
os amigos de vocês e muitas vezes a si mesmo. Por que quem é o estuprador, o
abusador dessa criança e dessa adolescente? Não é alguém que está lá na rua. É
o pai, é o avô, é o tio, é o padrinho, é o padrasto. É sempre alguém que tem
intimidade, que está dentro da própria casa e que pode ser o médico, o
deputado, enfim, tantas pessoas 'comuns' na sociedade", disparou a
deputada.
• Petição para arquivar PL do Estupro
já tem mais de 146 mil assinaturas
A
petição que pressiona o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL)
a arquivar o PL 1904/2024, chamado de PL do Estupro, alcançou mais de 146.563
assinaturas até a tarde desta segunda-feira (17). Ele foi lançado pela deputada
Sâmia Bomfim (PSOL-SP) no sábado (15).
Intitulada
"Arquiva, Lira", a petição reforça os perigos do PL que visa
equiparar a pena para o aborto realizado após 22 semanas ao crime de homicídio,
até mesmo em casos de estupro. Na prática, o projeto vai afetar,
principalmente, crianças, que são a maioria das vítimas de abuso sexual e
demoram a ter a gravidez identificada por diversos fatores, como aponta a
petição: "menores de idade demoram mais a compreender e conseguir
denunciar a violência sofrida, bem como reconhecer os sintomas de gravidez; por
fundamentalismo ou receio de retaliação, profissionais de saúde impedem ou
mesmo retardam o acesso a um direito garantido por lei; são pouquíssimos
hospitais com serviço de aborto legal, num país de dimensões
continentais".
No
X (antigo Twitter), Sâmia publicou que "não há remendo" para o
projeto, já que alguns deputados e Arthur Lira pretendem fazer alguns ajustes
ao PL após pressão e colocar uma deputada para ser relatora, para que ele
continue avançando. "Usar mulheres na relatoria para legitimar o ataque a
outras mulheres é uma velha arma conhecida do patriarcado. Não caímos nessa. O
jogo está virando. É hora de dobrar a pressão. Semana decisiva", afirmou a
deputada.
• Entenda o PL 1904/2024
O
PL 1904/2024 foi apresentado na Câmara dos Deputados pelo deputado Sóstenes
Cavalcante (PL-RJ) com a assinatura de outros parlamentares. Ele foi
protocolado em maio, logo após o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo
Tribunal Federal (STF), suspender uma resolução do Conselho Federal de Medicina
(CFM) que restringia o acesso ao aborto legal em casos de estupro após 22
semanas de gestação.
De
acordo com o texto do PL, ele equipara a pena do aborto ao crime de homicídio.
"Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22
semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples
previsto no art. 121 deste Código”, diz o primeiro parágrafo do projeto.
Essa
proposta vale até mesmo para casos de abortos realizados em caso de estupro,
que são permitidos pela legislação brasileira, que prevê três situações para a
realização do aborto legal: estupro, risco de vida para a gestante e
anencefalia do feto.
O
PL foi alvo de diversas críticas porque criminaliza e revitimiza mulheres e,
principalmente, crianças vítimas de estupro, além de aplicar uma pena a essas
pessoas muito maior do que a do próprio estuprador.
Apesar
disso, o projeto teve seu pedido de urgência aprovado por deputados
bolsonaristas e da bancada evangélica em tempo recorde na Câmara na
quarta-feira (12).
Fonte:
AZ Mina/Fórum
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