quinta-feira, 23 de maio de 2024

Chuvas no RS: a exemplo da Rússia, Brasil poderia criar um ministério para a gestão de emergências?

Na Rússia, o Ministério para Situações de Emergência implementa ações coordenadas a nível nacional para lidar com desastres como o vivenciado pelo Rio Grande do Sul. Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se seria benéfico para o Brasil a criação de um órgão semelhante.

As chuvas que desde o final de abril assolam o Rio Grande do Sul afetaram mais de 2 milhões de pessoas, em 464 municípios, deixando pelo menos 161 mortos e mais de 654 mil desabrigados, segundo o mais recente balanço da Defesa Civil do estado.

No início do mês, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a anunciar um investimento de R$ 1,7 bilhão para a prevenção de desastres naturais referentes à contenção de encostas. O governo federal também anunciou a criação da Secretaria Extraordinária da Presidência da República de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, comandada por Paulo Pimenta, que para assumir o posto se afastou do cargo de ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom).

A tragédia no Rio Grande do Sul, no entanto, não é a primeira causada pelo clima no Brasil. A cada ano elas se tornam mais frequentes, trazendo à tona a pergunta: seria interessante para o país criar um ministério de emergência para a gestão de desastres climáticos?

Alguns países já contam com órgãos voltados para a questão. Na Rússia, por exemplo, há o Ministério para Situações de Emergência que, entre outras atividades, é responsável por prestar socorro a áreas afetadas por desastres climáticos.

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se a criação de um órgão nesse sentido poderia prevenir tragédias como a do Rio Grande do Sul.

Para Carlos Eduardo Canejo, pesquisador do mestrado profissional em ciências ambientais da Universidade Veiga de Almeida (UVA), "não há dúvida nenhuma de que a criação de um ministério ou mesmo uma secretaria dentro de um ministério para tratar especificamente sobre a necessidade de redução de riscos de desastres seria uma ação importante para a política pública nacional".

"É extremamente necessário que tenhamos um órgão, um representante de governo capaz de dar os direcionamentos para a União, para todos os estados e municípios de como proceder, como viabilizar a obtenção de recursos emergenciais para que a gente consiga preservar o bem mais importante à nossa sociedade, que é a vida humana."

Ele acrescenta que "a criação desse tipo de órgão pode ser, sim, uma tendência para diversos países em função da necessidade de enfrentamento das mudanças climáticas".

"Eu não vejo outra forma de coordenar melhor ações de resposta a riscos a desastres e efetivamente a desastres ocorridos sem ter um órgão de governo fazendo o apoio, a supervisão, a coordenação das ações. E é importante também destacar que esse órgão tem uma função fundamental de captar e liberar recursos de maneira rápida para tentar salvar vidas", diz Canejo.

Canejo enfatiza que o Brasil tem políticas ambientais em todas as esferas de governo — federal, estadual e municipal —, e cada uma tem a sua competência, de acordo com o que define a Constituição. Porém, ele aponta que cabe o desenvolvimento de políticas talvez mais energéticas para a centralização de esforços na redução de riscos de desastres.

"À luz do que é feito hoje — com base na política nacional de meio ambiente —, seria interessante que houvesse aí um esforço dos nossos deputados e dos nossos senadores na proposição de ações mais efetivas de combate à crise climática e redução de riscos de desastres. Talvez o desenvolvimento de novos instrumentos que visem definir melhor as competências de cada ente federativo no caso de ocorrência de desastres", afirma.

"Acredito que essa seja uma estratégia positiva que viria, na verdade, a contribuir para o nosso arcabouço legal, que é muito bom na área ambiental, mas especificamente para tratar o caso de redução de riscos de desastres e para ampliar a discussão sobre a importância de uma ação para o enfrentamento à crise climática. Acho que a gente poderia fomentar a necessidade de desenvolvimento de novas legislações sobre essa temática", acrescenta.

Marília Nascimento, coordenadora de programas socioambientais da Associação Caatinga, concorda que a criação de um ministério poderia contribuir para enfrentar os desafios climáticos no Brasil. Ela destaca, no entanto, que esse enfrentamento envolve vários setores.

"A gestão de situações de emergência climática é uma questão transversal que envolve diversos atores relacionados não só ao meio ambiente, mas também à infraestrutura, agricultura, economia, entre outros setores, sendo assim imprescindível a formação de órgão(s) que reúnam esse atores e especialistas da área para dialogarem em prol da definição de estratégias focadas na resiliência climática das comunidades e populações, devendo assim ser uma prioridade do governo brasileiro para os próximos períodos. Nesse contexto, a criação de um Ministério para Situações de Emergência pode vir a ser uma importante estratégia para a garantia de medidas focadas na prevenção e minimização dos impactos decorrentes dos desastres naturais", explica Nascimento.

Ela acrescenta que "as possibilidades de mitigação dos impactos das mudanças climáticas são múltiplas" e que "cotidianamente, cientistas e pesquisadores brasileiros se debruçam a investigar e traçar metodologias voltadas a um modo de desenvolvimento mais sustentável, em respeito ao ritmo de regeneração da natureza".

"No entanto, a implementação dessas estratégias em larga escala passa primeiramente pela concepção de políticas públicas norteadoras que priorizem, incentivem e fortaleçam o uso sustentável dos recursos naturais, o respeito aos povos e às comunidades tradicionais, bem como a demarcação de seus territórios, a criação e gestão de unidades de conservação e as especificidades de cada bioma brasileiro, reconhecendo-os como patrimônios nacionais. Nesse sentido, a criação de um órgão voltado às situações de emergência climática pode ser um acelerador da implementação de políticas públicas voltadas à gestão e conservação do patrimônio natural brasileiro, visto que essa é uma condição basilar para o fortalecimento das iniciativas e dos atores engajados no manejo sustentável das áreas naturais do Brasil."

•                                           Modelo autônomo de política ambiental é desafio para a unificação de ações

Lívia Dias, engenheira ambiental, doutora em meteorologia aplicada e professora no Departamento de Engenharia Ambiental da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), afirma que a ideia de criar um ministério para situações de emergência "não é de todo ruim", mas sublinha que apenas uma nova pasta não seria a solução para gerenciar ou mesmo prevenir desastres no país.

"Eu avalio que seria mais profícuo, por exemplo, dar mais força e visibilidade para o Plano Clima, que está em desenvolvimento sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente e Clima", destaca Dias.

Ela afirma que também é preciso levar em conta os gastos inerentes à criação de um ministério, que teriam de ser alocados sem comprometer outras áreas, como saúde e educação, e os desafios que a pasta teria em relação à centralização de ações emergenciais, por conta da "estrutura federalista do Brasil, com competências divididas entre União, estados e municípios".

Dias aponta que a pauta climática e de adaptação deve permear as ações dos ministérios já existentes, e cita como exemplo o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), sob a coordenação da Casa Civil.

"[O PAC] poderia se alinhar às necessidades da emergência climática ao dar prioridade para obras visando mitigação e adaptação, como obras de saneamento, o que inclui a drenagem, o abastecimento de água, o tratamento de esgoto e a disposição adequada de resíduos sólidos que são importantes em situações extremas de chuva e seca, além de tantos benefícios relacionados à saúde pública e ao bem-estar social."

Outro desafio para a criação de um possível ministério de emergências é o fato de que cada estado brasileiro tem questões ambientais e características ecológicas específicas, e a autonomia que existe hoje permite que "as políticas sejam adaptadas às necessidades e particularidades de cada região".

"Por exemplo, a carbonização de resíduos sólidos pode ser uma solução para municípios do interior do Amazonas, que têm dificuldade de obterem energia do sistema elétrico brasileiro por serem distantes e onde as energias solar e eólica sozinhas ainda são inviáveis devido ao alto custo de baterias para garantir eletricidade todas as horas do dia. Já essa solução pode não ser interessante para municípios do Sudeste, por exemplo, já que há questões relacionadas à reciclagem e renda de catadores que também devem ser consideradas."

Entretanto, ela destaca que esse modelo de gestão descentralizada não é livre de problemas, e cita como exemplo a desigualdade na proteção ambiental, com alguns estados implementando políticas mais brandas do que outros.

