A médica
denunciada por fazer abortos legais no Brasil
Era
2019 quando a obstetra Helena Paro se viu diante do caso da paciente mais jovem
que já atendeu: uma menina de 11 anos que, estuprada por dois anos pelo
padrasto, estava grávida de 17 semanas.
"Ela
era muito 'pititica', a gravidez foi percebida por outras pessoas em volta.
Perguntei se ela sabia como uma pessoa engravida. Ela disse: 'não, porque vou
aprender isso na escola só no ano que vem'."
Helena
é coordenadora de um dos três locais no Brasil que realizam aborto legal em
casos de violência sexual após 22 semanas de gestação, o Nuavidas (Núcleo de
Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual) em Uberlândia, Minas Gerais.
Caso
seja aprovado o projeto de lei 1.904/2024, do deputado Sóstenes Cavalcante
(PL-RJ), que equipara a interrupção da gravidez após esse período ao crime de
homicídio, médicos como Helena, hoje protegidos pelo Código Penal, poderão ser
presos caso realizem abortos em pacientes com mais de 22 semanas de gestação,
mesmo em casos de estupro.
A
lei brasileira prevê a maioridade penal aos 18 anos. Logo, crianças e
adolescentes que sejam submetidas a um aborto, mesmo se a proposta for
aprovada, não poderiam ser presas.
Mas,
segundo afirmou o autor do projeto, meninas menores de idade deveriam cumprir
medidas socioeducativas por abortar após 22 semanas, inclusive se a gravidez
tiver sido resultado de violência sexual.
Já
mulheres maiores de idade e médicos que realizem o procedimento, pelo projeto
em debate, seriam punidos com reclusão de seis a 20 anos, equiparando-o a um
homicídio simples.
O
aborto é crime no Brasil, mas existem três situações em que ele é permitido:
anencefalia fetal, ou seja, má formação do cérebro do feto; quando a gravidez
coloca em risco a vida da gestante; e quando a gravidez resulta de estupro.
Apesar
de hoje haver excludente de punibilidade para médicos que fazem aborto nos
casos permitidos pela lei, Helena Paro foi alvo de uma denúncia no Conselho
Regional de Medicina de Minas Gerais por ter editado uma cartilha orientando
profissionais de saúde sobre como prover a interrupção de uma gravidez com
medicamentos e acompanhamento remoto.
• 'Proibição total'
O
projeto de lei 1.904 teve sua urgência aprovada na Câmara dos Deputados na
quarta-feira (12/6), mas, diante da reação pública contrária, parlamentares do
Centrão e da bancada evangélica já avaliam que a votação não deve acontecer nos
próximos meses — o que Cavalcante negou na segunda-feira, dizendo que a medida
tem amplo apoio e será votada antes das eleições municipais, em outubro.
O
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pressionado após aprovar a urgência
em votação simbólica em 25 segundos, disse que o texto não tem data para ir ao
plenário e, quando for, será relatado por uma mulher de um "partido de
centro" e não abordará casos de aborto autorizados em lei — algo diferente
do que prevê o texto do deputado Cavalcante.
Helena
diz estar positivamente surpresa com a mobilização contrária ao projeto. Mas,
na avaliação dela, o objetivo da proposta, mesmo se não for votada nesse
momento, é coagir mulheres, médicos e, ao fim, abrir caminho para uma futura
retirada de qualquer hipótese de aborto hoje prevista.
"Esse
limite de 22 semanas é um passo para se proibir totalmente o aborto. Porque a
narrativa que se tenta colocar é a de que um feto tem direitos, sendo que o
ponto de corte, de onde uma pessoa começa ter direitos legalmente, é o
nascimento. Por essa lógica, se o feto tem direito, o embrião terá direitos, a
célula fecundada vai ter direitos. É esse o movimento que estão tentando
fazer", diz a médica, que será uma das painelistas do Fórum Brasil-UK, que
acontece neste final de semana, na Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Na
justificativa da proposta, Sóstenes Cavalcante faz uma interpretação do código
penal de 1940 na qual diz que há o reconhecimento do nascituro como
"pessoa" — logo, detentora de direitos, cujo nascimento não poderia
ser interrompido nem mesmo em caso de estupro.
