Tragédia ambiental, parasitismo privado e
dívida pública
O governo federal
anunciou a suspensão do pagamento do serviço da dívida do Rio Grande do Sul com
a União por um período de três anos. Os fundos não usados para o pagamento
deverão compor um fundo para a reconstrução do estado pós-enchentes. A
suspensão seguiu para análise do Congresso. O Rio Grande do Sul já faz parte do
Regime de Recuperação Fiscal (RRF), criado em 2017 para ajudar os estados com
níveis altos de endividamento em relação às receitas.
A adesão ao Regime de
Recuperação Fiscal dependia de manifestação de interesse do estado e de
homologação pelo governo federal. Em troca, os governos estaduais devem aprovar
um plano de recuperação, adotando algumas medidas para o equilíbrio fiscal,
como a implantação de um teto de gastos. Segundo o Ministério da Fazenda, a
dívida do Rio Grande do Sul com a União somava R$ 95,7 bilhões. Segundo o
governo estadual, a dívida cresceu por conta da fórmula adotada pela União para
corrigir os valores devidos, um pleito óbvio em sua legitimidade. Em 2024, até
o momento, foram pagos aproximadamente R$ 1,2 bilhões pelo Rio Grande do Sul. A
estimativa era de um pagamento total de R$ 3 bilhões neste ano – pagamento
suspenso pela medida anunciada.
A dívida interna do
Rio Grande do Sul remonta à década de 1990, quando o débito somava R$ 7,7
bilhões (ou seja, houve um incremento da dívida de quase R$ 90 bilhões em duas
décadas, em valores nominais – sem atualização). Também foram liberadas linhas
de crédito de R$ 2,5 bilhões no âmbito do Programa de Incentivo à Redução do
Setor Público Estadual na Atividade Bancária (Proes), criado em 1996. A
iniciativa do governo federal visa evitar gastos de R$ 11 bilhões
(correspondentes ao somatório de 36 parcelas da dívida) e mais R$ 12 bilhões
com os juros da dívida, durante um período de três anos.
Trata-se de suspensão
do pagamento por esse período, já que esse valor não pago terá de ser
desembolsado: a medida apenas suspende temporariamente os pagamentos. Com isso,
apenas se prolonga o drama, pois RS terá que pagar o atrasado, o que poderá
levar ao seu colapso fiscal, considerando que o estado terá uma grande redução
de sua atividade econômica, como fruto da atual tragédia, que resultará na
redução de suas receitas, já que não pode elevar a carga tributária.
Isso constitui um
problema geral, agravado pela enchente. No Brasil, mesmo com a Lei de
Responsabilidade Fiscal – LRF, de 4 de maio de 2000, que estabelecia limite de
gastos sociais da União, estados, Distrito Federal e municípios, a dívida
pública continuou a crescer. Conforme Arildo B. Oliveira, presidente em
exercício da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS),
90% do PIB industrial do Rio Grande do Sul está alagado, embaixo da água.
Haverá, portanto, uma queda da atividade econômica que levará a uma queda da
arrecadação ainda maior.
Todavia, o quadro
fiscal do Rio Grande do Sul se torna mais delicado quando constatamos que o
estado já se encontrava sob o Regime de Recuperação Fiscal, regime aplicado
para “ajudar” os estados com elevados níveis de endividamento em relação às
suas receitas, sem tocar nas causas da crise fiscal. Os estados que aderiram ao
Regime de Recuperação Fiscal foram: Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de
Janeiro e Goiás. De acordo com o governo, os estados devem cerca de R$ 740
bilhões. A maior parte está concentrada em SP, RJ, RS e MG. O Regime de
Recuperação Fiscal é um plano de recuperação financeira, com medidas de
austeridade visando o equilíbrio fiscal, introduzindo um teto de gastos,
previdência complementar e privatizações.
Com o programa, a
dívida contraída pelos estados junto à União é parcelada e paga de forma
escalonada. O plano do Rio Grande do Sul prevê parcelamento até 2030, quando o
estado deveria, segundo se diz, ter condições de quitar os débitos. Na essência
temos uma nova dimensão de teto de gastos, já que o limite dos gastos foi
exigência nas várias etapas de renegociação, seja em 1997, quando a dívida foi
federalizada pela Lei 9496/97 e rolada por 30 anos, ou pela Lei Complementar
156, que em 2016 rolou essa dívida por mais 20 anos.
A dívida pública do
Rio Grande do Sul segue a mesma trajetória daquela dos demais estados
brasileiros. Replicou a política do Banco Mundial de combate à pobreza,
justamente depois de tê-la incentivado através de medidas que geraram
amplificação das desigualdades regionais e sociais. A dívida atual teve sua
origem no endividamento externo, especialmente depois do golpe cívico-militar
de 1964. Esse endividamento, conforme o Banco Central, teve início em 1952; se
encerrou em 2000 (consideramos o período de 1948 a 2003) e teve várias fases.
No primeiro momento
foi baseado, como dito, em empréstimos externos; só no final dos anos 1980 teve
início o processo de internalização da dívida estadual. A partir de 1997, com a
Lei 9496/97, a dívida foi federalizada. Seus empréstimos ocorreram na área de
eletrificação, usinas térmicas, telecomunicações, portos, contenção de
enchentes, sistema rodoviário, companhia estatal de energia, refinanciamento da
dívida externa, constituição do SIVAM, combate à pobreza e ao êxodo rural. Essa
dívida foi marcada por profunda ilegitimidade, como demonstrou a CPI da dívida
pública de 2009 a 2010. Em boa parte, esses empréstimos serviram para a
implantação de infraestrutura necessária para a acumulação de capital, processo
que tentava legitimar governos apoiadores da ditadura militar.
Como se tratava de
empréstimos, principalmente, junto ao “euromercado” de moedas, que praticavam
juros flutuantes, essas dívidas explodiram quando os EUA elevaram a taxa de
juros de 5% para 20%, em 1979, em momentos em que se tentava estabilizar a
moeda estadunidense e revalorizar o dólar. Tal iniciativa exigiu, naquele
momento, ajuste fiscal para pagar um volume maior de juros, o que acabou
contribuindo para a crise financeira dos estados no Brasil, o que acabou
levando ao surgimento da Lei 9496/97 que federalizou as dívidas dos estados.
O crescimento da
dívida dos países tomadores tornou-se ainda mais acelerado a partir de 1994,
com a política de juros altos usada para garantir a estabilidade do Plano Real.
A crise mexicana de 1995, a asiática de 1997 e a russa de 1998, acabaram
levando a uma elevação da taxa básica de juros no Brasil. O elemento mais
marcante da elevação da dívida dos estados brasileiros foram as regras impostas
a cada um para rolar essa dívida por 30 anos. No caso do Rio Grande do Sul (e
da maioria dos estados) a União cobrou uma taxa de 7,5% ao ano mais IGP – DI
(Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna) e a obrigação de pagar 13%
da receita corrente líquida todo ano.
A União adotou a
prática de cobrança de juros sobre juros entre entes estatais, chamada de
anatocismo. Esse mecanismo acabou por acelerar ainda mais o crescimento da
dívida. Depois de vinte anos, já tendo pago três vezes o volume inicial de
empréstimos, o Rio Grande do Sul ainda devia quase quatro vezes esse volume.
Parte considerável dessa dívida pública tem sua origem na dívida do Banrisul,
via Proes, assumida pelo governoestadual quando este converteu dívidas privadas
do empresariado gaúcho junto a esse banco em dívida pública. Em 2016, quando
ocorreu nova renegociação da dívida via Lei Complementar 156, a dívida vinda do
Proes – Banrisul era de R$ 11 bilhões. Dívida pública originada na conversão de
dívida privada contraída pelas empresas, não honrada por estas, é mecanismo
ilegal.
Vale lembrar que os
estados tiveram a possibilidade de redução do saldo devedor junto à União: a
Súmula 121 do STF declarava ilegal a dívida ou saldo devedor que resultasse da
pratica de anatocismo. Onze estados ganharam liminar junto ao STF com base na súmula,
o que poderia reduzir drasticamente a dívida ou, em alguns casos, até
transformar o estado em credor junto à União, se fosse retirada a forma ilegal
de cobrança de juros do cálculo do saldo devedor. Entretanto, os governadores
preferiram renegociar como o governo federal uma nova rolagem da dívida e
redução de índices.
Com isso, surgiu a Lei
Complementar 148, seguida da Lei Complementar 156, que rolou a dívida por mais
20 anos, ao mesmo tempo que permitiu uma nova etapa de endividamento, externo
ou interno, dos estados, desde que privatizassem as empresas estatais que restavam
e se implementassem políticas de teto de gastos. Em outras palavras, o governo
federal rolou a dívida dos estados por 30 anos; 20 anos depois os estados se
declaravam em calamidade fiscal e abriram mão de fazer cumprir a Súmula 121, o
que levou o Rio Grande do Sul ao Regime de Recuperação Fiscal, que antecedeu à
tragédia; antes dela, o estado já estava hiper endividado.
Outro fator de grande
repercussão sobre a situação dos estados resultou das crescentes renúncias
fiscais dentro da guerra entre os estados para atrair empresas. Essas
renúncias, mais a Lei Kandir, originaram uma grande perda de arrecadação, que
comprometeu as despesas de cada ente estatal. A Lei, de 1996, que dispõe sobre
o imposto dos estados nas operações relativas à circulação de mercadorias e
serviços (ICMS), isenta do ICMS os produtos primários e semielaborados
destinados à exportação.
No Rio Grande do Sul
em particular, a Lei teve um efeito devastador, já que os estados exportadores
foram penalizados pela desoneração não compensada pela União. As perdas do Rio
Grande do Sul por ação dessa Lei chegaram a R$ 38 bilhões em 2023, valor que
representa quase um terço da dívida atual. Os estados querem flexibilizar
algumas determinações do Regime de Recuperação Fiscal, como o teto de gastos,
devido à perda de arrecadação em 2022, por conta da limitação das alíquotas de
ICMS sobre alguns produtos, como energia elétrica e combustíveis. A outra
demanda dos estados é a mudança nos contratos da dívida, uma redução dos juros
do patamar atual – inflação + 4% – para um valor fixo de 3%.
Em outras palavras, o
modelo de desenvolvimento em vigor no país, em grande destaque no Rio Grande do
Sul, priorizando a exportação, é a base fundamental de perdas dos estados e
compromete suas receitas, o que acaba levando ao um cenário que conduz ao Regime
de Recuperação Fiscal. Nos 28 anos de vigência da Lei Kandir temos um dos
principais motivos da crise fiscal. Por outro lado, o agronegócio, que recebe
as atenções das três esferas do poder público, é o grande responsável pela
queda na arrecadação do Estado e o principal responsável pelas mudanças
climáticas que estão no centro da atual tragédia das enchentes, que foi
antecedida por uma grande seca na região.
O quadro de servidores
do Rio Grande do Sul teve grande redução entre 1991 e 2017 e não pode ser
responsabilizado pelo aumento das despesas do estado. A redução de servidores é
um obstáculo para o bom funcionamento dos serviços públicos, fundamentais num
momento de calamidade. Os problemas do Rio Grande do Sul, em síntese, são:
elevada dívida pública junto à União, grande renúncia fiscal, produto da guerra
fiscal ou da Lei Kandir, desmonte da máquina pública com intenso processo de
privatização. O Rio Grande do Sul foi um grande laboratório de políticas
neoliberais e antissociais, com uma bancada parlamentar na sua maioria alinhada
no bloco BBBB (boi, bíblia, bala e bancos), sempre atuante nas pautas políticas
mais conservadoras.
A realização de uma
auditoria cidadã da dívida do Rio Grande do Sul é tarefa fundamental para
revelar o caráter ilegal e de classe dessas dívidas, demonstrando que foram
contraídas para impulsionar a acumulação privada de capital, inviabilizando
políticas sociais, prevenção dos desastres ambientais e atenção à população
danificada quando eles acontecem. O vínculo entre a dinâmica predadora e
espoliadora do capital, as mudanças climáticas e os desastres ambientais foi e
continua sendo analisado e demonstrado por muitos pesquisadores.
Falta evidenciar o
efeito das catástrofes climáticas na crise e decomposição do capitalismo, das
quais o “sistema da dívida” é prova mor, que conduzem a tragédias sociais e
humanitárias, como no Rio Grande do Sul, fazendo dessa evidência programa e
bandeira de luta do movimento dos trabalhadores. Suspensão dos pagamentos e
auditoria das dívidas: essa é a bandeira.
Fonte: Por José
Menezes Gomes e Osvaldo Coggiola, em A Terra é Redonda
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