Tratamento
do câncer no Brasil continua desigual e implementação da nova política segue
desafiadora
Os
desafios enfrentados por pacientes com câncer no Brasil são inúmeros, do
diagnóstico até o acesso ao tratamento e aos cuidados paliativos. Essa jornada,
influenciada pelas desigualdades regionais, têm um impacto significativo na
vida daqueles que descobrem a doença. E os dados apontam para essa realidade. A
nova pesquisa “Meu SUS continua diferente do seu SUS“, divulgada pelo Oncoguia,
revelou que o tratamento do câncer de pulmão pelo SUS é desigual e está
defasado em 10 anos. No entanto, esse cenário pode mudar com a implementação da
Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no âmbito do Sistema Único
de Saúde (SUS), aprovada em 2023 e que entrará em vigor em junho deste ano.
Essas foram algumas das principais pautas discutidas no 14º Fórum Nacional
Oncoguia, realizado em São Paulo, SP, em 8 e 9 de maio, onde especialistas e
pacientes debateram os impactos das desigualdades sociais no cuidado
oncológico, a navegação do paciente ao longo da jornada e tendências que
chegarão nos próximos anos.
“Por
que demora tanto para mudar e para melhorar esse cenário? Tivemos mudanças e
conquistas nesses últimos 10 anos, mas seguem sendo pequenas e dão a sensação
de que os desafios aumentam”, disse Luciana Holtz, presidente e fundadora do
Oncoguia.
Estes
desafios, segundo ela, são ainda mais preocupantes com as projeções futuras.
Considerada a segunda causa de morte no mundo atualmente, o câncer está apenas
atrás das doenças cardiovasculares – em algumas cidades, no entanto, já é a
principal. No curto prazo, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), são
esperados 704 mil casos novos de câncer a cada ano no triênio 2023-2025. Mas no
longo prazo, um levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Agência
Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc), com dados atualizados de 185
países, aponta que, em 2050, a previsão é de que haverá 35 milhões de novos
casos de câncer, número 77% em comparação com o que era projetado para 2022.
Neste mesmo ano, o Brasil deverá registrar 1,15 milhão de novos diagnósticos e
554 mil mortes, o que representa um aumento de 98,6% em relação aos óbitos
ocorridos em 2022.
Diante
desse contexto, os especialistas que participaram do fórum deixaram claro que a
oncologia brasileira precisa resolver questões que envolvem falta de uma
política de rastreamento, filas de espera, dificuldade de uma regulação ágil e
transparente, definição linhas de cuidado – que evitem que o paciente se perca
durante a jornada – e acesso rápido a tratamentos eficazes que realmente façam
a diferença para os pacientes.
• Tratamento
do câncer de pulmão está defasado em 10 anos
A
pesquisa apresentada esse ano pelo Oncoguia fez um recorte do câncer do pulmão
para identificar padrões e disparidades no tratamento oferecido pelos hospitais
oncológicos do SUS a pacientes em todo o país. O estudo é um capítulo
atualizado do levantamento “Meu SUS é diferente do seu SUS”, publicado em 2017
e que ganhou manchetes ao traduzir em números o panorama do paciente
oncológico. Os resultados deste ano mostram que o tratamento do câncer de
pulmão pelo sistema público varia significativamente entre os hospitais, além
de não estar em conformidade com as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas
(DDTs) estabelecidas pelo Ministério da Saúde. No Brasil, estima-se que haverá
cerca de 32.560 casos a cada ano durante o triênio 2023-2025. Porém, os dados
indicam que 70% dos diagnósticos ocorrem em estágio avançado da doença.
A
equipe do Oncoguia entrou em contato com 268 hospitais habilitados em oncologia
no Brasil para averiguar os protocolos adotados no tratamento de pacientes
diagnosticados com câncer de pulmão. Dos 268 hospitais contatados, 64
responderam à pesquisa com documentos satisfatórios para análise. Estes foram
comparados com três documentos de referência: as DDTs do Ministério da Saúde,
atualizadas em 2014, a Lista de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial
da Saúde (OMS) e a escala ScoreCard MCBS da European Society for Medical
Oncology (ESMO), que categoriza medicamentos oncológicos com base em seu
benefício clínico e eficácia.