"Além disso, o estado pode não ser imparcial na proposição de uma política e colocar em risco a sustentabilidade de longo prazo de toda sociedade por estar servindo a interesses imediatos de terceiros, como mineradoras, madeireiros, agricultores e pecuaristas ou industriais. Por exemplo, em 2019, o Rio Grande do Sul afrouxou as regras para licenciamento ambiental, permitindo inclusive uma espécie de autolicenciamento [na criação da Licença por Adesão de Compromisso]", explica.

Já Marília Nascimento afirma que a autonomia dos estados é importante, especialmente para que seja possível implementar medidas eficazes para cada contexto regional e cada bioma. "No entanto, é fundamental a existência de parâmetros, diretrizes e metas nacionais que orientem as prioridades e acompanhe e fiscalizem os processos e resultados."

"Nesse viés, é também fundamental a unificação dos sistemas de informação dos estados para que seja possível ter uma base de dados nacional coesa e atualizada, além do panorama dos desafios, das oportunidades e boas práticas aplicadas em cada contexto", afirma.

•                                           Planejamento das cidades deve ser repensado

Canejo ressalta que não basta apenas atualizar as políticas de combate aos efeitos climáticos, uma vez que o amadurecimento em torno do tema "não deve vir apenas do poder público, dos governantes, mas sim de toda a sociedade", que, segundo ele, deve compreender melhor o seu papel frente à crise climática.

"E isso é um trabalho longo de sensibilização, que infelizmente situações como esta que a gente está vivendo no Rio Grande do Sul abreviam esse processo de aprendizagem. Então a crise climática é latente. Ela tem dimensões muito maiores do que os governos gostariam que tivesse. A crise climática vai muito além da vontade de um prefeito, de um governador, de um presidente. A crise climática é algo que nos une, nos envolve, em prol de mudanças de atitudes."

Ele afirma ainda ser importante repensar o planejamento urbano, "integrando práticas e soluções baseadas na natureza para reduzir riscos de desastres naturais e ambientais".

"Isso só se faz com compromisso público em olhar os pontos críticos de alagamento, olhar os pontos críticos de enchente e entender como é que a natureza responde a esse fenômeno. Ou seja, se eu tenho uma zona que é uma zona de alagamento recorrente, quais soluções públicas podem ser dadas para aumentar a capacidade de infiltração do solo naquela localidade? É a gente ter talvez um concreto permeável, é a gente ter zonas, jardins de infiltração distribuídos? São soluções públicas, simples, obviamente com custo, mas que reinventam a lógica do desenvolvimento urbano, construindo cidades mais resilientes e mais sustentáveis. Esse é um desafio de longo prazo, mas é importante que a gente dê o primeiro passo o quanto antes."

Dias compartilha da opinião de Canejo no que diz respeito à necessidade de agir antes que a tragédia se consolide por meio de medidas de adaptação e prevenção.

"Primeiro de tudo, o Brasil precisa construir e fazer manutenção de infraestrutura. Investir na construção de barragens, diques e sistemas de drenagem, por exemplo, é crucial diante das mudanças que estamos vendo no clima. Além disso, é preciso promover a ocupação ordenada do solo, evitando construções em áreas de risco como encostas e margens de rios."

Ela acrescenta que foi exatamente nesse contexto que a universidade onde leciona abriu o primeiro curso de engenharia urbana do Brasil, "porque é urgente repensar nossas cidades".

"Também é preciso aprimorar nossos sistemas de monitoramento climático. Ano após ano vemos nossos radares sendo desligados e frequentemente parados por falta de manutenção. Também vimos o sucateamento do INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] e de outras instituições que prestam serviços importantíssimos para a população quando falamos de clima e desastres. É preciso informar à população em tempo real sobre eventos de chuvas intensas, enchentes e até secas. Além disso, é preciso fazer campanhas de educação e conscientização para que a população saiba o que fazer e como se proteger caso ocorra um desastre, assim como é feito em áreas sujeitas a terremotos […]. Por fim, é preciso investir em pesquisa para compreendermos melhor os fenômenos naturais, nossa sociedade e nossa política e, assim, podermos sugerir melhores práticas, baseadas em ciência, e não em 'achômetro'."

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

Nenhum comentário: