Chuvas no
RS: a exemplo da Rússia, Brasil poderia criar um ministério para a gestão de
emergências?
Na
Rússia, o Ministério para Situações de Emergência implementa ações coordenadas
a nível nacional para lidar com desastres como o vivenciado pelo Rio Grande do
Sul. Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se seria benéfico
para o Brasil a criação de um órgão semelhante.
As
chuvas que desde o final de abril assolam o Rio Grande do Sul afetaram mais de
2 milhões de pessoas, em 464 municípios, deixando pelo menos 161 mortos e mais
de 654 mil desabrigados, segundo o mais recente balanço da Defesa Civil do
estado.
No
início do mês, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a anunciar um
investimento de R$ 1,7 bilhão para a prevenção de desastres naturais referentes
à contenção de encostas. O governo federal também anunciou a criação da
Secretaria Extraordinária da Presidência da República de Apoio à Reconstrução
do Rio Grande do Sul, comandada por Paulo Pimenta, que para assumir o posto se
afastou do cargo de ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom).
A
tragédia no Rio Grande do Sul, no entanto, não é a primeira causada pelo clima
no Brasil. A cada ano elas se tornam mais frequentes, trazendo à tona a
pergunta: seria interessante para o país criar um ministério de emergência para
a gestão de desastres climáticos?
Alguns
países já contam com órgãos voltados para a questão. Na Rússia, por exemplo, há
o Ministério para Situações de Emergência que, entre outras atividades, é
responsável por prestar socorro a áreas afetadas por desastres climáticos.
Em
entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se a criação de um órgão
nesse sentido poderia prevenir tragédias como a do Rio Grande do Sul.
Para
Carlos Eduardo Canejo, pesquisador do mestrado profissional em ciências
ambientais da Universidade Veiga de Almeida (UVA), "não há dúvida nenhuma
de que a criação de um ministério ou mesmo uma secretaria dentro de um
ministério para tratar especificamente sobre a necessidade de redução de riscos
de desastres seria uma ação importante para a política pública nacional".
"É
extremamente necessário que tenhamos um órgão, um representante de governo
capaz de dar os direcionamentos para a União, para todos os estados e
municípios de como proceder, como viabilizar a obtenção de recursos
emergenciais para que a gente consiga preservar o bem mais importante à nossa
sociedade, que é a vida humana."
Ele
acrescenta que "a criação desse tipo de órgão pode ser, sim, uma tendência
para diversos países em função da necessidade de enfrentamento das mudanças
climáticas".
"Eu
não vejo outra forma de coordenar melhor ações de resposta a riscos a desastres
e efetivamente a desastres ocorridos sem ter um órgão de governo fazendo o
apoio, a supervisão, a coordenação das ações. E é importante também destacar
que esse órgão tem uma função fundamental de captar e liberar recursos de
maneira rápida para tentar salvar vidas", diz Canejo.
Canejo
enfatiza que o Brasil tem políticas ambientais em todas as esferas de governo —
federal, estadual e municipal —, e cada uma tem a sua competência, de acordo
com o que define a Constituição. Porém, ele aponta que cabe o desenvolvimento
de políticas talvez mais energéticas para a centralização de esforços na
redução de riscos de desastres.
"À
luz do que é feito hoje — com base na política nacional de meio ambiente —,
seria interessante que houvesse aí um esforço dos nossos deputados e dos nossos
senadores na proposição de ações mais efetivas de combate à crise climática e
redução de riscos de desastres. Talvez o desenvolvimento de novos instrumentos
que visem definir melhor as competências de cada ente federativo no caso de
ocorrência de desastres", afirma.
"Acredito
que essa seja uma estratégia positiva que viria, na verdade, a contribuir para
o nosso arcabouço legal, que é muito bom na área ambiental, mas especificamente
para tratar o caso de redução de riscos de desastres e para ampliar a discussão
sobre a importância de uma ação para o enfrentamento à crise climática. Acho
que a gente poderia fomentar a necessidade de desenvolvimento de novas
legislações sobre essa temática", acrescenta.
Marília
Nascimento, coordenadora de programas socioambientais da Associação Caatinga,
concorda que a criação de um ministério poderia contribuir para enfrentar os
desafios climáticos no Brasil. Ela destaca, no entanto, que esse enfrentamento
envolve vários setores.