O
estudo revelou que apenas 22 dos hospitais pesquisados conseguem fornecer 100%
dos medicamentos indicados pela DDT. E quase nenhum hospital (98%) dispõe de
tratamentos mais avançados e eficazes – apenas um hospital dentre os
respondentes disponibiliza em seu protocolo a imunoterapia, considerada
fundamental no tratamento da doença. Para Fernando Moura, oncologista do
Hospital Albert Einstein e membro do Comitê Científico do Oncoguia, os últimos
avanços no tratamento para o câncer de pulmão ainda não foram incorporados pelo
SUS. Um exemplo é o acesso ao diagnóstico molecular, que permite identificar
especificamente o câncer de células não pequenas e determinar se o paciente
pode se beneficiar de tratamentos com terapia-alvo.
“Hoje
é possível entender o nome e sobrenome do câncer e, muitas vezes, evitar um
tratamento sistêmico, com pior qualidade de vida, como a quimioterapia, e
substituir a partir desse diagnóstico por um tratamento alvo molecular
dirigido, que vai bloquear aquela situação que originou o câncer, muitas vezes
por comprimidos. Conseguimos, com isso, ter um tratamento mais direcionado, mas
efetivo e com melhor experiência para o paciente”, aponta o oncologista.
Helena
Esteves, gerente de advocacy do Oncoguia, lembra que não adianta apenas
incorporar novos medicamentos, mas é necessário atualizar as DDTs e a
Autorização de Procedimento Ambulatorial – Alta complexidade/custo (APAC) para
que, de fato, aquele medicamento chegue ao paciente: “Vimos na prática que o
acesso não acontece”.
• Prioridade
do governo
“Sem
dúvida nenhuma a atenção ao câncer é uma das prioridades absolutas da gestão da
Ministra”, sentenciou Adriano Massuda, secretário de atenção especializada do
Ministério da Saúde desde março deste ano. “Está dentro de um conjunto de ações
para ampliação do acesso e qualidade na atenção especializada dentro do SUS.”
Ele
participou do fórum para trazer sua visão sobre os próximos passos da
secretaria, que abrange a CGCAN e o Inca. Durante sua fala, Massuda explorou a
questão das filas e destacou que a população não pode ficar esperando anos na
fila para fazer exame, cenário que se torna um problema maior na oncologia: “O
tempo que se perde para fazer exame no momento certo é o tempo que se perde
para iniciar um tratamento. Com isso, muitas vezes muda o prognóstico
terapêutico, com impacto na vida das pessoas e também impacto econômico no
custos das terapias quando o estadiamento está mais avançado.”
Diante
desses desafios, o secretário destacou iniciativas do governo apresentadas
recentemente, que segundo ele será um conjunto de ações para qualificar acesso
e cuidado. “Vamos fazer uma mudança revolucionária. Muito inspirado em alguns
serviços de atenção ao câncer que trabalham na lógica de coordenação ao
cuidado, navegação do cuidado”, afirmou Massuda. “Nós vamos não só financiar
procedimentos isolados, mas o cuidado integral. Vamos começar pela parte do
diagnóstico mais precoce, que é central, e financiar uma lógica em que
consultas e exames sejam remunerados de maneira integrada. E, dentro dessa
remuneração, você tem indução para melhor coordenação do cuidado, o que envolve
uma série de coisas, desde aprimorar o sistema de regulação, centrais, acesso,
gestão das filas.”
O
secretário afirmou que dentre as questões especializadas, “o câncer é aquela
que não pode esperar”.
• Status
da implementação da Nova Política Nacional do Câncer
Dentro
desse contexto, há grande expectativa de que as ações para mudar o cenário
ganhem reforço com a implementação da Nova Política Nacional do Câncer, que tem
como principal objetivo estruturar ações em prol da redução da incidência e da
mortalidade dos diferentes tipos de câncer e a promoção do acesso ao cuidado
integral. A legislação é celebrada por pacientes, entidades e apoiadores da
causa porque pretende trazer um desenho estruturado, em que o paciente navegue
por toda a jornada de forma organizada. Porém, a sua efetivação na prática é
outros dos principais desafios.
“Quantas
leis relacionadas ao câncer no SUS vocês conhecem e quantas saíram do papel?”,
indagou Tiago Farina Matos, conselheiro estratégico de advocacy do Oncoguia.
“Qual é a probabilidade dessa nova sair do papel? Temos que nos desafiar e
fazer o que é necessário de forma diferente. Precisamos nos engajar e dialogar
mais para garantir que isso de fato aconteça. Não vamos nos enganar: só porque
uma lei foi aprovada, não significa que ela virá junto com uma varinha mágica.
Ela precisa ser regulamentada e ajustada.”
