Apesar de restrições, Philip Morris
patrocina evento cultural na parada LGBTQIA+ de SP
Num auditório
espaçoso, um vídeo institucional da Philip Morris – gigante da indústria do
tabaco mundial – abre uma roda de conversa sobre empregabilidade para pessoas
LGBTQIA+. A peça trata do descarte de bitucas e de diversidade. Além disso,
entre os palestrantes está uma representante da Philip Morris, que fala sobre
seleção e ampliação da diversidade no mercado de trabalho.
O evento, no caso, é
uma palestra da Feira da Diversidade –— parte da programação oficial da Parada
do Orgulho LGBT+ de São Paulo, realizada na quinta-feira, 30 de maio. A Philip
Morris é patrocinadora da feira.
A ação, contudo,
acontece no limite da legalidade, segundo especialistas ouvidos pela Agência
Pública. Isso porque uma lei federal proíbe há décadas o patrocínio de
atividade cultural ou esportiva por “uso de cigarros, cigarrilhas, charutos,
cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, em
recinto coletivo fechado, privado ou público”.
“É proibida a promoção
dos produtos, mas aí as empresas encontraram a brecha na lei, que é realizar a
publicidade institucional. Se a ação acontecer em nome da Philip Morris, isso
não seria ilegal”, explica a diretora da Aliança de Controle do Tabagismo (ACT)
Mônica Andreis.
“O problema é que são
empresas cujo produto é o tabaco, ou seja, esse é o carro-chefe delas: cigarros
e produtos fumígenos. Não são como uma grande empresa que tem uma gama de
produtos e poderia fazer uma ação institucional mais genérica”, avalia Andreis.
Além de patrocinar a
feira, a Philip Morris Brasil é apoiadora da própria Parada, como consta em
comunicado divulgado para a imprensa. Este é o sétimo ano que a empresa apoia o
evento. A logo da Philip Morris aparece no site da Parada do Orgulho como um dos
parceiros.
No evento, contudo, a
marca da Philip Morris só aparece nos painéis próximos ao auditório onde são
realizadas as rodas de conversa. Nos demais, aparecem apenas os outros
patrocinadores e apoiadores.
Na visão de Andreis,
empresas como a Philip Morris utilizam esse tipo de ação institucional para
melhorar sua imagem, que é prejudicada pelos males à saúde causados pelo fumo.
A associação a eventos que promovem a diversidade, no mês do Orgulho, é uma prática
comum no mundo do marketing, que foi apelidada de “rainbow washing”, em alusão
ao uso do arco-íris, símbolo da comunidade LGBTQIA+.
“Eles [Philip Morris]
têm feito esse investimento porque querem aprovar a entrada de novos produtos
no mercado, como os vapes, como se estivessem preocupados com a saúde do
consumidor. Devemos ver um aumento nesse tipo de iniciativa, para que pareçam
uma empresa socialmente responsável”, critica.
Os dispositivos
eletrônicos para fumar, conhecidos como vapes, são proibidos pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A proibição envolve desde a
fabricação, importação, comercialização, distribuição, armazenamento e
transporte até a propaganda de todos os dispositivos eletrônicos do tipo.
Na série de
investigações Redes de Nicotina, a Pública, com cinco outros veículos do
continente, mostrou como empresas de tabaco têm usado táticas para promover
novos produtos. Essa estratégia envolve desde pressões sobre a Anvisa, informes
publicitários pagos em veículos jornalísticos até atuação da bancada do fumo no
Congresso – um projeto da senadora do Mato Grosso do Sul Soraya Thronicke
(Podemos) quer liberar e regulamentar o comércio dos vapes. A política chegou a
levar os produtos para o Senado durante uma audiência no final de maio.
“Embora ela [Philip
Morris] não esteja fazendo propaganda de produto, ela é institucional, tem uma
intencionalidade de se aproximar de grupos, neste caso [a comunidade] LGBTQIA+
[…] e obviamente essa aproximação não é gratuita. É criar uma imagem positiva
de uma empresa que mata dois em cada três consumidores”, diz Tânia Cavalcante,
médica e ex-secretária da Comissão Nacional para Implementação da
Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco e de seus Protocolos (Conicq).
Cavalcante avalia que
a proximidade da indústria do tabaco com a comunidade LGBTQIA+ pode ser
revertida em apoios à aprovação social de seus produtos. “O meu receio é que,
em algum momento, esse grupo pode ser acionado, e espero que não aceitem, para
defender os interesses dessa empresa […] O nome dessa empresa está vinculado
aos seus produtos e os seus produtos matam”, diz.
A reportagem
questionou a Philip Morris sobre o patrocínio e o apoio, mas não recebeu
retorno até a publicação.
A Pública também
procurou a organização da Parada do Orgulho LGBTQIA+ em São Paulo, que informou
que “o patrocínio da Philip Morris Brasil é institucional. Sendo assim, não há
menção, em nenhum material de comunicação, a alguma marca de cigarro específica”.
