quinta-feira, 23 de maio de 2024

POLÍTICA SOBRE DROGAS: A manicomialização da vida e os novos campos de concentração

No dia 14 de maio de 2024, o site Metrópoles publicizou a criação de um grupo de trabalho interministerial para desinstitucionalizar jovens que estão em comunidades terapêuticas. De acordo com a matéria, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) aprovou uma resolução que proíbe o atendimento para adolescentes em comunidades terapêuticas. Interessante destacar que a única pasta que compõe o Conad e votou contra a recomendação foi o Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, já que na atual gestão criou-se o Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas.

As comunidades terapêuticas são instituições que se propõem ao acolhimento de pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, em especial, aquelas que se encontram em maior vulnerabilidade social. Em boa parte das instituições, o “tratamento” oferecido está baseado no tripé trabalho, disciplina e espiritualidade. Além disso, apresentam-se como instituições de portas abertas, ou seja, a pessoa poderia sair no momento desejado. Entretanto, percebe-se que a metodologia de trabalho difere do exposto.

Não podemos deixar de destacar as práticas de violência e violação de direitos humanos que são recorrentemente denunciadas contra as comunidades terapêuticas. O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) vem emitindo notas e instituindo processos contra comunidades terapêuticas a partir de denúncias que chegam no órgão. Inclusive, em janeiro de 2023, o CNDH lançou uma recomendação para que o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome realizasse auditoria e inspeção nacional em todos os contratos, convênios e termos de parcerias firmados pela antiga Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred). Além de solicitar que, em conjunto com os ministérios da Saúde, dos Direitos Humanos e da Cidadania e da Justiça e Segurança Pública, sejam adotadas outras providências para que a assistência em saúde de pessoas usuárias de drogas seja construída a partir de políticas interministeriais com participação e controle social.

Para os movimentos, coletivos e entidades que pautam a saúde mental, a partir da perspectiva da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, as comunidades terapêuticas representam a atualização do manicômio. Apesar de não serem dispositivos de saúde e assistência social, as comunidades terapêuticas propõem ofertar um “tratamento” partindo da abstinência, da centralidade do trabalho forçado e da religião como forma de cura. Dessa maneira, tem-se o isolamento, o confinamento e a violência como base dessa proposta de modelo, bastante similar ao hospital psiquiátrico.

Em 17 de maio, em diversas cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, as ruas e praças foram ocupadas para comemorar o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Nos diferentes atos, havia faixas que reivindicavam o fim das comunidades terapêuticas e afirmavam o cuidado em liberdade. A Luta Antimanicomial defende que as pessoas em sofrimento e/ou adoecimento psíquico tenham acesso ao cuidado em saúde mental viabilizado pela Rede de Atenção Psicossocial, pautada na promoção da autonomia, na liberdade e nos direitos humanos. E para isso é necessário construir práticas, estratégias e tecnologias que trabalhem nos territórios, em diálogo com a comunidade e criem vínculos com os sujeitos e as famílias atendidas.

Não é uma tarefa simples assumir o cuidado em saúde mental que seja pautado pela liberdade, uma vez que a sociedade brasileira possui em sua formação social de bases racistas, patriarcais e classistas, o que rebate diretamente na criação de instituições, saberes e práticas que perpetuam uma certa noção de normalidade. No artigo “Holocausto ou Navio Negreiro?: inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira”, problematizamos como o racismo se manifesta na produção de uma normalidade branca, cisheteronormativa, patriarcal e classista, levando a população negra a ser o maior contingente a ocupar os espaços asilares. Destacamos Lima Barreto, em Cemitério dos vivos, que, ao narrar sua experiência no antigo Hospício Pedro II, assinala que o negro era a cor mais cortante daquele espaço.

Podemos dizer que a experiência da manicomialização das pessoas negras, pobres, moradoras de favelas, periféricas, em situação de rua, hoje protagonizada pelas comunidades terapêuticas, atualiza o navio negreiro e perpetua a produção de campos de concentração que fazem parte da lógica colonial. Em Condenados da terra, Frantz Fanon, adverte que a “colonização, na sua essência, já se apresentava como uma grande provedora dos hospitais psiquiátricos”. Dessa maneira, é urgente compreendermos que ambos os elementos estão interseccionalizados e não podem ser entendidos de maneira isolada, demonstrando que todas as formas de manicômio perpetuam o racismo.

No atual cenário, reconhecemos que as comunidades terapêuticas são os novos espaços de isolamento que atualizam velhas práticas de controle, subjugação e mortificação, perpetuando a destruição dos corpos e subjetividades dos considerados “condenados da terra”. Assim, não basta apenas avançarmos com a expansão dos serviços substitutivos da Rede de Atenção Psicossocial. Torna-se urgente construirmos ações intersetoriais que efetivem os direitos sociais, como moradia, lazer, trabalho, cultura, arte, educação etc. Dessa maneira, a Luta Antimanicomial defende uma sociedade mais justa, igualitária e sem discriminação, compreendendo que, para termos saúde mental, é necessária a efetivação do direito à vida.

 

Fonte: Por Rachel Gouveia Passos, no Le Monde

 

Nenhum comentário: