sábado, 25 de maio de 2024

Philipp Lichterbeck: O Rio Grande do Sul é um sinal de alerta vermelho

Não é mais possível fechar os olhos: os efeitos das mudanças climáticas estão por todos os lados, não só no estado gaúcho. Quem ainda nega isso ou fica passível, age criminosamente.Quem pensa que as enchentes no Rio Grande do Sul são um fenômeno extraordinário isolado se engana. Há poucos dias uma forte chuva inundou o estado alemão do Sarre. Em alguns lugares caíram mais de 100 litros de água por metro quadrado em menos de 24 horas.

Em abril, as cidades de Abu Dhabi e Dubai foram atingidas por fortes chuvas. Em Abu Dhabi, as autoridades disseram terem caído 254 litros de água por metro quadrado. Em Dubai foram 142 litros por metro quadrado num único dia (a média anual é de 94,7 litros por metro quadrado), teve granizo e tempestade, e o aeroporto local (um dos mais frequentados do mundo) foi fechado.

Também no mês passado, cheias alagaram grandes áreas da África Oriental. Só no Quênia, tempestades e deslizamentos de terra custaram mais de 200 vidas. Dezenas de milhares de pessoas perderam suas casas, e muito mais de 200 mil ainda sofrem com as consequências: estradas, pontes, redes de energia elétrica e de água destruídas, terras agrícolas inutilizáveis.

No Paquistão e no Afeganistão, ao menos 135 pessoas perderam a vida em cheias e deslizamentos de terra em abril. As tempestades duraram vários dias. No Afeganistão, a situação foi agravada por uma seca que havia deixado o solo duro e incapaz de absorver tanta água.

No Paquistão, os níveis de precipitação já estão acima da média anual histórica. O Paquistão é a quinta nação mais populosa do mundo e uma das mais vulneráveis às mudanças climáticas. Em 2022, um terço do país já estava sofrendo com enchentes sem precedentes. Mais de 33 milhões de pessoas foram afetadas, e 1.700 perderam suas vidas.

Também a China foi atingida por fortes chuvas em abril. Embora essas chuvas não sejam incomuns em algumas regiões do país, este ano elas foram muito mais intensas e ocorreram muito mais cedo do que o normal. O relato do jornal estatal Guangzhou Daily é de “uma enchente que só ocorre a cada 50 anos”. Chuvas fortes não são incomuns em algumas regiões da China, mas este ano as chuvas foram muito mais intensas e ocorreram muito mais cedo do que o normal.

De acordo com especialistas, o número de enchentes na China vai aumentar significativamente. Já no verão passado, a capital, Pequim, foi atingida pelas chuvas mais intensas dos últimos 140 anos.

Brasil, Alemanha, Dubai, Quênia, Paquistão, China: os relatos se parecem, e um recorde de precipitações é quebrado após o outro.

•        Em outros lugares, a seca

O outro lado da moeda são as secas, que também estão aumentando em todo o mundo. Grandes partes do norte e do oeste da China estão passando por ondas de calor excepcionais. Assim como o centro-oeste do Brasil, com seus muitos campos de soja e milho, que está sendo cada vez mais afetado pela seca. No ano passado, até mesmo a Bacia Amazônica, que na verdade é a região mais rica em água do planeta, foi atingida pela pior seca desde o início dos registros. Em alguns lugares, o enorme rio Amazonas mais parecia um riacho.

Na Alemanha, há um déficit de quase 10 bilhões de toneladas de água este ano devido às secas dos últimos anos, de acordo com os cientistas. E a região espanhola da Catalunha chegou a declarar emergência hídrica no início do ano. O consumo de água foi drasticamente limitado: cada cidadão pode consumir no máximo 200 litros por dia. O governo regional da Catalunha afirmou que se trata da pior seca desde que os registros começaram a ser feitos.

•        Mudanças climáticas já começaram

Por que apresento essa lista, que poderia ter saído de um filme de catástrofe? Para mostrar que não é mais possível fechar os olhos: as mudanças climáticas já começaram e estão ganhando velocidade. Diminuir essa velocidade deve ser a meta de todas as ações políticas e econômicas.

A velocidade com que a Terra está se aquecendo deve ser reduzida, e as consequências da mudança que já está em andamento devem ser identificadas e minimizadas. Os políticos que duvidam disso, os líderes empresariais, os podcasters e outros influenciadores que se recusam a reconhecer esse fato deveriam ser afastados do cargo, substituídos e isolados, pois sua ignorância e oportunismo causam danos consideráveis a todos.

Infelizmente, vivemos numa sociedade muito imediatista, na qual muitas pessoas (incluindo um número alarmante de políticos brasileiros) não conseguem entender questões complexas. A única relação que conseguem estabelecer é entre uma suposta causa e o seu efeito imediato.

Um exemplo emblemático disso é o vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul, que só poderia mesmo pertencer ao partido de extrema direita PL e que quer agora apresentar um projeto de lei para desmatar encostas ao longo de estradas no Rio Grande do Sul, pois afirma que o peso das árvores é o responsável por deslizamentos de terra. Ele também quer abolir leis ambientais “extremas” que impedem o desenvolvimento econômico. As gerações futuras vão amaldiçoar homens como esse, que são parte do problema e não da solução.

•        A sociedade que não reage sucumbe

Encontrar respostas rápidas para as mudanças climáticas não é uma questão de moral ou orientação política, mas do tamanho dos custos. E não apenas os financeiros, mas sobretudo os sociais. Algumas regiões vão se tornar inabitáveis. Ou porque nelas haverá pouca água, ou porque muita água estará caindo num tempo muito curto, como aconteceu agora no Rio Grande do Sul. Ou porque o mar vai tomar conta de cada vez mais faixas costeiras. Os lugares próximos à costa, onde os preços dos imóveis são altos hoje, não valerão nada no futuro. A humanidade, mais uma vez, vai se pôr em movimento.

A Terra, no fim das contas, não se importa com o que a humanidade faz. A natureza não tem consciência, ela reage. Portanto, nada do que fazemos é para o bem da Terra ou do meio ambiente, como muitos, especialmente políticos de direita ou líderes empresariais, gostam de dizer. O que fazemos é única e exclusivamente para o nosso próprio bem. A Terra sobreviverá à humanidade garantidamente.

Há um estudo do historiador Jared Diamond sobre os motivos pelos quais até mesmo civilizações altamente desenvolvidas sucumbiram ao longo da história. Quase sempre os fatores ambientais desempenharam um papel importante, e Diamond identificou alguns fatores, entre eles a extensão de danos ambientais, a extensão das mudanças climáticas e a maneira como uma sociedade reage a essas mudanças e ameaças. Se ela não reage, por exemplo por motivos religiosos ou de poder político ou porque não quer mudar e prefere se agarrar ao antigo com todas as suas forças, ela acaba por sucumbir.

 

•        Destruição da natureza e especulação imobiliária. Por Igor Felippe Santos

A tragédia no Rio Grande do Sul com as enchentes e alagamentos atingiu 2,3 milhões de pessoas. A cada 10 gaúchos, dois sofrem com o impacto das chuvas. Milhares tiveram suas casas, móveis, eletrodomésticos, livros e memórias destruídos. Morreram 163 pessoas e 88 ainda estão desaparecidas. As cidades atingidas chegaram a 463 (93% do total). Cerca de 180 mil pontos estão sem energia elétrica.

Essa é a fotografia do desastre vivido pelo povo gaúcho com as fortes chuvas, que tiveram seus primeiros registros no final de maio, com alertas para os riscos da onda de calor no centro do país, que canalizava a umidade para o sul. Uma tragédia dessa magnitude não é apenas um acidente natural, como alguns querem fazer crer, mas consequência de um modelo de desenvolvimento econômico, do processo político-institucional e da forma de exploração dos recursos da natureza.

A razão estrutural é a fase neoliberal do modo de produção capitalista no mundo e no Brasil, que intensifica as mudanças climáticas. Os desdobramentos desse sistema são a destruição da natureza com o consumo acelerado de energia e o avanço do modelo do agronegócio, a especulação imobiliária nas grandes metrópoles, a flexibilização da legislação urbana e ambiental por governos e pelos parlamentos, em todas as esferas.

A questão central da crise climática é a lógica da reprodução ampliada do capital, que precisa se expandir de forma acelerada e contínua para a reprodução do sistema, como tem apontado o professor do Departamento de História da Unicamp, Luiz Marques, autor do premiado livro Capitalismo e colapso ambiental.

As principais razões para as mudanças climáticas, a expansão da queima de combustíveis fósseis para sustentar a matriz energética e do desmatamento para a ampliação das fronteiras agrícolas para a globalização do sistema alimentar, fazem parte dessa dinâmica do capitalismo.

Por isso, o modo de produção capitalista não tem condições de colocar um limite nessas atividades para efetivamente restringir a acelerada exploração dos recursos naturais e a emissão de um volume estratosférico de gases de efeito estufa jogados na atmosfera, que ameaçam a vida da humanidade.

•        Destruição da natureza

Os números da expansão do agronegócio no Rio Grande do Sul evidenciam a marcha da destruição que está em curso. Em menos de 40 anos, a agropecuária absorveu 12,41% do território do estado para as suas atividades, de acordo com dados do Mapbiomas.

A área do agronegócio cresceu de 34,8% (1985) para quase metade (47,22%) em 2022 no estado. Uma área de 35 mil km², ocupada anteriormente por campos, banhados e florestas, foi substituída por plantios e pastagens. Somente a área de campos, banhados e áreas rochosas perdeu 30% para, sobretudo, as pastagens e a monocultura de soja e milho.

A monocultura da soja aumentou em cinco vezes no período, passando de 13,6 mil km² em 1985 para 63,5 mil km² em 2022, de acordo com o Mapbiomas, que considera o número subestimado. O governo gaúcho, por sua vez, estima que o plantio de soja em 2023 superou 84 mil km².

•        Especulação imobiliária

A dinâmica do capital nas cidades – com a expansão das empresas da construção civil, empresas imobiliárias, especuladores de terrenos e fundos de investimento, responsáveis pela especulação imobiliária –, também está na raiz da tragédia.

Metrópoles como Porto Alegre sofrem e sucumbem à pressão do capital imobiliário por uma generalizada desorganização do território, com a desestruturação das políticas de planejamento urbano. De 1960 para cá, a capital gaúcha passou por um processo de crescimento urbano e aumento da densidade populacional. Nesse período, a população da cidade duplicou, passando de 600 mil habitantes para 1,3 milhão.

Os impactos negativos para o conjunto da população e para a infraestrutura urbana se aprofundaram com a aplicação das políticas neoliberais no município, com a flexibilização do planejamento urbano (o chamado Plano Diretor), as restrições fiscais para adequação da infraestrutura e as privatizações de órgãos, estruturas e serviços públicos.

•        Falência das instituições

Diante da pressão do grande capital, governos, parlamentos e Judiciário, nas diversas esferas, se submeteram e criaram uma “institucionalidade” para viabilizar a expansão do projeto das grandes empresas no campo e nas cidades.

O governo federal tem sustentado o crescimento do agronegócio desde o começo dos anos 2000. O país passou por um processo de desindustrialização, enquanto o modelo de produção agrícola em monocultura com utilização excessiva de agrotóxicos para exportação de commodities se tornou pilar da economia dependente do mercado externo.

O investimento do governo federal no agronegócio subiu de R$ 59 bilhões em 2002/2003 para R$ 256,5 bilhões em 2015/2016, em valores corrigidos pela calculadora do Banco Central. Foi um aumento de 335%. Assim, o Estado brasileiro tem financiado a substituição da vegetação nativa, fundamental para controlar as mudanças de temperatura com a crise climática, pela produção de soja, açúcar, milho, celulose e pastagens para a pecuária.

O Congresso Nacional fez uma ofensiva para flexibilizar a legislação ambiental e limpar o terreno para a expansão do agronegócio. As mudanças no Código Florestal, aprovadas em 2012, por exemplo, desmontaram os marcos regulatórios da preservação da vegetação nativa. Levantamento publicado pelo jornal O Globo estimou que ao menos 11 leis aprovadas reduziram a proteção ambiental nos últimos anos.

Na esfera estadual, 480 normas do Código Ambiental do Rio Grande do Sul foram alteradas em 2020, no começo da gestão do governador Eduardo Leite. O desmonte das leis estaduais de proteção ambiental foram aprovadas pela Assembleia Legislativa do estado e sancionadas pelo governador.

A irresponsabilidade com a população das autoridades locais, o governador Eduardo Leite (PSDB) e o prefeito Sebastião Melo (PMDB), é evidente pelas suas próprias declarações e pelos estudos de órgãos que administram, que anunciavam a tragédia que destruiu casas, pertences e parte da história de milhares de pessoas.

A tragédia no Rio Grande do Sul tem responsáveis que precisam ser apontados para que sejam enfrentadas as causas da crise climática, que ameaça a população em centenas de cidades e a vida da humanidade. O modelo de produção capitalista, com a necessidade de expandir permanentemente, não tem como se adaptar ao imperativo da mudança da forma de organização e produção da sociedade. Que não seja necessário esperar mais um desastre de grandes dimensões.

 

Fonte: Deutsche Welle/A Terra é Redonda

 

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