Como
conter enchentes no Brasil, segundo criador das 'cidades-esponja': 'Barragens
estão fadadas ao fracasso'
Eventos
atmosféricos extremos com períodos prolongados de fortes chuvas e inundações,
como as ocorridas no Rio Grande do Sul nas últimas semanas, se tornarão cada
vez mais comuns e intensos, segundo os cientistas.
Mas
o que as cidades podem fazer para evitar ou mitigar esse tipo de tragédia?
Para
o criador do conceito de cidades-esponja, o arquiteto chinês Kongjian Yu, a
resposta está em parar de "lutar contra a água" e investir em
soluções duradouras e baseadas na natureza.
"Temos
uma escolha a fazer: investir em grandes barragens e diques que estão fadados a
fracassar ou apostar em algo que é duradouro, sustentável e ainda bonito e
produtivo", questionou o decano da faculdade de Arquitetura e Paisagismo
da Universidade de Pequim em entrevista à BBC News Brasil.
Para
Yu, as soluções tradicionais baseadas em barragens de cimento e tubulações
impermeáveis já se mostraram incapazes de acompanhar os efeitos das mudanças
climáticas, já que as chuvas são cada vez mais intensas e o nível da água de
rios e mares não para de subir.
Como
alternativa, o arquiteto propõe adotar uma infraestrutura verde, baseada em um
balanço hídrico artificial que seja o mais parecido possível com o natural e dê
espaço e tempo para que a água seja absorvida pelo solo.
Em
outras palavras, criar espaços e infraestruturas capazes de absorver, reter e
liberar a chuva de forma que ela retorne ao ciclo natural da água sem causar
estragos.
O
conceito já foi aplicado pela equipe de Yu em diversas cidades na China e
também na Tailândia, Indonésia e Rússia — e por outros arquitetos em todo o
mundo.
Segundo
o chinês, ele pode ser reproduzido em qualquer lugar, inclusive no Brasil.
"Funciona
em qualquer lugar. As cidades-esponja são uma solução para climas extremos,
onde quer que eles estejam", diz.
"E
o Brasil pode se dar muito bem com elas, porque tem muitas áreas naturais, o
que dá mais espaço para a água escoar."
De
acordo com o arquiteto, além de impedir inundações, o modelo também pode ser
útil durante os períodos de seca, já que a água armazenada pode ser utilizada
para irrigação e para manter as árvores e plantas da cidade em boas condições.
Além
das fortes chuvas, períodos mais prolongados de seca também são efeitos das
mudanças climáticas.
Antes
de sofrerem com as inundações, muitos produtores gaúchos já haviam sido
castigados pela falta de água no ano safra de 2021/22.
Mas
para que o conceito das cidades-esponja funcione, ele deve se basear em três
grandes estratégias, segundo Kongjian Yu.
Contenção
da água
O
primeiro princípio adotado nos projetos do chinês é reter a água assim que ela
toca o solo. Segundo Yu, isso pode ser alcançado por meio de grandes áreas
permeáveis e porosas, não pavimentadas.
Da
mesma forma que uma esponja com muitos orifícios, a cidade deve conter a chuva
com lagos artificiais e áreas de açude alimentados naturalmente ou por canos
que ajudam a escoar a água de rios e represas.
Telhados
e fachadas verdes, assim como valas com áreas verdes com camadas de solo
permeáveis por baixo também são usadas para esse propósito.
Kongjian
Yu explica que, em áreas cultiváveis, reservar 20% do terreno para operar como
um sistema de açude é suficiente para impedir que o restante do lote seja
inundado. Essa área pode ainda ser adaptada para colheitas resistentes à
umidade e para posteriormente abastecer o restante das plantações em épocas de
seca.
Apesar
de ser algo recente, a base teórica na qual as cidades-esponja resgata as
antigas tradições chinesas da agricultura e da gestão da água.
"Temos
que aprender com a aquacultura como fazer essa terra fértil, quais culturas
podem sobreviver e usar essas áreas para isso", diz. "O arroz é um
exemplo de uma plantação que pode funcionar."
• Redução
da velocidade
Em
seguida, o arquiteto aconselha pensar no manejo da água coletada. Isto é,
desacelerar o fluxo d'água.
Em
vez de tentar canalizar a água rapidamente para longe em linhas retas, rios
tortuosos com vegetação ou várzeas reduzem a velocidade da água.
Eles
oferecem mais um benefício, que é a criação de áreas verdes, parques e habitats
para animais, purificando a água escoada na superfície com plantas que removem
toxinas poluentes e nutrientes.
Yu
conta que se interessou pelo tema da urbanização e da contenção das águas após
vivenciar uma experiência com inundações durante a infância.
Na
época com apenas 10 anos, o chinês vivia em uma fazenda na Província de
Zhejiang, perto de Hangzhou. Durante um período de fortes chuvas, o córrego da
região inundou os campos de arroz da comunidade agrícola e Yu foi pego pelas
águas, carregado pela enchente.
Mas
as plantas, troncos e salgueiros ao longo do córrego reduziram a velocidade do
fluxo do rio, permitindo que ele se agarrasse à vegetação e saísse das águas.
"Se
o rio fosse como muitos são hoje, nivelados com paredes de concreto, certamente
eu teria me afogado", contou Yu à BBC.
As
técnicas usadas pelo arquiteto em seus projetos atuam da mesma forma que a
vegetação no córrego na fazenda de Yu, desacelerando a água.
• Escoamento
e absorção
A
terceira estratégia é adaptar as cidades para que elas tenham áreas alagáveis,
para onde a água possa escorrer sem causar destruição.
"Em
vez de construir barragens e ir acumulando a água em áreas de cimento,
precisamos nos adaptar à água, deixa a cidade lidar com a água de forma
saudável", diz Yu.
A
principal forma de fazer isso é criar grandes estruturas naturais alagáveis
para que a água possa ser contida por um tempo e, depois, absorvida pelo lençol
freático.
Yu
defende que essas áreas alagáveis permaneçam desocupadas, evitando-se
construções nas áreas baixas.
Nos
casos de infiltração, podem ser feitas caixas infiltrantes, que facilitam a
entrada da água no solo.
Algumas
cidades usam "jardins de chuva" que armazenam o excesso de chuva em
tanques subterrâneos e túneis. A água só é descartada nos rios depois que os
níveis diminuem.
Plantas
que absorvem água também podem ser usadas para dar conta do alto volume de
chuvas.
"A
natureza se adapta. O conceito de cidade-esponja é baseado no princípio de que
a natureza regula a água", diz o arquiteto. "Não é apenas a natureza
em si. Sistemas feitos pelo homem devem ser certamente usados, mas a natureza
deve ser dominante."
Yu
afirma ainda que, para conter as grandes inundações previstas para os próximos
anos, é preciso expandir essa estratégia por várias regiões e criar um
"planeta-esponja" onde a força das águas possa ser dissipada e
desacelerada aos poucos.
Ainda
na visão do chinês, além de parques adaptados e áreas cultiváveis capazes de
absorver mais água, lagoas e pântanos podem coexistir com rodovias e
arranha-céus.
• Experiências
Em
2015, o presidente chinês, Xi Jinping, inaugurou oficialmente o "Programa
Cidade-Esponja", que incentivava as cidades a adotar uma infraestrutura
verde para conter a água, ao invés das estratégias cinza comuns (feitas com
cimento, concreto, aço e asfalto).
Yu
é consultor da iniciativa e ajudou a construir centenas de
"parques-esponja" na China.
Um
deles é o Houtan Park, em Xangai. A faixa verde de quase 2 quilômetros de
extensão ao longo do rio Huangpu foi projetada em uma antiga área industrial.
Terraços
plantados com bambu, ervas e gramíneas nativas são cortados por passarelas de
madeira instaladas entre lagoas e pântanos.
As
zonas úmidas filtram a água, retardam o fluxo do rio e criam um ambiente
propício para aves aquáticas e peixes.
Mas
o conceito de cidade-esponja não é exclusivo da China. Um dos projetos
supervisionados por Yu fora do país foi nomeado Parque Florestal Benjakitti.
Em
Bangkok, na Tailândia, o parque possui um labirinto de lagos, árvores e
pequenas ilhas. Inaugurado em 2022, ocupa mais de 400 mil metros quadrados e
foi construído no lugar de uma antiga fábrica de tabaco.
Solução
mágica?
Em
todo o mundo, cada vez mais lugares estão enfrentando dificuldades com o
aumento das chuvas, um fenômeno que os cientistas relacionam às mudanças
climáticas.
À
medida que as temperaturas se elevam com o aquecimento global, cada vez mais
umidade evapora na atmosfera, causando chuvas mais fortes.
E
os cientistas afirmam que essa situação só irá piorar. No futuro, as chuvas
serão mais intensas que o normal.
Com
tempestades cada vez mais fortes, especialistas questionam se as
cidades-esponja serão capazes de conter inundações.
Pesquisadores
do tema analisaram os resultados das cidades que receberam os projetos
incentivados pelo governo chinês desde 2015.
Muitas
das iniciativas-piloto tiveram um efeito positivo, com projetos de baixo
impacto, como telhados verdes e jardins de chuva, desacelerando o escoamento.
Uma
das cidades que demonstraram mais entusiasmo em relação ao projeto, Zhengzhou,
na província de Henan, recebeu 60 bilhões de yuans (cerca de R$ 42 bilhões).
Ainda
assim, após a cidade ser atingida por uma das chuvas mais fortes da sua
história em 2021, as ruas ficaram inundadas e mais de 70 pessoas morreram.
Mas
Yu insiste que a sabedoria da China antiga não pode estar errada e essas falhas
são causadas pela execução inadequada ou fragmentada da sua ideia pelas
autoridades locais.
A
enchente em Zhengzhou, segundo ele, foi um exemplo clássico. A cidade
pavimentou seus lagos, de forma que não houve retenção de água suficiente
quando a chuva começou.
O
rio principal havia sido canalizado com drenagens de concreto, fazendo com que
a água fluísse com a velocidade "de uma descarga de vaso sanitário",
segundo o arquiteto. Além disso, construções importantes como hospitais foram
construídas sobre terras baixas.
Yu
afirma ainda que as soluções podem ser combinadas: manter as estruturas de
contenção que já existem e implementar os elementos das cidades-esponja ao
mesmo tempo.
O
chinês, porém, não vê vantagem em continuar construindo novas barragens que em
alguns anos se tornarão obsoletas.
"Se
[as cidades] já vão investir dinheiro, que seja em um projeto baseado na
natureza", diz. "Meus projetos demoram em torno de 1 a 3 anos e podem
ajudar as cidades a lidar com a água por muito tempo."
Yu
diz ainda que os próprios moradores podem usar seus jardins, terraços e
telhados como “esponjas” para ajudar a absorver a água das chuvas.
"Não
estou dizendo que vamos solucionar o problema completamente dessa forma, mas
vamos certamente mitigar as consequências."
Fonte:
BBC News Brasil
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