"A
gestão de situações de emergência climática é uma questão transversal que
envolve diversos atores relacionados não só ao meio ambiente, mas também à
infraestrutura, agricultura, economia, entre outros setores, sendo assim
imprescindível a formação de órgão(s) que reúnam esse atores e especialistas da
área para dialogarem em prol da definição de estratégias focadas na resiliência
climática das comunidades e populações, devendo assim ser uma prioridade do
governo brasileiro para os próximos períodos. Nesse contexto, a criação de um
Ministério para Situações de Emergência pode vir a ser uma importante
estratégia para a garantia de medidas focadas na prevenção e minimização dos
impactos decorrentes dos desastres naturais", explica Nascimento.
Ela
acrescenta que "as possibilidades de mitigação dos impactos das mudanças
climáticas são múltiplas" e que "cotidianamente, cientistas e
pesquisadores brasileiros se debruçam a investigar e traçar metodologias
voltadas a um modo de desenvolvimento mais sustentável, em respeito ao ritmo de
regeneração da natureza".
"No
entanto, a implementação dessas estratégias em larga escala passa primeiramente
pela concepção de políticas públicas norteadoras que priorizem, incentivem e
fortaleçam o uso sustentável dos recursos naturais, o respeito aos povos e às
comunidades tradicionais, bem como a demarcação de seus territórios, a criação
e gestão de unidades de conservação e as especificidades de cada bioma
brasileiro, reconhecendo-os como patrimônios nacionais. Nesse sentido, a
criação de um órgão voltado às situações de emergência climática pode ser um
acelerador da implementação de políticas públicas voltadas à gestão e
conservação do patrimônio natural brasileiro, visto que essa é uma condição
basilar para o fortalecimento das iniciativas e dos atores engajados no manejo
sustentável das áreas naturais do Brasil."
• Modelo
autônomo de política ambiental é desafio para a unificação de ações
Lívia
Dias, engenheira ambiental, doutora em meteorologia aplicada e professora no
Departamento de Engenharia Ambiental da Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP), afirma que a ideia de criar um ministério para situações de emergência
"não é de todo ruim", mas sublinha que apenas uma nova pasta não
seria a solução para gerenciar ou mesmo prevenir desastres no país.
"Eu
avalio que seria mais profícuo, por exemplo, dar mais força e visibilidade para
o Plano Clima, que está em desenvolvimento sob a coordenação do Ministério do
Meio Ambiente e Clima", destaca Dias.
Ela
afirma que também é preciso levar em conta os gastos inerentes à criação de um
ministério, que teriam de ser alocados sem comprometer outras áreas, como saúde
e educação, e os desafios que a pasta teria em relação à centralização de ações
emergenciais, por conta da "estrutura federalista do Brasil, com
competências divididas entre União, estados e municípios".
Dias
aponta que a pauta climática e de adaptação deve permear as ações dos
ministérios já existentes, e cita como exemplo o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), sob a coordenação da Casa Civil.
"[O
PAC] poderia se alinhar às necessidades da emergência climática ao dar
prioridade para obras visando mitigação e adaptação, como obras de saneamento,
o que inclui a drenagem, o abastecimento de água, o tratamento de esgoto e a
disposição adequada de resíduos sólidos que são importantes em situações
extremas de chuva e seca, além de tantos benefícios relacionados à saúde
pública e ao bem-estar social."
Outro
desafio para a criação de um possível ministério de emergências é o fato de que
cada estado brasileiro tem questões ambientais e características ecológicas
específicas, e a autonomia que existe hoje permite que "as políticas sejam
adaptadas às necessidades e particularidades de cada região".
"Por
exemplo, a carbonização de resíduos sólidos pode ser uma solução para
municípios do interior do Amazonas, que têm dificuldade de obterem energia do
sistema elétrico brasileiro por serem distantes e onde as energias solar e
eólica sozinhas ainda são inviáveis devido ao alto custo de baterias para
garantir eletricidade todas as horas do dia. Já essa solução pode não ser
interessante para municípios do Sudeste, por exemplo, já que há questões
relacionadas à reciclagem e renda de catadores que também devem ser
consideradas."
Entretanto,
ela destaca que esse modelo de gestão descentralizada não é livre de problemas,
e cita como exemplo a desigualdade na proteção ambiental, com alguns estados
implementando políticas mais brandas do que outros.
"Além
disso, o estado pode não ser imparcial na proposição de uma política e colocar
em risco a sustentabilidade de longo prazo de toda sociedade por estar servindo
a interesses imediatos de terceiros, como mineradoras, madeireiros,
agricultores e pecuaristas ou industriais. Por exemplo, em 2019, o Rio Grande
do Sul afrouxou as regras para licenciamento ambiental, permitindo inclusive
uma espécie de autolicenciamento [na criação da Licença por Adesão de
Compromisso]", explica.
Já
Marília Nascimento afirma que a autonomia dos estados é importante,
especialmente para que seja possível implementar medidas eficazes para cada
contexto regional e cada bioma. "No entanto, é fundamental a existência de
parâmetros, diretrizes e metas nacionais que orientem as prioridades e
acompanhe e fiscalizem os processos e resultados."
"Nesse
viés, é também fundamental a unificação dos sistemas de informação dos estados
para que seja possível ter uma base de dados nacional coesa e atualizada, além
do panorama dos desafios, das oportunidades e boas práticas aplicadas em cada
contexto", afirma.
• Planejamento
das cidades deve ser repensado
Canejo
ressalta que não basta apenas atualizar as políticas de combate aos efeitos
climáticos, uma vez que o amadurecimento em torno do tema "não deve vir
apenas do poder público, dos governantes, mas sim de toda a sociedade",
que, segundo ele, deve compreender melhor o seu papel frente à crise climática.
"E
isso é um trabalho longo de sensibilização, que infelizmente situações como
esta que a gente está vivendo no Rio Grande do Sul abreviam esse processo de
aprendizagem. Então a crise climática é latente. Ela tem dimensões muito
maiores do que os governos gostariam que tivesse. A crise climática vai muito
além da vontade de um prefeito, de um governador, de um presidente. A crise
climática é algo que nos une, nos envolve, em prol de mudanças de
atitudes."
Ele
afirma ainda ser importante repensar o planejamento urbano, "integrando
práticas e soluções baseadas na natureza para reduzir riscos de desastres
naturais e ambientais".
"Isso
só se faz com compromisso público em olhar os pontos críticos de alagamento,
olhar os pontos críticos de enchente e entender como é que a natureza responde
a esse fenômeno. Ou seja, se eu tenho uma zona que é uma zona de alagamento
recorrente, quais soluções públicas podem ser dadas para aumentar a capacidade
de infiltração do solo naquela localidade? É a gente ter talvez um concreto
permeável, é a gente ter zonas, jardins de infiltração distribuídos? São
soluções públicas, simples, obviamente com custo, mas que reinventam a lógica
do desenvolvimento urbano, construindo cidades mais resilientes e mais
sustentáveis. Esse é um desafio de longo prazo, mas é importante que a gente dê
o primeiro passo o quanto antes."
Dias
compartilha da opinião de Canejo no que diz respeito à necessidade de agir
antes que a tragédia se consolide por meio de medidas de adaptação e prevenção.
"Primeiro
de tudo, o Brasil precisa construir e fazer manutenção de infraestrutura.
Investir na construção de barragens, diques e sistemas de drenagem, por
exemplo, é crucial diante das mudanças que estamos vendo no clima. Além disso,
é preciso promover a ocupação ordenada do solo, evitando construções em áreas
de risco como encostas e margens de rios."
Ela
acrescenta que foi exatamente nesse contexto que a universidade onde leciona
abriu o primeiro curso de engenharia urbana do Brasil, "porque é urgente
repensar nossas cidades".
"Também
é preciso aprimorar nossos sistemas de monitoramento climático. Ano após ano
vemos nossos radares sendo desligados e frequentemente parados por falta de
manutenção. Também vimos o sucateamento do INPE [Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais] e de outras instituições que prestam serviços
importantíssimos para a população quando falamos de clima e desastres. É
preciso informar à população em tempo real sobre eventos de chuvas intensas,
enchentes e até secas. Além disso, é preciso fazer campanhas de educação e
conscientização para que a população saiba o que fazer e como se proteger caso
ocorra um desastre, assim como é feito em áreas sujeitas a terremotos […]. Por
fim, é preciso investir em pesquisa para compreendermos melhor os fenômenos
naturais, nossa sociedade e nossa política e, assim, podermos sugerir melhores
práticas, baseadas em ciência, e não em 'achômetro'."
Fonte:
Sputnik Brasil
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