A
estruturação e regulamentação da nova política está em andamento, sob
coordenação do Ministério da Saúde, que criou diversos grupos de trabalho para
debater os diversos detalhes. Os GTs têm a participação de entidades de âmbito
nacional, representantes de vários setores, incluindo representantes do
Ministério da Saúde, do INCA, médicos e organizações da sociedade civil e o
Conselho Consultivo do Instituto Nacional de Câncer (Consinca). Ao todo são
sete grupos para auxiliar na articulação com estados e municípios, visando
construir os instrumentos necessários para a sua efetivação.
A
primeira reunião ocorreu em fevereiro e a segunda está prevista para 24 de
maio. Aline Leal Gonçalves Creder Lopes, tecnologista da Coordenaria-Geral da
Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (CGCAN) do Ministério da
Saúde, relatou que o processo é complexo: “Por isso estamos trabalhando com o
Consinca e com os grupos de trabalho. Criamos sete grupos de trabalho para
discutir a política e avaliar se essa lei será efetiva. Temos várias leis, e
algumas não são implementadas”.
A
representante do Ministério afirmou que a oncologia tem uma importância dentro
da pasta, ressaltando a necessidade de atuação legislativa e reiterou que a
navegação do paciente é um dos aspectos essenciais dessa nova lei. Lopes
lembrou ainda que houve uma construção histórica desta lei a partir da portaria
874/2013: “Há 10 anos estamos trabalhando nesses aspectos. Agora, com a
aprovação da lei, temos uma oportunidade, porque ela traz várias outras
questões que não estavam previstas na portaria 874/2013”.
• Ações
e políticas de rastreamento e tratamento
Durante
o fórum, Lopes apresentou algumas das estratégias para rastreamento de alguns
tipos de câncer que serão feitas ainda esse ano. Para o câncer de colo de
útero, que é prevenível através de vacina, Lopes destacou a meta de elaborar e
acompanhar a implementação do Plano Nacional de Eliminação deste tipo de tumor,
proposto pela OMS em parceria com a OPAS. Com vacinação, rastreamento e
tratamento, o foco é reduzir em 40% os novos casos da doença e salvar 5 milhões
de vidas até 2050. Ela destacou ainda a Portaria SECTICS/MS nº 3, de 8 de
março, para testagem molecular do HPV e que está prevista também a revisão das
diretrizes brasileiras para o rastreamento deste tipo de câncer.
Para
o câncer de mama, estão sendo realizadas reuniões de apoio aos estados e
monitoramento dos parâmetros técnicos do INCA. Para o câncer de cólon e reto,
foram publicadas diretrizes cuja elaboração está prevista para ser concluída
até o final do ano. E para o câncer infanto-juvenil, está em andamento a
elaboração de um protocolo de alta suspeição.
“Todas
essas ações de rastreamento precoce têm um impacto não apenas na redução do
câncer, mas também nos custos para o sistema de saúde. Mais do que isso,
permitem que mulheres, homens e crianças evitem o desenvolvimento da doença e
recebam tratamentos mais adequados”, contou Aline.
Outro
tópico discutido no fórum foi o acesso a medicamentos e tratamento sistêmico.
Aline enfatizou que uma nova portaria de habilitações na alta complexidade em
oncologia será publicada para atender a essa demanda, revisando os critérios e
simplificando a habilitação. Além disso, o Plano de Aceleração do Crescimento
(PAC) incluirá a expansão do investimento em radioterapia. Também serão
revisados os procedimentos cirúrgicos em oncologia e ajustados outros
procedimentos na tabela SUS, com o objetivo de ampliar o acesso a diagnósticos
e tratamentos. Adicionalmente, será elaborada uma portaria para organizar o
novo modelo de acesso ao tratamento quimioterápico.
Para
dar conta do tratamento do câncer, são necessários não apenas postos de saúde
com profissionais já capacitados para olhar para sintomas muitas vezes
ignorados, mas também os hospitais filantrópicos e universitários. Nesse
contexto, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), vinculada ao
Ministério da Educação, pode desempenhar um papel importante, como destacou
Rodrigo Oliveira, assessor da Presidência da Ebserh. Atualmente, a Ebserh conta
com 8 mil leitos, 60 mil trabalhadores, 41 hospitais universitários, 55 mil
estudantes e 8 mil residentes: “Os hospitais universitários possuem um alto
grau de complexidade e especialização. Temos um grande papel em relação ao
câncer”.
Ele
revelou que está sendo organizado um processo de investimento e ampliação da
capacidade da rede Ebserh para atender a oncologia, a Oncorede. O objetivo é
“ampliar a permeabilidade dos hospitais para acesso à ampliação e radicalizar o
que uma rede de hospitais pode oferecer à população brasileira”.
Fonte:
Futuro da Saúde
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