Por nota, o presidente da ParadaSP, Nelson Matias Pereira, informou que “o
patrocínio se refere às rodas de conversa sobre Direito e Inclusão que
acontecem na 23ª Feira Cultural da
Diversidade LGBT+”.
• Limite da lei abre caminho para
publicidade institucional de empresas de tabaco
No Brasil, a
propaganda de cigarros em veículos de massa, como jornais, TVs e rádios, é
proibida desde os anos 2000. Contudo, apesar de a legislação brasileira ser
rigorosa quanto a esse tipo de divulgação, empresas que vendem cigarros e
outros produtos de tabaco têm conseguido fazer a divulgação das suas marcas
através de ações institucionais, como a Philip Morris faz na parada LGBT+ de
São Paulo.
O advogado
especializado em direito na publicidade Renato Valença é categórico: “Em termos
de produto, as marcas de cigarro não podem ser divulgadas, seja na Parada, seja
lá na Feira, seja em qualquer momento. Marcas de cigarro não podem ter
divulgação na mídia”, alerta.
Para Rafael Mafei,
professor de direito da Universidade de São Paulo (USP) e da Escola Superior de
Propaganda e Marketing (ESPM), é necessário analisar se a distinção entre a
propaganda institucional e a propaganda comercial faz sentido quando “produto é
indissociável à marca”. “A marca Philip Morris não comunica nada, a não ser
cigarro. Não existe outra comunicação possível da marca Philip Morris num
evento de comunicação de massa, como é o patrocínio institucional do evento,
que não seja cigarro”, acrescenta o professor.
Mafei cita a
Convenção-Quadro de Controle do Tabaco, que foi assinada pelo Brasil e outros
182 países com o intuito de conter o avanço desenfreado do consumo de tabaco
pelo mundo. O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) promulgou o
acordo em janeiro de 2006. O artigo 13 do documento prevê que as partes
reconhecem a “proibição total da publicidade, da promoção e do patrocínio do
consumo de produtos do tabaco”.
“Pelo texto, o Brasil
se comprometeu a proibir toda publicidade do tabaco, em toda extensão que seja
possível”, afirmou o professor.
A legislação
brasileira prevê penalidades como advertência, suspensão no veículo de
divulgação, obrigatoriedade de publicação de esclarecimentos e multa, por meio
de fiscalização do órgão de fiscalização sanitária municipal.
A reportagem
questionou a vigilância sanitária da prefeitura. Procuramos também a Anvisa,
mas não recebemos respostas até a publicação da reportagem.
• Consumo de cigarros e tabagismo é
problema de saúde para pessoas LGBTQIA+, apontam pesquisas
Uma pesquisa publicada
ano passado na revista de saúde coletiva Physis, vinculada à Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj), avaliou como a Philip Morris tem se associado
à Parada LGBTQIA+ para promover seus produtos enquanto apoia a causa e promove
uma imagem corporativa positiva. O artigo cita dados de saúde no Brasil e em
outros países que apontam maior consumo de cigarros na população LGBTQIA+, que
aumentaria a vulnerabilidade dessas pessoas.
“O assunto ainda é
muito pouco discutido no Brasil, pouco problematizado. Apesar de existirem
pesquisas que apontam que a prevalência do tabagismo na população LGBT é maior,
há a aproximação da indústria dessa população, que a usa como uma forma de
responsabilidade social corporativa”, critica Aline Mesquita, uma das autoras
do artigo e tecnologista da Divisão de Controle do Tabagismo da Coordenação de
Prevenção e Vigilância do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
Segundo a
pesquisadora, a estratégia de se aproximar do movimento LGBTQIA+ não é
exclusiva da indústria do tabaco: ela cita empresas que produzem bebidas
alcóolicas e alimentos ultraprocessados como exemplos. “Elas lançam produtos
especiais, como o salgadinho com cores do arco-íris, mesmo que os produtos
causem problemas de saúde a essa população. O que elas buscam com isso?
Primeiro, melhorar a imagem, que é prejudicada pelo próprio produto que ela
vende. Ela ganha aliados para suas próprias pautas, pois são movimentos
organizados. Mas também há a hipótese que isso ajude a aumentar o consumo
nesses grupos”, comenta.
Na pesquisa, Mesquita
também aponta como a Philip Morris utiliza valores associados à liberdade e
linguagem ligada à população LGBTQIA+ para divulgar sua marca, mas que isso
também tem relação com a pressão dessas empresas para liberar os novos produtos
no mercado.
“Quem é que não preza
pela liberdade? Contudo, é uma contradição esse discurso em um produto que
causa uma dependência gravíssima. O importante seria dar visibilidade ao
problema do tabagismo na população LGBTQIA+: é uma indústria que tem um produto
que mata uma população que já é vulnerabilizada e já faz uso maior desses
produtos. E isso não é percebido pelo próprio grupo”, pondera.
Fonte: Por Bruno
Fonseca e Rafael Custódio, da Agencia Pública
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