POLÍTICA
SOBRE DROGAS: A manicomialização da vida e os novos campos de concentração
No
dia 14 de maio de 2024, o site Metrópoles publicizou a criação de um grupo de
trabalho interministerial para desinstitucionalizar jovens que estão em
comunidades terapêuticas. De acordo com a matéria, o Conselho Nacional de
Políticas sobre Drogas (Conad) aprovou uma resolução que proíbe o atendimento
para adolescentes em comunidades terapêuticas. Interessante destacar que a
única pasta que compõe o Conad e votou contra a recomendação foi o Ministério
de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, já que na
atual gestão criou-se o Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento
Atuantes em Álcool e Drogas.
As
comunidades terapêuticas são instituições que se propõem ao acolhimento de
pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, em especial,
aquelas que se encontram em maior vulnerabilidade social. Em boa parte das
instituições, o “tratamento” oferecido está baseado no tripé trabalho,
disciplina e espiritualidade. Além disso, apresentam-se como instituições de
portas abertas, ou seja, a pessoa poderia sair no momento desejado. Entretanto,
percebe-se que a metodologia de trabalho difere do exposto.
Não
podemos deixar de destacar as práticas de violência e violação de direitos
humanos que são recorrentemente denunciadas contra as comunidades terapêuticas.
O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) vem emitindo notas e instituindo
processos contra comunidades terapêuticas a partir de denúncias que chegam no
órgão. Inclusive, em janeiro de 2023, o CNDH lançou uma recomendação para que o
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome
realizasse auditoria e inspeção nacional em todos os contratos, convênios e
termos de parcerias firmados pela antiga Secretaria Nacional de Cuidados e
Prevenção às Drogas (Senapred). Além de solicitar que, em conjunto com os
ministérios da Saúde, dos Direitos Humanos e da Cidadania e da Justiça e
Segurança Pública, sejam adotadas outras providências para que a assistência em
saúde de pessoas usuárias de drogas seja construída a partir de políticas
interministeriais com participação e controle social.
Para
os movimentos, coletivos e entidades que pautam a saúde mental, a partir da
perspectiva da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, as comunidades
terapêuticas representam a atualização do manicômio. Apesar de não serem
dispositivos de saúde e assistência social, as comunidades terapêuticas propõem
ofertar um “tratamento” partindo da abstinência, da centralidade do trabalho
forçado e da religião como forma de cura. Dessa maneira, tem-se o isolamento, o
confinamento e a violência como base dessa proposta de modelo, bastante similar
ao hospital psiquiátrico.
Em
17 de maio, em diversas cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo
Horizonte, as ruas e praças foram ocupadas para comemorar o Dia Nacional da
Luta Antimanicomial. Nos diferentes atos, havia faixas que reivindicavam o fim
das comunidades terapêuticas e afirmavam o cuidado em liberdade. A Luta
Antimanicomial defende que as pessoas em sofrimento e/ou adoecimento psíquico
tenham acesso ao cuidado em saúde mental viabilizado pela Rede de Atenção
Psicossocial, pautada na promoção da autonomia, na liberdade e nos direitos
humanos. E para isso é necessário construir práticas, estratégias e tecnologias
que trabalhem nos territórios, em diálogo com a comunidade e criem vínculos com
os sujeitos e as famílias atendidas.
Não
é uma tarefa simples assumir o cuidado em saúde mental que seja pautado pela
liberdade, uma vez que a sociedade brasileira possui em sua formação social de
bases racistas, patriarcais e classistas, o que rebate diretamente na criação
de instituições, saberes e práticas que perpetuam uma certa noção de
normalidade. No artigo “Holocausto ou Navio Negreiro?: inquietações para a
Reforma Psiquiátrica brasileira”, problematizamos como o racismo se manifesta
na produção de uma normalidade branca, cisheteronormativa, patriarcal e
classista, levando a população negra a ser o maior contingente a ocupar os
espaços asilares. Destacamos Lima Barreto, em Cemitério dos vivos, que, ao
narrar sua experiência no antigo Hospício Pedro II, assinala que o negro era a
cor mais cortante daquele espaço.
Podemos
dizer que a experiência da manicomialização das pessoas negras, pobres,
moradoras de favelas, periféricas, em situação de rua, hoje protagonizada pelas
comunidades terapêuticas, atualiza o navio negreiro e perpetua a produção de
campos de concentração que fazem parte da lógica colonial. Em Condenados da
terra, Frantz Fanon, adverte que a “colonização, na sua essência, já se
apresentava como uma grande provedora dos hospitais psiquiátricos”. Dessa
maneira, é urgente compreendermos que ambos os elementos estão
interseccionalizados e não podem ser entendidos de maneira isolada,
demonstrando que todas as formas de manicômio perpetuam o racismo.
No
atual cenário, reconhecemos que as comunidades terapêuticas são os novos
espaços de isolamento que atualizam velhas práticas de controle, subjugação e
mortificação, perpetuando a destruição dos corpos e subjetividades dos
considerados “condenados da terra”. Assim, não basta apenas avançarmos com a
expansão dos serviços substitutivos da Rede de Atenção Psicossocial. Torna-se
urgente construirmos ações intersetoriais que efetivem os direitos sociais,
como moradia, lazer, trabalho, cultura, arte, educação etc. Dessa maneira, a
Luta Antimanicomial defende uma sociedade mais justa, igualitária e sem
discriminação, compreendendo que, para termos saúde mental, é necessária a
efetivação do direito à vida.
Fonte:
Por Rachel Gouveia Passos, no Le Monde
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