"Se
o nascituro é uma pessoa, como foi reconhecido pelo legislador, jamais o
legislador admitiria que houvesse um direito de matar uma pessoa inocente para
resolver um problema de segunda pessoa, por mais grave que fosse, causado por
uma terceira pessoa", escreveu.
Nas
redes sociais, Sóstenes Cavalcante defende que o projeto "tem como
objetivo considerar o aborto tardio como homicídio, reforçando a proteção à
vida desde a concepção".
• Quem busca aborto após 22 semanas?
A
maioria dos que buscam interrupção da gravidez após 22 semanas, segundo Helena
Paro, são "mulheres em situação de vulnerabilidade e que encontram imensa
dificuldade em acessar o serviço público".
Hoje,
cerca de um terço dos procedimentos de aborto legal no Nuavidas, diz Paro, são
de gestações que ultrapassam a marca de 22 semanas. De acordo com a médica, em
muitos desses casos, a demora em interromper a gravidez se dá pela dificuldade
de acesso ao aborto legal.
"A
pessoa vai batendo de porta em porta e encontra profissionais de saúde que
muitas vezes orientam errado, acham que precisa fazer Boletim de Ocorrência ou
sabem, mas se recusam a dar a informação devida".
Hoje
não há exigência legal de boletim de ocorrência nem alvará judicial para que
uma vítima de estupro peça um aborto legal. A mulher passa por uma avaliação
com serviço social, psicologia e ginecologia.
E,
a partir do momento em que o procedimento dela é aprovado, ela assina um termo
de consentimento e o aborto é realizado.
Quando
a vítima tem entre 16 e 18 anos, os representantes legais assinam juntamente
com ela. E quando ela tem menos de 16, os representantes legais assinam por
ela. Na prática, no entanto, em muitos locais as mulheres encontram
dificuldades e obstáculos colocados pelos hospitais.
Há
ainda dificuldades logísticas e de recursos.
"Como
poucos locais realizam o procedimento, essa pessoa precisa pegar algum dinheiro
para viajar, deixa o filho que já tem sob os cuidados de outras pessoas por
alguns dias. Vão de ônibus a um Estado, é recusado o acesso, precisa ir a outro
lugar. São mulheres de 20 anos, de 40 anos, por vezes vítimas de uma violência
doméstica tão severa que não querem levar a gravidez em frente porque isso a
amarra ainda mais àquela relação abusiva", relata.
Dois
trabalhos emblemáticos encabeçados pelas pesquisadoras Diana Greene Foster e
Katrina Kimport, que compõem o mais extenso estudo norte-americano sobre as
consequências de ter ou não acesso ao aborto, acompanharam cerca de mil
mulheres por 10 anos.
Elas
mostraram que o perfil de mulheres que buscavam o procedimento tardio é, em sua
maioria, de mães que criam filhos sozinhas, vítimas de violência doméstica,
usuárias de drogas com dificuldades de reconhecer a própria gravidez, e
crianças e adolescentes.
Segundo
o estudo, as dificuldades para superar os obstáculos, inclusive financeiros,
encontrar um provedor e a estigmatização são fatores decisivos para o aborto
tardio. Ou seja, assim como ocorre no Brasil, é a própria dificuldade do
sistema de saúde dos EUA em prover acesso ao aborto que empurra mulheres a
interrupções tardias.
• Peregrinação por aborto legal
Neste
momento, além do Hospital de Clínicas de Uberlândia, no interior de Minas
Gerais, onde atua Helena, há somente mais dois centros de saúde, em Salvador
(BA) e Recife (PE), que atendem meninas e mulheres vítimas de violência sexual
e que pretendem fazer um aborto tardio.
Para
se ter ideia das dificuldades, uma mulher que more em Rio Branco, no Acre,
teria que percorrer 4.696 km — cerca de 70 horas de carro — para buscar
atendimento no Recife, e 4.335 km — cerca de 58 horas de carro para chegar a
Salvador. A distância a percorrer é equivalente à da capital do Acre até a
Cidade do México. O local mais próximo seria Uberlândia, a 3 mil km de
distância.
Um
quarto local de atendimento e que era referência no procedimento acima de 22
semanas de gestação é o Hospital Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo. O
serviço foi suspenso pela prefeitura em dezembro de 2023, sob a justificativa
de aumentar a capacidade para a realização de cirurgias no local.
O
prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), disse que a cidade continuaria
realizando abortos permitidos pela legislação, em outros quatro hospitais da
cidade: Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio (Tatuapé); Hospital Municipal
Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo); Hospital Municipal Tide
Setúbal e Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni (Jardim Sarah).
Uma
reportagem da GloboNews, contudo, mostrou que ao menos duas mulheres tiveram o
aborto legal negado nesses hospitais. A Secretaria Municipal da Saúde (SMS), da
Prefeitura de São Paulo, disse que atende às demandas de procedimentos com
determinação legal.
Helena
diz que o impacto já é sentido pelos outros locais que atendem vítimas de
violência sexual.
"Logo
que aconteceu [a suspensão], tivemos casos encaminhados para cá, o que por si é
um absurdo, alguém ter de sair da maior cidade do país e ir para Uberlândia
para ter atendimento médico", aponta.
"A
gente já enfrenta um temor dos profissionais. Não iremos rejeitar quem procure,
é nossa obrigação atender, mas há um aumento do medo".
Se
considerado o aborto legal sem restrição de semanas, apenas 108 cidades do
Brasil, menos de 2% dos 5.565 municípios, oferecem o serviço.
• Na mira de movimentos antiaborto
Bem
antes desse projeto ganhar holofotes no Congresso, Helena Paro já tinha entrado
na mira de movimentos antiaborto.
Durante
a pandemia de covid-19, o Nuavidas passou a oferecer meios para a interrupção
da gravidez com acompanhamento por telemedicina até a 12ª semana, seguindo as
recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para evitar o contato dos
profissionais com as mulheres, que poderia potencializar infecções.
A
paciente, neste caso, ainda precisa ir até o hospital para retirar o
medicamento.
Para
difundir as experiências do Nuavidas com a telemedicina, ela criou uma cartilha
de procedimentos, "Aborto legal via telessaúde", em 2021, para
orientar profissionais de saúde a como oferecer o aborto em casa com segurança.
Por
causa disso, ela virou alvo de um procedimento ético-profissional movido pelo
Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais que, no limite, pode levar à
perda de sua licença médica.
Segundo
Helena Paro, a acusação é de infrações de artigos do código de ética médica,
como "favorecer o crime" e "corromper os bons costumes".
Ela
também teve de responder a uma sindicância depois que o senador Eduardo Girão
(Novo-CE) acionou o CRM de Minas acusando-a de "propaganda" do
aborto.
"É
uma cartilha para profissionais de saúde, não há propaganda alguma, nem tem meu
nome no material. Telessaúde funciona apenas na orientação, mas a paciente
ainda tem de fazer a consulta presencial e pegar o remédio no hospital. O que
eles querem é nos calar, impedir as aulas, de falar sobre o assunto", diz
Helena.
Os
registros da sindicância e do procedimento ético-profissional estão sob sigilo.
O caso foi encaminhado à Justiça pela defesa da Helena Paro para tentar
suspender a ação, mas a Vara da Justiça Federal de Uberlândia se pronunciou
pela continuidade do caso.
O
Nuavidas realiza diferentes procedimentos a depender do caso, todos em acordo
com a lei brasileira: comprimidos em casos com até 12 semanas; assistolia fetal
e procedimento cirúrgico (dilatação e evacuação) em casos tardios.
A
BBC News Brasil procurou o Conselho Federal de Medicina (CFM) para saber a
posição da entidade, que respondeu que a situação da médica está ativa e
regular junto ao sistema de conselhos de medicina.
"Com
respeito ao caso em apuração, informamos que o Conselho Federal de Medicina
(CFM) constitui uma esfera de julgamento em grau de recurso. Neste sentido,
para manter sua isenção, ele não comenta casos concretos."
A
possibilidade de aborto em domicílio, com auxílio de orientações médicas por
telefone, já existe, por exemplo, no Reino Unido, onde os comprimidos são
enviados às pacientes por correio, bem como em alguns Estados nos Estados
Unidos, com a prescrição de mifepristona para interrupção da gravidez e o
misoprostol para esvaziamento do útero.
Fonte:
BBC News Brasil
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